GUIMARÃES ROSA TERAPEUTA
Marco Aurélio Baggio*
– Tem-se de redigir um abreviado de tudo.
(Rosa, Tutaméia,
1976, p. 166).
“Um
escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.” (Rosa, Tutaméia, 1976, p. 166).
A obra do
médico escritor João Guimarães Rosa é uma basílica que se aproxima da redação
de um apanhado de todo o conhecimento que os seres humanos vieram acumulando em
gnose, filosofia e cultura, nos últimos cinco mil anos.
Guimarães Rosa é um gênio da humanidade – certamente o maior
de todo o século XX. Homem que absorveu quase todos os códigos do saber humano
– exceção feita ao psicanalítico –, Rosa, sozinho, criou e nos forneceu uma
Bíblia extremamente culta, abrangente,
sagaz e oportuna. Atualíssima.
Usou como método a apropinquação de toda a diferença e das
incongruências humanas, buscando conjugar as variedades e conciliar as
diversidades dos códigos do conhecimento e do comportamento humanos, no afã de
unificar uma “inteligência universal”. “Muita religião, seu moço! Eu cá, não
perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só,
para mim é pouca, talvez não me chegue.” (Rosa, GSV ,1970, p. 15).
Rosa concebeu
uma língua inteira, renovada, “brasa assoprada”, com mais de 10.000 palavras
restauradas ou inovadas. Criou uma escrita peculiar, modificou a pontuação e a
sintaxe preconizadas pela gramática normativa, usou figuras de linguagem e de
pensamento afinadíssimas, empregou metáforas de uma beleza insólita,
personalíssimas e instigantíssimas, recorreu inúmeras vezes à intertextualidade
e à metalinguagem. Mais do que qualquer outro literato, aproximou-se do ideal
de criar uma língua pura, sagrada, de
aplicação universal. “Muita coisa importante falta nome.” (Rosa, GSV, 1970, p. 86).
Suas duas mil frases – ou mais – são instruções para uso
público imediato – lamelas ou orações de encaminhamento de percurso. Constituem
um breviário – um bulário – indicador de como o ser humano cresce em ascese ao
longo das peripécias em que transcorre sua vida.
Prosaico psiquiatra tratador de gentes e empenhado
pesquisador acerca da natureza e da condição humana, prefiro ler, absorver e,
no possível, divulgar a inteligência e a sabedoria constantes na obra rosiana
como um experto e adequado livro de psicoterapia
incisiva. Sua obra abarca quase todas as possíveis vicissitudes da vida das
pessoas.
Guimarães Rosa parte do costumeiro cenário, vinculado à
terra, ao sertão – o vasto mundo do corriqueiro, onde o ser humano se insere
mais profundamente na realidade das coisas do mundo. A partir daí, tece um
enredo comum, quase banal, para criar o personagem. Este é um ser humano
“restante comum” ou alguém já marcado indelevelmente pelos azares da vida. Seus
personagens são sempre indivíduos portadores de uma incompletude ou falha, de
um aleijão ou de uma insuficiência.
Um ser incompleto
anseia por algo lá, inapreensível,
anelado, desconhecido. Ainda incorpóreo e inefável. Algo concebido em
imaginação, que funciona como um ponto futuro, um chamariz ao vir-a-ser do
personagem. “Atravessei meus fantasmas?” (Rosa, GSV, 1970, p. 365).
É preciso remexer “no podre dos pensamentos”. (Rosa, Tutaméia, 1976, p. 176).
Anelo gera ansiedade, que induz o
passivo personagem à condição de empreender a caminhada. O movimento desloca o
ser exposto às infinitudes do sertão da existência. Saindo de sua ancoragem, o
indivíduo tem de desenvolver, compulsória e expeditamente, toda gama de
instrumentos para fazer viger os talentos pessoais que nem ele sabia que tinha.
Observa o mundo. Aprende a ver e a conhecer. Estabelece uma rede consistente de
relações que lhe dão sustentação. Faz correlações. Intelige. Intruje-se. Toma
tento. Tem cautela. Fica ansioso. Ansiedade vira medo. Medo acarreta prudência.
Mas também desperta os internos das coragens. Coragem fortalece o sobredentro
de si, recolhendo as afluências do rio das vontades. Ambas – coragens e
vontades – insuflam o Eu, que parte para o desempenho. São elas, portanto, o
viático, o meio e o modo para atravessar o vau da vida.
Logo no início da estória – do caso
exemploso – acontece um fato inusitado, espantoso, absurdo, algo da ordem de um
triz, um acaso ou um perigo. Um clinâmen desvia, inexoravelmente, o viajor para
páramos insuspeitos: ocultos caminhos. Um risco espantoso arreganha suas fauces
maldosas, devoradoras, sobre o incauto transeunte. Uma situação de absurdo
desamparo é dramatizada: “Eu estava na água da hora beber onça...” (Rosa, Tutaméia, 1976, p. 199).
Ao personagem só resta façanhar. “Me
espremi para limonadas”.(Rosa, Tutaméia,
1976, p. 199).
É o demônio, que sempre comparece com
seu pingado de pimenta para mais espertar, introduzindo o mal – a culpa, o
medo, o desrespeito, a destituição de prerrogativas, a ameaça de vida ou de morte
–, que rompe com a estabilidade modorrenta e inútil da vida, fazendo-a produzir
trama e drama.
A vida humana transcorre graças às
ações desviantes do diabo que, em nossos crespos e avessos, habita e nos
arrosta para a rua, no meio da rede do pé-de-ventos de nossas ambições e
impossibilidades: “... no meio do
redemoinho...” (Rosa, GSV, 1970, p. 1).
A maldade demoníaca, derivada das
insuficiências de constituição do ser humano, por clinâmen, gera vicissitudes e
causa as peripécias que compelem a metamorfose de um sujeitinho – um leguelé
prequeté qualquer - em indivíduo capaz de escolher-escorrer por precária senda
e, daí, de si se responsabilizar.
“- Isto não é vida!...
É fase de metamorfose.” (Rosa, “Do
Entreespelho”. “Mechéu”, 1976, p. 88.)
É assim que o personagem rosiano
abandona o conforto obscuro e insatisfatório da primeira margem de sua
existência e ruma, pressuroso, para lá,
em direção ao incorpóreo vislumbrado na segunda margem do rio.
Nesse périplo, o personagem se
constitui como sujeito de si próprio, desiludindo-se e desmisturando-se dos
outros todos demais: “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.” (Rosa, GSV, p. 47).
É verdade. O homem nasceu para o
sozinho em horas extremas de definição. No entanto, carecemos de viver imersos
em uma rede de sentidos e de relações humanas. Daí que: “E sozinhozinho não
estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente.” (Rosa, GSV, 1970, p. 21)
Sabe-se que a constituição da
subjetividade da pessoa percorre a recursividade infinita da leminiscata: “que
as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –”. (Rosa, GSV, 1970, p. 20).
Mais que o fútil vaidoso homem racional de cultura mundana –
uma certa visão de que de si se podia ter – João – graça de Deus –; Guimarães –
cavaleiro andante em Cruzada permanente; – Rosa – a flor do amor -, também por
si alcunhado “Cordisburgo” – a cidade do coração – diante de seu ministro, João
Neves da Fontoura, – enfim, e portanto, João Guimarães Rosa era um homem BOM.
De uma bondade que não piscava.
O literato mineiro utilizou-se dos recursos de várias
línguas para criar uma prosa que pudesse dar vazão à poesia da existência
humana. Assim, Guimarães Rosa inaugurou um novo gênero literário: o prosoema. E, a partir do mel de sua
obra, vêm-se religando adeptos que se tornam, ardorosa e luminarmente, Rosadictos.
A motivação de João Guimarães Rosa está
no fato de que ele “Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a
gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.” (Rosa, GSV, 1970, p.
79).
João sabia que “...o mundo não dá a
ninguém inocência nem garantia” (Rosa, “Rebimba, o bom”. Tutaméia. 1976, p. 142) e que “aprender-a-viver é que é o viver
mesmo”. (Rosa, GSV, 1970, p. 443).
Além disso, sabe-se que se vive a vida
não em alegoria, ficção ou representação, mas sim vivendo-a no risco do
bambalango das águas, na incerteza de todos os mim minutos. “Eu queria o ferver.” (Rosa, GSV, 1970, p. 96).
A monumental obra de Guimarães Rosa é
uma casuística de estórias que nos ensinam as vicissitudes e os percalços a que
todos estamos sujeitos, ao deparar com o sertão da existência. “Mas a natureza
da gente é muito segundas-e-sábados.” (Rosa, GSV, 1970, p. 139).
A genialidade singular do autor
mineiro-universal está em traçar, de forma instigante, os passos e as etapas da
processualística que o personagem tem de percorrer para se safar dos embondos e
dos empecilhos. “Homem? É coisa que treme.” (GSV, 1970, p. 118).
Ao desafio do perigo – o demo, o risco,
o impasse, o conflito, à beira de derrelicção, a pura ameaça de perdição do em
si de si –, o personagem obtém, como que por graça ou milagre, a esperada
ajuda: “Mas o nosso bom São Marcos Vaqueiro, viageiro, ajudou: primeiro mandou
forte desalento; depois, então, a coragem.” (Rosa, “Da OUTRA BOIADA URUCUIANA,
Jornada penúltima”. “Vida ensinada. Tutaméia.
1976, p. 184).
Sem
remédio nada estava, porque um homem havia, que ajudava geral. Só isso ele vem
me disse, no desimpedido do ouvido, o Daça: que se podia ter amparo e concerto,
por um Rebimba, o bom, parado em seu lugar, a-pique alto, no termo de estiradas
léguas. (Rosa, “Rebimba, o bom”. Tutaméia.
1976, p. 127).
Guimarães Rosa restaura a tradição
humanística de seres diferenciados, mais poderosos, que são os Tirthankaras – aqueles que conduzem o
vau do viajante através das águas do renascimento; o Hermes, arauto, mensageiro, embaixador do exterior para o interior
do sujeito, comerciante de nexos e de interrelações; o Psicopompo, condutor de almas ao longo das peripécias da jornada
existencial; o Cristo, com sua
comunhão ecumênica na purgação do amor a si e ao próximo, como fonte de
redenção espiritual; o Therapeutike,
médico que aciona os meios adequados para aliviar as dores e curar os doentes.
O moderno psiquiatra psicoterapeuta, no trato com seus pacientes, diligencia
em aprender para descrever o desenrolar de todas as coisas tolas humanas, para
poder participar e interagir no vínculo entre os componentes que constituem a
pessoa, e assim influir, fecundamente, nos movimentos decisivos que fazem a
diferença entre o obtuso tonto, indiferenciado, e o novidadeiro excitante,
inteligente, enriquecedor. Disso, o psicoterapeuta extrai uma nova resultante
muito favorável ao cliente. “Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas
ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a
sobre-coisa, a outra-coisa.” (Rosa, GSV,
1970, p. 152). O sobredentro. Rosa
sabia que são “As pessoas – baile de flores degoladas, que procuram suas
hastes” (Rosa, Buriti, 1976, p. 250),
em decorrência do fato de que “você foi viver, agora teme”.
A obra rosiana baseia-se na constatação
de que a condição humana é sempre de ingente precariedade, a todo momento
estando o sujeito em julgamento e, por um clim de clina de cavalo, por um triz,
este escapole de despencar em pirambeiras.
A
realidade terráquea que bate bruta na cara, estupidificando o indivíduo,
tem de ser amolgada com algo poderoso, da ordem do diabólico acontecimento. É
desse clinâmen – desvio – que o personagem se põe a prosopopeizar e a faceirar.
O facho de luz de sua razão acende-se, poderoso. Às fímbrias da inspiração
somam-se as graças que se auferem dos bons agentes da cultura que trazem seu
grão de fermento.
Esta vida é embrejada. Mas está cheia
de ocultos caminhos.
A vontade faz o indivíduo enfrentar as
encruzilhadas nas Veredas-Mortas. A aspiração de maior completude o impele a ir
adiante. O sujeito sai de um Eu por detrás de mim e passa a lidar com “mil
mosquitos, que são corja de demônios mirins”. (Rosa, “São Marcos”. Sagarana. 1982, p. 240).
Aos poucos, o indivíduo aprende com
Melim-Meloso e
Diz assim: Melim-Meloso
só quer amar sem sofrer
Errando sempre, para diante,
um acerta, sem saber.
(Rosa,
“Melim-Meloso”. Tutaméia. 1982, p.
240).
Para isso, teve de desenvolver seus
talentos e concentrar as luzes de sua intuição, que dão caudal à sua intenção,
no dizer de Riobaldo: “Eu queria minha vida própria, por meu querer governada.”
(Rosa, GSV. 1970, p. 268).
Mas antes teve de diligenciar em
“capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos fatos ou traduzir aos
milésimos os movimentos da alma e do espírito.” (Rosa, “Hipotrélico”. Tutaméia, 1976, p. 65).
–
A coisada que a gente vê, é errada... [...] O borrado sujo, o sr. larga na
estrada, em indústrias escritas isso não se lavora. As atrapalhadas, o sr.
exara dado desconto, só para preceito, conserto e castigo, essas revolias,
frenesias... (Rosa, Tutaméia. 1976, p. 164-165).
O psicoterapeuta João Guimarães Rosa
recomenda que viajante e condutor cuidem de captar
a infinita variedade de cores,
cheiros, sabores, sons e movimentos, os ciúmes, amores, ódios, idéias,
reflexões – a sucessão quotidiana de acontecimentos individuais e coletivos que
constituem toda a realidade: as coisas que existem e não existem... (Araújo, 2001, p. 77).
E disso extrai um outro senso, um
supra-sentido que possa abrir a fresta por onde se fará a passagem adiante, por
colominhante vereda. Proceder assim é poetar:
“– Quando um
dia um for para morrer, há-de ter saudade de tanta coisa...” – ele só se disse,
pegou o mugido de um boi, botou no bolso. Andando à-toa, pisava o cheiro de
capins e rotas ervas. (Rosa. “Faraó e a água do rio”. Tutaméia. 1976, p. 60).
Se a primeira margem do rio da existência representa a
inserção terrena do sujeito ao mandato do outro grande agente cultural, o
acicate demoníaco pulsional do indivíduo o impele à vontade de, partindo de
suas carências, buscar lá, na segunda
margem, suas completudes. Para isso, ele tem de empreender a travessia
façanhuda de sua vida. Lida com a realidade prosaica das leis da razão
suficiente e da lógica. Mas tem de ultrapassá-las por meio do desempenho hábil,
realizado com entusiasmo, com sentimento, imaginação e sorte.
Em um primeiro momento, o personagem
depara com o outro, o menino-do-rio: Reinaldo. Depois vive e atravessa o sertão
com o companheiro e amigor
(amigo+amor) Diadorim.
Com a apuração do desejo e do afeto,
sorve a benfazeja espiritualidade de “Dindurinh...”. E, depois, no desenlace
fatal que abre o luto: “- A Deus dada. Pobrezinha...” (Rosa, GSV, 1970, p. 453). E já saindo do coice do luto, nomeante: “De Maria Deodorina
da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter
medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...”(Rosa, GSV. 1976, p. 458).
Realiza-se então: “Ah, para o prazer e
para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na
consciência;” (Rosa. GSV., 1970, p.
237); “eu estava bêbado de meu.” (Rosa, GSV,
1970, p. 319).
Um dia então, bem edificado como pessoa
humana de apetrechamentos e conspeitos, tendo confeccionado sua tuta e meia, o
ser humano pode partir para seu dia de alta tarefa, não se desproduzindo quando
a fantasmagórica figura do pai lhe acenar para substituí-lo “numa canoinha de
nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,
rio a dentro – o rio.” (Rosa. “A
terceira margem do rio”. Primeiras
estórias. 1988, p.37).
A suprema metamorfose da existência – a
própria morte – é a terceira margem do rio da vida de todos nós.
Guimarães Rosa é o sumo pontuador dos
afetos e dos movimentos pelos quais evolui cada vida humana. Suas formulações
são brilhos de luz que espargem graça e consciência sobre os malfeitos e os
borrados sujos da vida. Ele sabia que a intuição generosa do agente ascendente
é que possibilita a superação do erro e do mal presentes na trajetória dos
seres ainda incompletos, anulando o vitríolo da maldade, transfigurando-o em
bom, em bem e em benfazejo.
Há um único corpo de conhecimento
humano universal a ser escrito. Guimarães
Rosa nos aponta
para a suprema pergunta:
– Como bem viver? – É derramando gotas de luz por sobre o mal que não
tem miolo.
Absolutas estrelas!
ЖЖЖ
Referências
1.
ARAÚJO, Heloisa
Vilhena de. As três graças. São
Paulo: Mandarim, 2001.
2.
BAGGIO, Marco
Aurélio. “Dos seres incompletos à edificação humana”. Scripta. Edição
Especial do Seminário Internacional Guimarães Rosa. Belo Horizonte: PUC-MINAS,
vol. 2, nº 3, p. 211-220, 2º sem., 1998.
3.
ROSA, João Guimarães.
Grande sertão: veredas. 7ª ed., Rio
de Janeiro: José Olympio, 1970.
4.
_____ . Tutaméia. 4ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
5.
_____ . Primeiras estórias. 13ª ed., Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
6.
_____ . Sagarana. 12ª ed., Rio de Janeiro: José
Olympio, 1970.
7.
_____ . Noites do sertão. 5ª ed., Rio de
Janeiro: José Olympio, 1976.
* Psiquiatra. Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro da Academia Brasileira
de Médicos Escritores.
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