terça-feira, 26 de março de 2013

ROSA TERAPEUTA


GUIMARÃES ROSA TERAPEUTA


 

Marco Aurélio Baggio*


 

 – Tem-se de redigir um abreviado de tudo.

                                             (Rosa,  Tutaméia, 1976, p. 166).

 

“Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.” (Rosa, Tutaméia, 1976, p. 166).

A obra do médico escritor João Guimarães Rosa é uma basílica que se aproxima da redação de um apanhado de todo o conhecimento que os seres humanos vieram acumulando em gnose, filosofia e cultura, nos últimos cinco mil anos.

Guimarães Rosa é um gênio da humanidade – certamente o maior de todo o século XX. Homem que absorveu quase todos os códigos do saber humano – exceção feita ao psicanalítico –, Rosa, sozinho, criou e nos forneceu uma Bíblia  extremamente culta, abrangente, sagaz e oportuna. Atualíssima.

Usou como método a apropinquação de toda a diferença e das incongruências humanas, buscando conjugar as variedades e conciliar as diversidades dos códigos do conhecimento e do comportamento humanos, no afã de unificar uma “inteligência universal”. “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue.” (Rosa, GSV ,1970, p. 15).

Rosa concebeu uma língua inteira, renovada, “brasa assoprada”, com mais de 10.000 palavras restauradas ou inovadas. Criou uma escrita peculiar, modificou a pontuação e a sintaxe preconizadas pela gramática normativa, usou figuras de linguagem e de pensamento afinadíssimas, empregou metáforas de uma beleza insólita, personalíssimas e instigantíssimas, recorreu inúmeras vezes à intertextualidade e à metalinguagem. Mais do que qualquer outro literato, aproximou-se do ideal de criar uma língua pura, sagrada, de aplicação universal. “Muita coisa importante falta nome.” (Rosa, GSV, 1970, p. 86).

Suas duas mil frases – ou mais – são instruções para uso público imediato – lamelas ou orações de encaminhamento de percurso. Constituem um breviário – um bulário – indicador de como o ser humano cresce em ascese ao longo das peripécias em que transcorre sua vida.

Prosaico psiquiatra tratador de gentes e empenhado pesquisador acerca da natureza e da condição humana, prefiro ler, absorver e, no possível, divulgar a inteligência e a sabedoria constantes na obra rosiana como um experto e adequado livro de psicoterapia incisiva. Sua obra abarca quase todas as possíveis vicissitudes da vida das pessoas.

Guimarães Rosa parte do costumeiro cenário, vinculado à terra, ao sertão – o vasto mundo do corriqueiro, onde o ser humano se insere mais profundamente na realidade das coisas do mundo. A partir daí, tece um enredo comum, quase banal, para criar o personagem. Este é um ser humano “restante comum” ou alguém já marcado indelevelmente pelos azares da vida. Seus personagens são sempre indivíduos portadores de uma incompletude ou falha, de um aleijão ou de uma insuficiência.

 Um ser incompleto anseia por algo , inapreensível, anelado, desconhecido. Ainda incorpóreo e inefável. Algo concebido em imaginação, que funciona como um ponto futuro, um chamariz ao vir-a-ser do personagem. “Atravessei meus fantasmas?” (Rosa, GSV, 1970, p. 365).

É preciso remexer “no podre dos pensamentos”. (Rosa, Tutaméia, 1976, p. 176).

         Anelo gera ansiedade, que induz o passivo personagem à condição de empreender a caminhada. O movimento desloca o ser exposto às infinitudes do sertão da existência. Saindo de sua ancoragem, o indivíduo tem de desenvolver, compulsória e expeditamente, toda gama de instrumentos para fazer viger os talentos pessoais que nem ele sabia que tinha. Observa o mundo. Aprende a ver e a conhecer. Estabelece uma rede consistente de relações que lhe dão sustentação. Faz correlações. Intelige. Intruje-se. Toma tento. Tem cautela. Fica ansioso. Ansiedade vira medo. Medo acarreta prudência. Mas também desperta os internos das coragens. Coragem fortalece o sobredentro de si, recolhendo as afluências do rio das vontades. Ambas – coragens e vontades – insuflam o Eu, que parte para o desempenho. São elas, portanto, o viático, o meio e o modo para atravessar o vau da vida.

         Logo no início da estória – do caso exemploso – acontece um fato inusitado, espantoso, absurdo, algo da ordem de um triz, um acaso ou um perigo. Um clinâmen desvia, inexoravelmente, o viajor para páramos insuspeitos: ocultos caminhos. Um risco espantoso arreganha suas fauces maldosas, devoradoras, sobre o incauto transeunte. Uma situação de absurdo desamparo é dramatizada: “Eu estava na água da hora beber onça...” (Rosa, Tutaméia, 1976, p. 199).

         Ao personagem só resta façanhar. “Me espremi para limonadas”.(Rosa, Tutaméia, 1976, p. 199).

         É o demônio, que sempre comparece com seu pingado de pimenta para mais espertar, introduzindo o mal – a culpa, o medo, o desrespeito, a destituição de prerrogativas, a ameaça de vida ou de morte –, que rompe com a estabilidade modorrenta e inútil da vida, fazendo-a produzir trama e drama.

         A vida humana transcorre graças às ações desviantes do diabo que, em nossos crespos e avessos, habita e nos arrosta para a rua, no meio da rede do pé-de-ventos de nossas ambições e impossibilidades:    “... no meio  do  redemoinho...”  (Rosa, GSV, 1970,  p. 1).

         A maldade demoníaca, derivada das insuficiências de constituição do ser humano, por clinâmen, gera vicissitudes e causa as peripécias que compelem a metamorfose de um sujeitinho – um leguelé prequeté qualquer - em indivíduo capaz de escolher-escorrer por precária senda e, daí, de si se responsabilizar.

 “- Isto não é vida!...

 É fase de metamorfose.” (Rosa, “Do Entreespelho”. “Mechéu”, 1976, p. 88.)

         É assim que o personagem rosiano abandona o conforto obscuro e insatisfatório da primeira margem de sua existência e ruma, pressuroso, para , em direção ao incorpóreo vislumbrado na segunda margem do rio.

         Nesse périplo, o personagem se constitui como sujeito de si próprio, desiludindo-se e desmisturando-se dos outros todos demais: “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.” (Rosa, GSV, p. 47).

         É verdade. O homem nasceu para o sozinho em horas extremas de definição. No entanto, carecemos de viver imersos em uma rede de sentidos e de relações humanas. Daí que: “E sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente.” (Rosa, GSV, 1970, p. 21)

         Sabe-se que a constituição da subjetividade da pessoa percorre a recursividade infinita da leminiscata: “que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –”. (Rosa, GSV, 1970, p. 20).

Mais que o fútil vaidoso homem racional de cultura mundana – uma certa visão de que de si se podia ter – João – graça de Deus –; Guimarães – cavaleiro andante em Cruzada permanente; – Rosa – a flor do amor -, também por si alcunhado “Cordisburgo” – a cidade do coração – diante de seu ministro, João Neves da Fontoura, – enfim, e portanto, João Guimarães Rosa era um homem BOM. De uma bondade que não piscava.

O literato mineiro utilizou-se dos recursos de várias línguas para criar uma prosa que pudesse dar vazão à poesia da existência humana. Assim, Guimarães Rosa inaugurou um novo gênero literário: o prosoema. E, a partir do mel de sua obra, vêm-se religando adeptos que se tornam, ardorosa e luminarmente, Rosadictos.

         A motivação de João Guimarães Rosa está no fato de que ele “Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.”  (Rosa, GSV, 1970, p. 79).

         João sabia que “...o mundo não dá a ninguém inocência nem garantia” (Rosa, “Rebimba, o bom”. Tutaméia. 1976, p. 142) e que “aprender-a-viver é que é o viver mesmo”. (Rosa, GSV, 1970, p. 443).

         Além disso, sabe-se que se vive a vida não em alegoria, ficção ou representação, mas sim vivendo-a no risco do bambalango das águas, na incerteza de todos os mim minutos. “Eu queria o ferver.” (Rosa, GSV, 1970, p. 96).

         A monumental obra de Guimarães Rosa é uma casuística de estórias que nos ensinam as vicissitudes e os percalços a que todos estamos sujeitos, ao deparar com o sertão da existência. “Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados.” (Rosa, GSV, 1970, p. 139).

         A genialidade singular do autor mineiro-universal está em traçar, de forma instigante, os passos e as etapas da processualística que o personagem tem de percorrer para se safar dos embondos e dos empecilhos. “Homem? É coisa que treme.” (GSV, 1970, p. 118).

         Ao desafio do perigo – o demo, o risco, o impasse, o conflito, à beira de derrelicção, a pura ameaça de perdição do em si de si –, o personagem obtém, como que por graça ou milagre, a esperada ajuda: “Mas o nosso bom São Marcos Vaqueiro, viageiro, ajudou: primeiro mandou forte desalento; depois, então, a coragem.” (Rosa, “Da OUTRA BOIADA URUCUIANA, Jornada penúltima”. “Vida ensinada. Tutaméia. 1976, p. 184).

 

Sem remédio nada estava, porque um homem havia, que ajudava geral. Só isso ele vem me disse, no desimpedido do ouvido, o Daça: que se podia ter amparo e concerto, por um Rebimba, o bom, parado em seu lugar, a-pique alto, no termo de estiradas léguas. (Rosa, “Rebimba, o bom”. Tutaméia. 1976, p. 127).

 

         Guimarães Rosa restaura a tradição humanística de seres diferenciados, mais poderosos, que são os Tirthankaras – aqueles que conduzem o vau do viajante através das águas do renascimento; o Hermes, arauto, mensageiro, embaixador do exterior para o interior do sujeito, comerciante de nexos e de interrelações; o Psicopompo, condutor de almas ao longo das peripécias da jornada existencial; o Cristo, com sua comunhão ecumênica na purgação do amor a si e ao próximo, como fonte de redenção espiritual; o Therapeutike, médico que aciona os meios adequados para aliviar as dores e curar os doentes.

 

         O moderno psiquiatra psicoterapeuta, no trato com seus pacientes, diligencia em aprender para descrever o desenrolar de todas as coisas tolas humanas, para poder participar e interagir no vínculo entre os componentes que constituem a pessoa, e assim influir, fecundamente, nos movimentos decisivos que fazem a diferença entre o obtuso tonto, indiferenciado, e o novidadeiro excitante, inteligente, enriquecedor. Disso, o psicoterapeuta extrai uma nova resultante muito favorável ao cliente. “Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa.” (Rosa, GSV, 1970, p. 152). O sobredentro.      Rosa sabia que são “As pessoas – baile de flores degoladas, que procuram suas hastes” (Rosa, Buriti, 1976, p. 250), em decorrência do fato de que “você foi viver, agora teme”.

         A obra rosiana baseia-se na constatação de que a condição humana é sempre de ingente precariedade, a todo momento estando o sujeito em julgamento e, por um clim de clina de cavalo, por um triz, este escapole de despencar em pirambeiras.

         A  realidade terráquea que bate bruta na cara, estupidificando o indivíduo, tem de ser amolgada com algo poderoso, da ordem do diabólico acontecimento. É desse clinâmen – desvio – que o personagem se põe a prosopopeizar e a faceirar. O facho de luz de sua razão acende-se, poderoso. Às fímbrias da inspiração somam-se as graças que se auferem dos bons agentes da cultura que trazem seu grão de fermento.

         Esta vida é embrejada. Mas está cheia de ocultos caminhos.

         A vontade faz o indivíduo enfrentar as encruzilhadas nas Veredas-Mortas. A aspiração de maior completude o impele a ir adiante. O sujeito sai de um Eu por detrás de mim e passa a lidar com “mil mosquitos, que são corja de demônios mirins”. (Rosa, “São Marcos”. Sagarana. 1982, p. 240).

Aos poucos, o indivíduo aprende com Melim-Meloso e


 

          Diz assim: Melim-Meloso

         só quer amar sem sofrer

         Errando sempre, para diante,

         um acerta, sem saber.

              (Rosa, “Melim-Meloso”. Tutaméia. 1982, p. 240).            

 

         Para isso, teve de desenvolver seus talentos e concentrar as luzes de sua intuição, que dão caudal à sua intenção, no dizer de Riobaldo: “Eu queria minha vida própria, por meu querer governada.” (Rosa, GSV. 1970, p. 268).

         Mas antes teve de diligenciar em “capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos fatos ou traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito.” (Rosa, “Hipotrélico”. Tutaméia, 1976, p. 65).

 

– A coisada que a gente vê, é errada... [...] O borrado sujo, o sr. larga na estrada, em indústrias escritas isso não se lavora. As atrapalhadas, o sr. exara dado desconto, só para preceito, conserto e castigo, essas revolias, frenesias... (Rosa, Tutaméia. 1976, p. 164-165).

 

         O psicoterapeuta João Guimarães Rosa recomenda que viajante e condutor cuidem de captar

 

a infinita variedade de cores, cheiros, sabores, sons e movimentos, os ciúmes, amores, ódios, idéias, reflexões – a sucessão quotidiana de acontecimentos individuais e coletivos que constituem toda a realidade: as coisas que existem e não existem... (Araújo, 2001, p. 77).

 

         E disso extrai um outro senso, um supra-sentido que possa abrir a fresta por onde se fará a passagem adiante, por colominhante vereda. Proceder assim é poetar:

 

“– Quando um dia um for para morrer, há-de ter saudade de tanta coisa...” ele só se disse, pegou o mugido de um boi, botou no bolso. Andando à-toa, pisava o cheiro de capins e rotas ervas. (Rosa. “Faraó e a água do rio”. Tutaméia. 1976, p. 60).

 

Se a primeira margem do rio da existência representa a inserção terrena do sujeito ao mandato do outro grande agente cultural, o acicate demoníaco pulsional do indivíduo o impele à vontade de, partindo de suas carências, buscar , na segunda margem, suas completudes. Para isso, ele tem de empreender a travessia façanhuda de sua vida. Lida com a realidade prosaica das leis da razão suficiente e da lógica. Mas tem de ultrapassá-las por meio do desempenho hábil, realizado com entusiasmo, com sentimento, imaginação e sorte.

         Em um primeiro momento, o personagem depara com o outro, o menino-do-rio: Reinaldo. Depois vive e atravessa o sertão com o companheiro e amigor (amigo+amor) Diadorim.

         Com a apuração do desejo e do afeto, sorve a benfazeja espiritualidade de “Dindurinh...”. E, depois, no desenlace fatal que abre o luto: “- A Deus dada. Pobrezinha...” (Rosa, GSV, 1970, p.  453). E já saindo do coice do luto, nomeante: “De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...”(Rosa, GSV. 1976, p. 458).

         Realiza-se então: “Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência;” (Rosa. GSV., 1970, p. 237); “eu estava bêbado de meu.” (Rosa, GSV, 1970, p. 319).

         Um dia então, bem edificado como pessoa humana de apetrechamentos e conspeitos, tendo confeccionado sua tuta e meia, o ser humano pode partir para seu dia de alta tarefa, não se desproduzindo quando a fantasmagórica figura do pai lhe acenar para substituí-lo “numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio  a dentro – o rio.” (Rosa. “A terceira margem do rio”. Primeiras estórias. 1988, p.37).

         A suprema metamorfose da existência – a própria morte – é a terceira margem do rio da vida de todos nós.

         Guimarães Rosa é o sumo pontuador dos afetos e dos movimentos pelos quais evolui cada vida humana. Suas formulações são brilhos de luz que espargem graça e consciência sobre os malfeitos e os borrados sujos da vida. Ele sabia que a intuição generosa do agente ascendente é que possibilita a superação do erro e do mal presentes na trajetória dos seres ainda incompletos, anulando o vitríolo da maldade, transfigurando-o em bom, em bem e em benfazejo.

 

         Há um único corpo de conhecimento humano universal a ser escrito. Guimarães  Rosa  nos  aponta  para   a suprema   pergunta:   – Como bem viver? – É derramando gotas de luz por sobre o mal que não tem miolo.

          Absolutas estrelas!

 

ЖЖЖ

 

Referências

 

1.                ARAÚJO, Heloisa Vilhena de. As três graças. São Paulo: Mandarim, 2001.

2.                BAGGIO, Marco Aurélio. “Dos seres incompletos à edificação humana”.  Scripta. Edição Especial do Seminário Internacional Guimarães Rosa. Belo Horizonte: PUC-MINAS, vol. 2, nº 3, p. 211-220, 2º sem., 1998.

3.                ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 7ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

4.                _____ . Tutaméia. 4ª ed.,  Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

5.                _____ . Primeiras estórias. 13ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

6.                _____  . Sagarana. 12ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

7.                _____ . Noites do sertão. 5ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.



* Psiquiatra. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores.

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