A CLÍNICA DO DR. JOÃO ROSA
QUEM MÓI NO ASP’RO NÃO FANTASEIA (9:11)
Marco Aurélio Baggio
João Guimarães Rosa não tolerou ser
médico por mais de dois anos, clinicando na roça, na então pequenina Itaguara.
Consta que teria chorado ao fazer o parto de sua primeira filha, Vilma, tendo a
parturiente, sua esposa Lygia, que tranqüilizá-lo. Decidiu abandonar de vez a Medicina após atender a laborioso parto
no desamparo de um casebre do interior mineiro. (7)
A prática da
Medicina é uma das mais nobres atividades humanas, das que mais exigem
peculiares atributos humanos articulados em
gonzo, para se poder exercê-la. De uma parte, o médico há que ser dotado
da sensibilidade empática para captar a queixa e o sofrimento do paciente,
aliada ao sentimento de solidariedade. Tudo isso acionando as fímbrias afetivas
da compaixão para com o outro ser humano combalido.
De outra parte,
o médico deve ser capaz de acionar a favor da recuperação da saúde de seu
cliente os melhores recursos terapêuticos existentes na sua sociedade, aqueles,
exatamente, consagrados com a chancela da eficácia terapêutica cientificamente
comprovada. E, em outra vertente, compete ao médico estar apetrechado com
dispositivo de objetividade e realismo para o incerto e árduo exercício de sua
prática. Por fim, o médico tem de ser dotado de incisiva frieza ao deparar com
a falibilidade humana e a morte.
Não é fácil. Fé
que não é não.
Muitos, os
delicados, preferem desistir...
Outros, tantos,
pegam um viés qualquer, uma chefia, um equipamento, uma prática mais soft,
light, diet, sweet, in, para suportar sua medicina.
Ainda outros protegem-se por detrás de
aventais, convenções, procedimentos burocráticos ou pura e simples procrastinação:
“empurroterapia”.
Quando comecei
na clínica psiquiátrica, estava em voga uma técnica psicoterápica muito
peculiar: a “palmo-omoplato-terapia”. Muitos colegas da especialidade
praticavam a psicoterapia do “tapinha nas costas”, do cliente. E disso não
passava. Desde então, houve um enorme avanço. Hoje conceituamos e praticamos
modos bem descritos, tais como clínica psiquiátrica, psicanálise clássica,
psicoterapia da orientação analítica, psicoterapia breve, psicoterapia adequada
à condição psíquica e existencial do cliente, psicoterapia cognitiva e
psicoterapia em grupo.
Há anos
descobri que ser médico é ser clínico. Clínico é o profissional capaz de se ocupar terapeuticamente daquele ser
humano que está aleitado, em sofrimento físico e psíquico. Clínico é quem é
dotado de sabedoria para receber todas as influências, acolher todas as
aferências, solicitar e avaliar todos os dados dos exames subsidiários e, daí,
extrair uma resultante como sólida hipótese diagnóstica, desenredando-se em
diagnóstico diferencial, para instituir o melhor conjunto terapêutico
disponível, nas circunstâncias. Clínico é, para mim, aquele que possui o dom de
acolher-se e funcionar como via final comum de todos os procedimentos médicos.
O resto é subsidiário, coadjuvante, acessório.
A clínica
Clínica é arte
e prática de bem atender seres humanos, resvalados em desamparo, atingidos pela
fragilidade de sua condição e afetados pela doença.
Medicina é
clínica. Clínica é arte no agir e no
fazer acionamento de recursos de recuperação de saúde.
Morbus arcere, dolores lenire,
aegrotos sanare.
Evitar a
doença. Aliviar a dor. Tratar o doente. São formulações hipocráticas, lema de
nossa valorosa Academia Mineira de Medicina. A esse acrescentaria: deter o avanço da doença. Estabilizar o quadro
clínico. Revertê-lo para algum ponto possível. Prevenir evoluções patológicas.
Educar para a boa via. Oferecer ajuda. Dar acolhimento na aflição.
Solidarizar-se no sofrimento. Abarcar. Abranger. Consolar o inexorável. Instilar
confiança.
A clínica é uma
das mais nobres atividades que um homem pode vir a desempenhar. Para exercê-la,
é preciso desenvolver uma dotação específica de valores humanísticos de elevada
qualidade, que abrange paciência, atenção, cuidado para com o dessemelhante
achacado, tirocínio, persistência, capacidade de absorção de confissões e de
segredos, eqüidade, sensibilidade, firmeza, tolerância, compaixão,
diretividade, boa educação e bom humor, atualização científica, capacidade
diagnóstica, de avaliação prognóstica e de implementação terapêutica. Além de
paciência, muita paciência.
O clínico tem
de confeccionar uma noção bem depurada acerca da boa conduta, que atende pelo
nome de ética. Há uma ética médica preconizada pelos Conselhos de Medicina, pelas
Associações Médicas e pelas Academias de Medicina, que funciona como referência
abalizada em qualidade. Sabemos que ética encurta caminhos, poupa desgastes,
instrui maneiras de superar dificuldades e de ir adiante. Infelizmente, as
instituições que empregam e aquelas que exploram o trabalho médico não estão
sujeitas a corresponder no mesmo diapasão. Sua ética é menor: mais atendimentos
a baixo custo, medicina como negócio, visando a obter lucro para os
empreendedores. Também os pacientes não estão obrigados, minimamente que seja,
a portar-se em nível ético de consideração, educação, civilidade e respeito
para com o médico.
Assim, a
prática clínica padece de uma desarmonia habitual de posturas, mediante a qual
o médico se vê obrigado a manter-se em um nível elevado e nobre de
posicionamento profissional, enquanto as empresas, os serviços e os usuários,
freqüentemente, agem provocativamente, rebaixando, para o nível dos negócios ou
dos direitos sem correspondência em envolvimento e responsabilidade, o padrão
das relações.
O clínico em
exercício, hoje, sabe que a maior parte das afecções somáticas e,
principalmente, as psíquicas são de longo tempo de evolução. Daí decorre uma
das questões cruciais do desperdício dos esforços e dos recursos médicos: a falta
de adesão dos pacientes aos procedimentos terapêuticos eficazes propostos. Sem
uma boa compliance, a prática clínica torna-se um quase constante ter que
“começar de novo”, a cada consulta. O médico assim exposto deve munir-se de
elevadas doses de esperança a cada novo caso que atende e para o qual prescreve
tratamento, sabendo que expressiva percentagem dos clientes não terá paciência
para submeter-se aos procedimentos pelo tempo mínimo terapeuticamente
necessário.
Sem adesão ao
tratamento e sem investimento de tempo e de recursos, a medicina desaparece, e
a patologia se croniciza e se agrava.
O clínico
médico de escorreita formação universitária e pós-universitária ainda é
acossado por um outro fenômeno que, sempre tendo existido de uma forma desclassificada
como “charlatanismo” ou “prática ilegal da medicina”, hoje vigora como “práticas alternativas”. Uma mistura de
mistificação, embuste, pretensão excessiva, pseudociência, fanatismo e
ignorância com práticas levemente brandas, doces, decorativas e charmosas,
dotadas de baixo impacto terapêutico, rastejando índices de sucesso próximos
aos trinta por cento do efeito placebo, são oferecidas a mãos cheias ao
público.(6)
A confusão
resultante de procedimentos “alternativos”, provenientes do fundo dos tempos e
de diferentes culturas, de repente alçados espetaculosamente como descobertas
maravilhosas, empregados como panacéias para males não curados pela medicina
científica, deve-se ao abuso da liberdade que hoje vigora, aliado ao comodismo
e à lei do menor esforço, que preponderam na natureza humana, vinculados a
forte propensão das pessoas ao auto-engano.
O clínico, no
exercício de sua arte terapêutica, deve manter uma postura compassiva frente a
essas modas e más práticas – que não pode combater nem muito menos erradicar –
ao mesmo tempo em que burila e aperfeiçoa, constantemente, as excelências de
sua atividade. A soma de casos bem tratados e de situações bem resolvidas é seu
galardão e seu marketing.
A boa
compreensão do interjogo dos fatores policausais da fisiopatologia e da
farmacocinética, bem como o entendimento dos operadores psicodinâmicos
presentes nos casos bem cuidados, é o que chancela a qualidade de seu trabalho.
Isso constitui o diferencial que o distingue das práticas meramente sugestivas,
brandas, leves, sem compromisso com a obtenção de resultados terapêuticos.(4)
Ser clínico é
ter de se postar, bem instalado, em barco sobranceiro, no centro da correnteza
do rio do cuidado humano, brioso e qualificado, sem se deixar empoçar em remansos
nem se perder em igarapés, disposto a manter-se como referência e paradigma, ao
longo de todo o transcurso de sua carreira.(4)
y y y
Homem dotado de
fina e delicada sensibilidade, o Dr.
João Guimarães Rosa não suportou manter-se como médico clínico por exatamente
lhe sobrar esta e lhe faltar a dureza do corte que faz a separação entre a dor
e o destino do paciente e o limite da eficácia da prática do médico e sua vida.
O Dr. João,
para alegria e proveito nosso, foi-se transformar no homem de espírito, o
escritor Guimarães Rosa. A carreira diplomática que a seguir abraçou após
abandonar a medicina foi mais compatível em propiciar suporte ao gênio das
letras que estava latente. Do médico teria sobrado pouca coisa. Ou não?
Suas acuradas
descrições de aragens, afetos, cenários e personagens por acaso não são finas e
delicadas descrições da mais pura ourivesaria anamnéstica? (1)
Seu acendrado
interesse pelas estórias que entretece, sustentado pelo relato, nelas
implicando homens, animais, espaço geográfico, hábitos e falas, encadeados numa
seqüência de peripécias que evoluem de modo exemplar - qual peça de teatro
grego -, exibindo as várias possibilidades de transcurso de processo, tal como
se vê na clínica, através da história natural da evolução da doença, talvez
derive de seu treinamento clínico.
Guimarães Rosa
é um fiador da vida. Diz que um precisa ter coragem e alegria para adquirir gã
de atrever-se a fazer acontecer. Alerta que tudo é muito perigoso, mas que essa
vida é cheia de ocultos caminhos. Tudo sai é de escuros buracos, tirante o que
vem do céu.
Se não foi
capaz de tolerar o mau hálito da realidade da prática clínica, em seu
cerzidinho miúdo, João Rosa se suplantou, escandiu, suprassumiu-se, alçando
páramos excelsos de composição dos componentes arrevesados dos seres humanos,
criando uma obra que também pode ser lida e compreendida como um “Tratado de
Clínica Médica” acerca dos modos e das teimosias em que convivem os seres
humanos.(3)
Vida.
Problemas. Conflitos. Impasses. Tentativas. Irresoluções. Erros. Acertos.
Sínteses. Superações. Desenvolvimento do processo vivencial. Essência de ser.
Distensão para frente, em prolepse: existência. Possuir. Dasein: estar no
mundo. Se virar. Pôr-se para jambrar. Evoluir. Resolver. Superar-se. Atingir
outro novo mais elevado patamar. Do círculo vicioso maligno descendente rumo ao
catrumano, para o círculo vitorioso benigno ascendente rumo à edificação
humana. Do radical bom, belo feroz, em ofício de vingança – Diadorim -, ao
radical mal sujo carôcho, em missão de impor a pura maldade perversidade -
Hermógenes - para a instrução dum leguelé qualquer - um Riobaldo de coragens
vacilantes e afetos muito segundas e sábados - rumo a um sujeito de discurso e
trajetória - cão finório, de cachorrando por esses sertões, a cão mestre
rastreador de idéias ligeiras por fundo de todos os matos, amém!
Penso
ousadamente que as artes médicas do orador da turma de 1930 da Faculdade de
Medicina de Minas Gerais - nossa casa-mãe da Avenida Alfredo Balena -,
absorvidas pelo jovem estudante proveniente do burgo do coração, mantiveram
acesas as virtudes de sensibilidade, de solidariedade e de compaixão que
instruíram o fabuloso escritor em sua missão de espaventar a pobreza do sertão
da existência, alumiando com o holofote de seus muitos outros saberes as trevas
da ignorância e do preconceito.
Rosa frustrado
em medicina elevou-se, alcandorado, ao nível de Dante, de Shakespeare, de
Freud, de Fernando Pessoa e de Winnicott, como um gigante clínico, descrevendo
a psique dos seres humanos.(10)
Bendita
frustração! Sofrido Guimarães Rosa! Tamanha bondade exigiu demais de seu
coração, falecendo feliz e realizado, aos 57 anos, três dias após tomar posse
na cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras, que havia sido ocupada por
seu chefe e amigo João Neves da Fontoura, em 19 de novembro de 1967.(8)
Costumo dizer
que os muito bons morrem cedo. Por isso, a cada dia apuro mais minha maldade,
contendo-me em exercê-la.
Clínico maior
da transeunte condição humana em face da existência pela Terra, Guimarães Rosa
nos deixou um legado que constitui uma
Bíblia - um livro completo - acerca das maneiras como nos portamos e nos
comportamos frente aos avatares e às descortesias da vida.
Nesse grande
livro - sua obra - o autor nos indica os vários poucos caminhos possíveis de
serem por nós pertrilhados.(2)
“No sertão da
existência, cada homem pode se encontrar ou se perder. Como critério, ele tem
apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais.” (5:94)
Como nada mais?
Temos também todo o patrimônio cultural da humanidade que está disponível para
nós. Basta encontrá-lo, lê-lo, codificá-lo, depurá-lo e publicá-lo com força de
lei, para que possamos aproximar-nos mais depressa da vertente melhor de nossa
humanidade.
“Por que é que
todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez?” (10:235)
Aos médicos
quase nunca foi concedida a prerrogativa de exercício do poder político pleno.
Seríamos melhor humanistas que os políticos de carreira? Com certeza.
O âmbito do exercício do poder outorgado
ao médico sempre foi o de lidar com a saúde e a doença, a vida e a morte.
Embora possa
pouco frente ao montante avassalador dos males e das dores dos homens, ao
médico é facultado fantasiar sobre a expansão de seus recursos terapêuticos,
enquanto professa o espargir da bondade como meio eficaz de amenizar as
ignorâncias e as contundências desse mundo. E em seus raros momentos de
devaneio, pode ele delirar as delícias de uma utopia em que todos os homens
pudessem ser solidários amáveis irmãos. Assim às vezes tem sido.
Esse anseio
explica em parte o fato de médicos tornarem-se humanistas, filantropos,
benfeitores e artistas. As musas Érato e Calíope se lhes apresentam, pondo-os a
compor produção literária de que nossa Sobrames - Sociedade Brasileira de
Médicos Escritores - é veraz testemunha.
No entanto, a
medicina tem-se complexificado a um ponto quase impossível de alguém acompanhar
a evolução de seu conhecimento.
Desgraçadamente, em nosso meio, a profissão médica proletarizou-se, e o
jovem profissional da saúde tem de se adaptar, desairosamente muitas vezes, ao
exercício de sua atividade nas condições mais precárias de sucateamento dos
serviços.
Mais que nunca,
o médico, hoje, mói no bruto, no duro, no seco, no áspero.
Obrigado a
operar no nível da cruel realidade das urgências, em carência de meios e
inconstância de processos, tendo de improvisar e se deixar desgastar pela
imposição nojenta da incúria que comanda os serviços, o médico se espanta com a
estupidez do sistema.
Como fantasiar
o exercício de uma medicina digna e correta, em meio a tamanha batalha de
incompetências, vaidades e irresponsabilidades
que são a tônica da conduta e do desempenho de todos aqueles que se
alçam à posição de mandatários de nossos desserviços de saúde? Até quando? Até
onde suporta o jovem médico manter acesa a tocha de sua esperança em melhores
dias?
Trabalhando em
condições anéticas e antiéticas, ao médico só resta, como destino, fracassar.
De uma das muitas formas quaisquer. Ou então, apesar de tudo, juntar aqueles
quatro componentes iniciais já enumerados: sensibilidade empática,
solidariedade e compaixão, capacidade técnico-científica, objetividade e
realismo - e deles extrair a fantasia e a esperança para que possa manter-se no
campo, atuando com dignidade.
Vivemos tempos
de inquietude e desassossego, em que a principal tarefa imposta a toda a
humanidade é a busca do dinheiro. Ou a luta pela preservação da renda.
Evoluímos: a
humanidade já não vive mais para a guerra ou para evitar a fome e a miséria.
Essas ainda existem. Mas já não mais ocupam tempos, recursos e movimentos do
gênero humano como um todo, como antes. O dinheiro, como viabilizador geral de
relações, é o valor faltante, que é avidamente buscado. Ainda estamos na idade
do capitalismo explorador de juros, concentrador de pecúnia nas mãos dos
riquíssimos, que continuam, insensatamente, querendo mais e mais.
Dia virá em que
“fantaseio” um mundo onde a principal tarefa que os homens bons desempenharão
será o cuidado do homem pelo homem. Era em que, estando todos de barriga cheia
e de cupidez saciados – os duros trabalhos sendo executados por máquinas,
informática, capital e robôs, pelos dias afora, sob a égide do discernimento
que visa ao bem comum, imposto pela vontade política de toda a humanidade – os
homens poderão dedicar-se a sanar afecções, aliviar sofrimentos, reparar danos
e visar ao incremento do bem-estar geral de todos.
Quem mói no
as’pro da prática clínica desvalorizada e acossada de hoje adquire o direito de
delirar. Instruído por essa magnífica derivação da pulsão sexual de vida, que é
o desejo, expandimos nossa imaginação, a ponto de ela conceber, em fantasia, um
novo tempo, um novo modo, mediante o qual o grande valor, o diferencial, será a
capacidade de cada qual, comunistamente, tornar-se um “clínico” capaz de fazer
face, com adequação e dignidade, ao doente que em nosso íntimo habita. E que um
dia, a qualquer dia, precisará de ser por alguém cuidado e tratado.
Fantasio um
dia, uma era, em que os estímulos ao desenvolvimento pleno do potencial das
pessoas será não apenas possível, como o valor magno estruturante das relações
de convívio entre os homens, como também propiciará a promoção do bem-estar de
todos, no amanho geral. Em meio a essa barafunda que constitui nosso cotidiano,
vislumbro que assim tem sido. Continuaremos a caminhar nesse sentido nos anos
vindouros.
Clínica médica
Em
trinta e cinco anos de cotidiano exercício da clínica psi, aprendi que
Medicina não é
• improvisação;
• precariedade;
• quebra-galho;
• mera oferta de boa vontade;
• sacerdócio;
• negócio.
Não existe Medicina na quebra de
processos de tratamento, na interrupção de recursos por razões administrativas,
ou na atitude esquiva de prestação de serviços.
Outrossim, não
existe medicina de qualidade na penúria e na miséria.
Medicina também
não é linha de montagem, cadeia de produção em série, soma de números
estatísticos, competição por rendimentos ou mera coleção de dados
informatizados.
Mal atendido, o
paciente que buscou assistência deixa de sê-lo, torna-se reativo, irritadiço.
Sentindo-se mal tratado, o doente é atingido em sua dignidade como pessoa, o
que o induz a desqualificar, projetivamente, o médico e sua prescrição, jogando
a receita para o esquecimento.
Por tudo isso
de negativo que tantas vezes acontece, é necessário enfatizar os aspectos
positivos do exercício da profissão médica.
Podemos
comparar a Medicina a uma atividade de abundância e de dadivosidade, tal como
um bebê mamando no cheio e generoso peito materno até se fartar. Não pode haver
corte, interrupção, delonga, protelação ou mesquinharia. A boca carente e
faminta tem de encontrar logo o seio pleno onde atochar-se. O ser humano só
cresce, só evolui e só se pacifica quando suas carências encontram suas
plenitudes. Se assim não for, a insatisfação e a ira, de alguma forma
sub-reptícia, persistem, aí já minando o corpo, o ânimo e o psiquismo do
indivíduo.
É em decorrência
disso que podemos afirmar que o cliente tem que sair satisfeito da consulta
médica, certo de que foi totalmente bem atendido. Aí, então, passa a confiar na
prescrição e na indicação do médico. É quando entra em sintonia com o clima
positivo de entendimento obtido na consulta, o que estabelece as bases para a
reversão da patologia e determina o início de sua melhora de saúde. Bem
atendido, o doente tem reforçados os sentimentos de auto-respeito e de
dignidade. Além disso, adquire uma perspectiva mais realística acerca de suas
moléstias, no mesmo momento em que tem retemperada sua esperança de melhoria.
Sendo veraz o
que foi expresso, compreende-se o quanto a prática médica em nosso País está
desfalcada de condições operacionais imprescindíveis ao correto atendimento da
saúde da população brasileira. O modelo neoliberal do Presidente Cardoso optou
por investir em saneamento de bancos e no pagamento de juros aos megadetentores
de capital. Ano a ano, gasta-se menos com saúde. Isso é opção política que implica
toda a nacionalidade. Os médicos e seus valiosos auxiliares não podem pagar por
isso. Aviões com manutenção precária tendem a apresentar mais falhas. Ninguém
faz milagre de multiplicação de remédios. Medicina é trabalho sério, empenhado,
investido contra a propensão biológica do ser humano em adoecer.
Guimarães Rosa
suprassumiu a Medicina. Pela força de seu gênio, criou uma outra natureza -
lingüística, artística, cultural - pelo entretecer da intimidade de seus
personagens. Seres incompletos, inseridos na miséria da condição humana,
erigidos em subjetividade, de onde surdem, afloram, como participantes do
universo humano. Rosa concebia o homem como um ser precário, condenado a
cometer a aventura da travessia da existência apetrechado de sua intuição, sua
coragem, sua alegria e seu amor, enfeixados apenas por sua inteligência. Ele
descreveu os primeiros heróis resolutos da literatura brasileira – aqueles
capazes da ação mais perfeita. Riobaldo, Diadorim, Soropita, Joca Ramiro,
Medeiro Vaz, Soroco e Melim-Meloso são exemplos disso.
Medicina liberal
A
Medicina como prática clínica ancilar será sempre necessária para se lidar com
aquelas áreas do doente retardadas em seu desenvolvimento ou periclitadas nos
embates com as vicissitudes da vida.
A Medicina
liberal, exercício de maestria e arte, por sua vez, jamais irá desaparecer. O
médico profissional liberal trabalha com nobres valores humanos, tais como
empatia, empenho, capacidade de inspirar confiança e talento para gostar de se
relacionar com seu cliente. A isso, soma-se sua formação permanente, o que o
mantém atualizado com os avanços conceituais e terapêuticos da Medicina. Seu
sistema de trabalho é simples, claro, direto, sem prepostos ou intermediários.
A prática da Medicina liberal sendo a arte de interagir do profissional com o
doente, sem ambigüidades, é aquela que permite o desfrute de maiores benefícios
para ambos, envolvidos numa relação calorosa e implicada pelo transcurso de
tempo que for preciso.(6)
Faço aqui minha
profissão de fé. Por mais difícil que pareça, a Medicina liberal irá manter-se como metro e referência, como a
prática médica por excelência.
Por mais que se
faça medicina de massas e medicina por convênios, sempre haverá pessoas que
buscarão a assistência personalizada e nela se manterão implicados. Distinção e
excelência são valores imorredouros.
y y y
A clínica do Dr. Rosa é exemplar. Nela
se encontra uma completa farmacopéia lingüística, capaz de “pensar” os
diferentes males que assolam a condição do homem na travessia de sua
existência.
“O que gasta,
vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E
a alegria de amor - compadre meu Quelemém diz.” (10:12)
“Eu sou é eu
mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de
muita coisa. O senhor concedendo eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o
senhor solta em minha frente uma idéia ligeira e eu rastreio essa por fundo de
todos os matos, amém!” (10:15)
“O senhor...
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.” (10:20)
“Mira veja: o
que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si.
Para isso é que o muito se fala?” (10:33)
“Um está sempre
no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está
na saída nem na chegada: êle se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (10:52)
“Guerras e
batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte.” (10:77)
“Sucedido
desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto.” (10:78)
“Resolvi ter
brio... Eu estava indo a meu esmo.” (10:81)
“Amanheci minha
aurora.” (10:84)
“Muita coisa
importante falta nome.” (10:86)
“Eu queria o
ferver.” (10:96)
“Pensar mal é
fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se
desiludir e desmisturar.” (10:114)
“Homem? É coisa
que treme.” (10:118)
“Esta vida está
cheia de ocultos caminhos.” (10:119)
“Mas a natureza
da gente é muito segundas-e-sábados.” (10:139)
“Quase tudo o
que gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?” (10:139)
“Um ainda
não é um: quando ainda
faz parte com
todos.” (10:142)
“Mas eu fui
sempre um fugidor. Ao que fugi até da
precisão da fuga.” (10:142)
“Coração vige
feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.
Coração mistura amores.
Tudo cabe.” (10:145)
“...
continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos.” (10:145)
“Confusa é a
vida da gente;” (10:146)
“quer não é o caso inteirado em si, mas a sôbre-coisa,
a outra-coisa.” (10:152)
“Tem um ponto
da marca, que dêle não se pode mais voltar para trás” (10:163)
“Vida, e
guerra, é o que é: êsses tontos movimentos, ...” (10:175)
“O que carece é
a companheiragem de todos no simples, assim irmãos.” (10:189)
“Toda hora
estou em julgamento.” (10:198)
“O vau do mundo
é a alegria.” (10:231)
“- vau do mundo
é a coragem...” (10:232)
“Mestre não é
quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se
reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez” (10:235)
“Todos
estão loucos nêste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só,
e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores
diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” (10:236)
“Qualquer
amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” (10:236)
“Ah, para o prazer e para ser
feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência... Todo
caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais - a gente
levanta, a gente sobe a gente volta!
Deus resvala? Mire e veja. Tenho mêdo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe.” (10:237)
“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta.” (10:241)
“A liberdade é assim, movimentação”. (10:243)
“Vá se ter dó de cangussú, dever finezas
a escorpião!” (10:255)
“Então, onde é que está a verdadeira
lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?” (10:260)
“É
no junto do que sabe bem, que a
gente aprende o melhor...” (10:261)
“Então o mundo era muita doideira e
pouca razão?” (10:262)
“O que era isso, que a desordem da vida
podia sempre mais do que a gente?” (10:268)
“Quem
vence, é custoso não
ficar com a cara de
demônio.” (10:270)
“A mó de moinho, que, nela não caindo o
que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói.” (10:307)
“Eu tinha medo de homem humano.” (10:307)
“Serras que vão saindo, para destapar
outras serras. Tem de tôdas as coisas. Vivendo, se aprende, mas o que aprende
mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” (10:312)
“Somente com a alegria é que a gente
realiza bem - mesmo até as tristes ações.” (10:316)
“A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é
topar firme nas invejas dos outros restantes.” (10:326)
“Eu estava forro, glorial, assegurado:” (10:327)
“- Porque a vida é mutirão de todos, por
todos remexida e temperada.” (10:348)
“Acho que eu não era capaz de ser uma
coisa só o tempo todo.” (10:355)
“Atravessei meus fantasmas?” (10:365)
“A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito,
de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no
comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder
encontrar e saber? Mas, êsse norteado, tem. Tem que
ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que
é.” (10:366)
“Chefe não era para arrecadar vantagem,
mas para emendar o defeituoso.” (10:373)
“Para vencer justo, o senhor não
olhe nem veja o inimigo, volte para sua obrigação.” (10:382)
“O passado - é ossos em redor de ninho
de coruja...” (10:394)
“Sossêgo traz desejos.” (10:396)
“E eu vi que: menos me entendiam, mais
me davam os maiores podêres de chefia maior.” (10:408)
“Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda
não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.” (10:443)
“Vocês têm paciência, meus filhos. O
mundo é meu, mas é demorado...” (10:447)
“Tudo sai mesmo é de escuros buracos,
tirante o que vem do céu. ”(10:451)
“Nonada. O diabo não há! É o que
digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia.
Leminiscata” (10:460)
Referências Bibliográficas
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