terça-feira, 26 de março de 2013

A CLÍNICA DO DR. JOÃO ROSA


A CLÍNICA DO DR. JOÃO ROSA


 

QUEM MÓI NO ASP’RO NÃO FANTASEIA (9:11)


 

                                                Marco Aurélio Baggio             


 

         João Guimarães Rosa não tolerou ser médico por mais de dois anos, clinicando na roça, na então pequenina Itaguara. Consta que teria chorado ao fazer o parto de sua primeira filha, Vilma, tendo a parturiente, sua esposa Lygia, que tranqüilizá-lo. Decidiu abandonar  de vez a Medicina após atender a laborioso parto no desamparo de um casebre do interior mineiro. (7)

 

        A prática da Medicina é uma das mais nobres atividades humanas, das que mais exigem peculiares atributos humanos articulados em  gonzo, para se poder exercê-la. De uma parte, o médico há que ser dotado da sensibilidade empática para captar a queixa e o sofrimento do paciente, aliada ao sentimento de solidariedade. Tudo isso acionando as fímbrias afetivas da compaixão para com o outro ser humano combalido.

 

        De outra parte, o médico deve ser capaz de acionar a favor da recuperação da saúde de seu cliente os melhores recursos terapêuticos existentes na sua sociedade, aqueles, exatamente, consagrados com a chancela da eficácia terapêutica cientificamente comprovada. E, em outra vertente, compete ao médico estar apetrechado com dispositivo de objetividade e realismo para o incerto e árduo exercício de sua prática. Por fim, o médico tem de ser dotado de incisiva frieza ao deparar com a falibilidade humana e a morte.

 

        Não é fácil. Fé que não é não.

 

        Muitos, os delicados, preferem desistir...

 

        Outros, tantos, pegam um viés qualquer, uma chefia, um equipamento, uma prática mais soft, light, diet, sweet, in, para suportar sua medicina.

 

        Ainda outros protegem-se por detrás de aventais, convenções, procedimentos burocráticos ou pura e simples procrastinação: “empurroterapia”.

 

        Quando comecei na clínica psiquiátrica, estava em voga uma técnica psicoterápica muito peculiar: a “palmo-omoplato-terapia”. Muitos colegas da especialidade praticavam a psicoterapia do “tapinha nas costas”, do cliente. E disso não passava. Desde então, houve um enorme avanço. Hoje conceituamos e praticamos modos bem descritos, tais como clínica psiquiátrica, psicanálise clássica, psicoterapia da orientação analítica, psicoterapia breve, psicoterapia adequada à condição psíquica e existencial do cliente, psicoterapia cognitiva e psicoterapia em grupo.

 

        Há anos descobri que ser médico é ser clínico. Clínico é o  profissional capaz de se ocupar terapeuticamente daquele ser humano que está aleitado, em sofrimento físico e psíquico. Clínico é quem é dotado de sabedoria para receber todas as influências, acolher todas as aferências, solicitar e avaliar todos os dados dos exames subsidiários e, daí, extrair uma resultante como sólida hipótese diagnóstica, desenredando-se em diagnóstico diferencial, para instituir o melhor conjunto terapêutico disponível, nas circunstâncias. Clínico é, para mim, aquele que possui o dom de acolher-se e funcionar como via final comum de todos os procedimentos médicos. O resto é subsidiário, coadjuvante, acessório.

 

                    A clínica


 

        Clínica é arte e prática de bem atender seres humanos, resvalados em desamparo, atingidos pela fragilidade de sua condição e afetados pela doença.

 

        Medicina é clínica. Clínica é arte no agir  e no fazer acionamento de recursos de recuperação de saúde.

 

Morbus arcere, dolores lenire, aegrotos sanare.

 

        Evitar a doença. Aliviar a dor. Tratar o doente. São formulações hipocráticas, lema de nossa valorosa Academia Mineira de Medicina. A esse  acrescentaria: deter o avanço da doença. Estabilizar o quadro clínico. Revertê-lo para algum ponto possível. Prevenir evoluções patológicas. Educar para a boa via. Oferecer ajuda. Dar acolhimento na aflição. Solidarizar-se no sofrimento. Abarcar. Abranger. Consolar o inexorável. Instilar confiança.

 

        A clínica é uma das mais nobres atividades que um homem pode vir a desempenhar. Para exercê-la, é preciso desenvolver uma dotação específica de valores humanísticos de elevada qualidade, que abrange paciência, atenção, cuidado para com o dessemelhante achacado, tirocínio, persistência, capacidade de absorção de confissões e de segredos, eqüidade, sensibilidade, firmeza, tolerância, compaixão, diretividade, boa educação e bom humor, atualização científica, capacidade diagnóstica, de avaliação prognóstica e de implementação terapêutica. Além de paciência, muita paciência.

 

        O clínico tem de confeccionar uma noção bem depurada acerca da boa conduta, que atende pelo nome de ética. Há uma ética médica preconizada pelos Conselhos de Medicina, pelas Associações Médicas e pelas Academias de Medicina, que funciona como referência abalizada em qualidade. Sabemos que ética encurta caminhos, poupa desgastes, instrui maneiras de superar dificuldades e de ir adiante. Infelizmente, as instituições que empregam e aquelas que exploram o trabalho médico não estão sujeitas a corresponder no mesmo diapasão. Sua ética é menor: mais atendimentos a baixo custo, medicina como negócio, visando a obter lucro para os empreendedores. Também os pacientes não estão obrigados, minimamente que seja, a portar-se em nível ético de consideração, educação, civilidade e respeito para com o médico.

 

        Assim, a prática clínica padece de uma desarmonia habitual de posturas, mediante a qual o médico se vê obrigado a manter-se em um nível elevado e nobre de posicionamento profissional, enquanto as empresas, os serviços e os usuários, freqüentemente, agem provocativamente, rebaixando, para o nível dos negócios ou dos direitos sem correspondência em envolvimento e responsabilidade, o padrão das relações.

 

        O clínico em exercício, hoje, sabe que a maior parte das afecções somáticas e, principalmente, as psíquicas são de longo tempo de evolução. Daí decorre uma das questões cruciais do desperdício dos esforços e dos recursos médicos: a falta de adesão dos pacientes aos procedimentos terapêuticos eficazes propostos. Sem uma boa compliance, a prática clínica torna-se um quase constante ter que “começar de novo”, a cada consulta. O médico assim exposto deve munir-se de elevadas doses de esperança a cada novo caso que atende e para o qual prescreve tratamento, sabendo que expressiva percentagem dos clientes não terá paciência para submeter-se aos procedimentos pelo tempo mínimo terapeuticamente necessário.

 

        Sem adesão ao tratamento e sem investimento de tempo e de recursos, a medicina desaparece, e a patologia se croniciza e se agrava.

 

        O clínico médico de escorreita formação universitária e pós-universitária ainda é acossado por um outro fenômeno que, sempre tendo existido de uma forma desclassificada como “charlatanismo” ou “prática ilegal da medicina”, hoje vigora  como “práticas alternativas”. Uma mistura de mistificação, embuste, pretensão excessiva, pseudociência, fanatismo e ignorância com práticas levemente brandas, doces, decorativas e charmosas, dotadas de baixo impacto terapêutico, rastejando índices de sucesso próximos aos trinta por cento do efeito placebo, são oferecidas a mãos cheias ao público.(6)

 

        A confusão resultante de procedimentos “alternativos”, provenientes do fundo dos tempos e de diferentes culturas, de repente alçados espetaculosamente como descobertas maravilhosas, empregados como panacéias para males não curados pela medicina científica, deve-se ao abuso da liberdade que hoje vigora, aliado ao comodismo e à lei do menor esforço, que preponderam na natureza humana, vinculados a forte propensão das pessoas ao auto-engano.

 

        O clínico, no exercício de sua arte terapêutica, deve manter uma postura compassiva frente a essas modas e más práticas – que não pode combater nem muito menos erradicar – ao mesmo tempo em que burila e aperfeiçoa, constantemente, as excelências de sua atividade. A soma de casos bem tratados e de situações bem resolvidas é seu galardão e seu marketing.

 

        A boa compreensão do interjogo dos fatores policausais da fisiopatologia e da farmacocinética, bem como o entendimento dos operadores psicodinâmicos presentes nos casos bem cuidados, é o que chancela a qualidade de seu trabalho. Isso constitui o diferencial que o distingue das práticas meramente sugestivas, brandas, leves, sem compromisso com a obtenção de resultados terapêuticos.(4)

 

        Ser clínico é ter de se postar, bem instalado, em barco sobranceiro, no centro da correnteza do rio do cuidado humano, brioso e qualificado, sem se deixar empoçar em remansos nem se perder em igarapés, disposto a manter-se como referência e paradigma, ao longo de todo o transcurso de sua carreira.(4)

       

y  y y

 

 

        Homem dotado de fina  e delicada sensibilidade, o Dr. João Guimarães Rosa não suportou manter-se como médico clínico por exatamente lhe sobrar esta e lhe faltar a dureza do corte que faz a separação entre a dor e o destino do paciente e o limite da eficácia da prática do médico e sua vida.

 

        O Dr. João, para alegria e proveito nosso, foi-se transformar no homem de espírito, o escritor Guimarães Rosa. A carreira diplomática que a seguir abraçou após abandonar a medicina foi mais compatível em propiciar suporte ao gênio das letras que estava latente. Do médico teria sobrado pouca coisa. Ou não?

 

        Suas acuradas descrições de aragens, afetos, cenários e personagens por acaso não são finas e delicadas descrições da mais pura ourivesaria anamnéstica? (1)   

                   

        Seu acendrado interesse pelas estórias que entretece, sustentado pelo relato, nelas implicando homens, animais, espaço geográfico, hábitos e falas, encadeados numa seqüência de peripécias que evoluem de modo exemplar - qual peça de teatro grego -, exibindo as várias possibilidades de transcurso de processo, tal como se vê na clínica, através da história natural da evolução da doença, talvez derive de seu treinamento clínico.

 

        Guimarães Rosa é um fiador da vida. Diz que um precisa ter coragem e alegria para adquirir gã de atrever-se a fazer acontecer. Alerta que tudo é muito perigoso, mas que essa vida é cheia de ocultos caminhos. Tudo sai é de escuros buracos, tirante o que vem do céu.

 

        Se não foi capaz de tolerar o mau hálito da realidade da prática clínica, em seu cerzidinho miúdo, João Rosa se suplantou, escandiu, suprassumiu-se, alçando páramos excelsos de composição dos componentes arrevesados dos seres humanos, criando uma obra que também pode ser lida e compreendida como um “Tratado de Clínica Médica” acerca dos modos e das teimosias em que convivem os seres humanos.(3)

 

        Vida. Problemas. Conflitos. Impasses. Tentativas. Irresoluções. Erros. Acertos. Sínteses. Superações. Desenvolvimento do processo vivencial. Essência de ser. Distensão para frente, em prolepse: existência. Possuir. Dasein: estar no mundo. Se virar. Pôr-se para jambrar. Evoluir. Resolver. Superar-se. Atingir outro novo mais elevado patamar. Do círculo vicioso maligno descendente rumo ao catrumano, para o círculo vitorioso benigno ascendente rumo à edificação humana. Do radical bom, belo feroz, em ofício de vingança – Diadorim -, ao radical mal sujo carôcho, em missão de impor a pura maldade perversidade - Hermógenes - para a instrução dum leguelé qualquer - um Riobaldo de coragens vacilantes e afetos muito segundas e sábados - rumo a um sujeito de discurso e trajetória - cão finório, de cachorrando por esses sertões, a cão mestre rastreador de idéias ligeiras por fundo de todos os matos, amém!

 

        Penso ousadamente que as artes médicas do orador da turma de 1930 da Faculdade de Medicina de Minas Gerais - nossa casa-mãe da Avenida Alfredo Balena -, absorvidas pelo jovem estudante proveniente do burgo do coração, mantiveram acesas as virtudes de sensibilidade, de solidariedade e de compaixão que instruíram o fabuloso escritor em sua missão de espaventar a pobreza do sertão da existência, alumiando com o holofote de seus muitos outros saberes as trevas da ignorância e do preconceito.

 

        Rosa frustrado em medicina elevou-se, alcandorado, ao nível de Dante, de Shakespeare, de Freud, de Fernando Pessoa e de Winnicott, como um gigante clínico, descrevendo a psique dos seres humanos.(10)

 

        Bendita frustração! Sofrido Guimarães Rosa! Tamanha bondade exigiu demais de seu coração, falecendo feliz e realizado, aos 57 anos, três dias após tomar posse na cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras, que havia sido ocupada por seu chefe e amigo João Neves da Fontoura, em 19 de novembro de 1967.(8)

 

        Costumo dizer que os muito bons morrem cedo. Por isso, a cada dia apuro mais minha maldade, contendo-me em exercê-la.

 

        Clínico maior da transeunte condição humana em face da existência pela Terra, Guimarães Rosa nos deixou um legado que constitui uma  Bíblia - um livro completo - acerca das maneiras como nos portamos e nos comportamos frente aos avatares e às descortesias da vida.

 

        Nesse grande livro - sua obra - o autor nos indica os vários poucos caminhos possíveis de serem por nós pertrilhados.(2)                                 

       

“No sertão da existência, cada homem pode se encontrar ou se perder. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais.” (5:94)

   

        Como nada mais? Temos também todo o patrimônio cultural da humanidade que está disponível para nós. Basta encontrá-lo, lê-lo, codificá-lo, depurá-lo e publicá-lo com força de lei, para que possamos aproximar-nos mais depressa da vertente melhor de nossa humanidade.

 

        “Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez?” (10:235)

 

        Aos médicos quase nunca foi concedida a prerrogativa de exercício do poder político pleno. Seríamos melhor humanistas que os políticos de carreira? Com certeza.

 

        O âmbito do exercício do poder outorgado ao médico sempre foi o de lidar com a saúde e a doença, a vida e a morte.

 

        Embora possa pouco frente ao montante avassalador dos males e das dores dos homens, ao médico é facultado fantasiar sobre a expansão de seus recursos terapêuticos, enquanto professa o espargir da bondade como meio eficaz de amenizar as ignorâncias e as contundências desse mundo. E em seus raros momentos de devaneio, pode ele delirar as delícias de uma utopia em que todos os homens pudessem ser solidários amáveis irmãos. Assim às vezes tem sido.

        Esse anseio explica em parte o fato de médicos tornarem-se humanistas, filantropos, benfeitores e artistas. As musas Érato e Calíope se lhes apresentam, pondo-os a compor produção literária de que nossa Sobrames - Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - é veraz testemunha.

 

        No entanto, a medicina tem-se complexificado a um ponto quase impossível de alguém acompanhar a evolução de seu conhecimento.  Desgraçadamente, em nosso meio, a profissão médica proletarizou-se, e o jovem profissional da saúde tem de se adaptar, desairosamente muitas vezes, ao exercício de sua atividade nas condições mais precárias de sucateamento dos serviços.

 

        Mais que nunca, o médico, hoje, mói no bruto, no duro, no seco, no áspero.

 

        Obrigado a operar no nível da cruel realidade das urgências, em carência de meios e inconstância de processos, tendo de improvisar e se deixar desgastar pela imposição nojenta da incúria que comanda os serviços, o médico se espanta com a estupidez do sistema.

 

        Como fantasiar o exercício de uma medicina digna e correta, em meio a tamanha batalha de incompetências, vaidades e irresponsabilidades  que são a tônica da conduta e do desempenho de todos aqueles que se alçam à posição de mandatários de nossos desserviços de saúde? Até quando? Até onde suporta o jovem médico manter acesa a tocha de sua esperança em melhores dias?

 

        Trabalhando em condições anéticas e antiéticas, ao médico só resta, como destino, fracassar. De uma das muitas formas quaisquer. Ou então, apesar de tudo, juntar aqueles quatro componentes iniciais já enumerados: sensibilidade empática, solidariedade e compaixão, capacidade técnico-científica, objetividade e realismo - e deles extrair a fantasia e a esperança para que possa manter-se no campo, atuando com dignidade.

 

        Vivemos tempos de inquietude e desassossego, em que a principal tarefa imposta a toda a humanidade é a busca do dinheiro. Ou a luta pela preservação da renda.

 

        Evoluímos: a humanidade já não vive mais para a guerra ou para evitar a fome e a miséria. Essas ainda existem. Mas já não mais ocupam tempos, recursos e movimentos do gênero humano como um todo, como antes. O dinheiro, como viabilizador geral de relações, é o valor faltante, que é avidamente buscado. Ainda estamos na idade do capitalismo explorador de juros, concentrador de pecúnia nas mãos dos riquíssimos, que continuam, insensatamente, querendo mais e mais.

 

        Dia virá em que “fantaseio” um mundo onde a principal tarefa que os homens bons desempenharão será o cuidado do homem pelo homem. Era em que, estando todos de barriga cheia e de cupidez saciados – os duros trabalhos sendo executados por máquinas, informática, capital e robôs, pelos dias afora, sob a égide do discernimento que visa ao bem comum, imposto pela vontade política de toda a humanidade – os homens poderão dedicar-se a sanar afecções, aliviar sofrimentos, reparar danos e visar ao incremento do bem-estar geral de todos.

 

        Quem mói no as’pro da prática clínica desvalorizada e acossada de hoje adquire o direito de delirar. Instruído por essa magnífica derivação da pulsão sexual de vida, que é o desejo, expandimos nossa imaginação, a ponto de ela conceber, em fantasia, um novo tempo, um novo modo, mediante o qual o grande valor, o diferencial, será a capacidade de cada qual, comunistamente, tornar-se um “clínico” capaz de fazer face, com adequação e dignidade, ao doente que em nosso íntimo habita. E que um dia, a qualquer dia, precisará de ser por alguém cuidado e tratado.

 

        Fantasio um dia, uma era, em que os estímulos ao desenvolvimento pleno do potencial das pessoas será não apenas possível, como o valor magno estruturante das relações de convívio entre os homens, como também propiciará a promoção do bem-estar de todos, no amanho geral. Em meio a essa barafunda que constitui nosso cotidiano, vislumbro que assim tem sido. Continuaremos a caminhar nesse sentido nos anos vindouros.

 

 

Clínica médica

 

        Em  trinta e cinco anos de cotidiano exercício da clínica psi, aprendi que Medicina não é

        • improvisação;

        • precariedade;

        • quebra-galho;

        • mera oferta de boa vontade;

        • sacerdócio;

        • negócio.

 

        Não existe Medicina na quebra de processos de tratamento, na interrupção de recursos por razões administrativas, ou na atitude esquiva de prestação de serviços.

 

        Outrossim, não existe medicina de qualidade na penúria e na miséria.

 

        Medicina também não é linha de montagem, cadeia de produção em série, soma de números estatísticos, competição por rendimentos ou mera coleção de dados informatizados.

 

        Mal atendido, o paciente que buscou assistência deixa de sê-lo, torna-se reativo, irritadiço. Sentindo-se mal tratado, o doente é atingido em sua dignidade como pessoa, o que o induz a desqualificar, projetivamente, o médico e sua prescrição, jogando a receita para o esquecimento.

 

        Por tudo isso de negativo que tantas vezes acontece, é necessário enfatizar os aspectos positivos do exercício da profissão médica.

 

        Podemos comparar a Medicina a uma atividade de abundância e de dadivosidade, tal como um bebê mamando no cheio e generoso peito materno até se fartar. Não pode haver corte, interrupção, delonga, protelação ou mesquinharia. A boca carente e faminta tem de encontrar logo o seio pleno onde atochar-se. O ser humano só cresce, só evolui e só se pacifica quando suas carências encontram suas plenitudes. Se assim não for, a insatisfação e a ira, de alguma forma sub-reptícia, persistem, aí já minando o corpo, o ânimo e o psiquismo do indivíduo.

 

        É em decorrência disso que podemos afirmar que o cliente tem que sair satisfeito da consulta médica, certo de que foi totalmente bem atendido. Aí, então, passa a confiar na prescrição e na indicação do médico. É quando entra em sintonia com o clima positivo de entendimento obtido na consulta, o que estabelece as bases para a reversão da patologia e determina o início de sua melhora de saúde. Bem atendido, o doente tem reforçados os sentimentos de auto-respeito e de dignidade. Além disso, adquire uma perspectiva mais realística acerca de suas moléstias, no mesmo momento em que tem retemperada sua esperança de melhoria.

 

        Sendo veraz o que foi expresso, compreende-se o quanto a prática médica em nosso País está desfalcada de condições operacionais imprescindíveis ao correto atendimento da saúde da população brasileira. O modelo neoliberal do Presidente Cardoso optou por investir em saneamento de bancos e no pagamento de juros aos megadetentores de capital. Ano a ano, gasta-se menos com saúde. Isso é opção política que implica toda a nacionalidade. Os médicos e seus valiosos auxiliares não podem pagar por isso. Aviões com manutenção precária tendem a apresentar mais falhas. Ninguém faz milagre de multiplicação de remédios. Medicina é trabalho sério, empenhado, investido contra a propensão biológica do ser humano em adoecer.

 

        Guimarães Rosa suprassumiu a Medicina. Pela força de seu gênio, criou uma outra natureza - lingüística, artística, cultural - pelo entretecer da intimidade de seus personagens. Seres incompletos, inseridos na miséria da condição humana, erigidos em subjetividade, de onde surdem, afloram, como participantes do universo humano. Rosa concebia o homem como um ser precário, condenado a cometer a aventura da travessia da existência apetrechado de sua intuição, sua coragem, sua alegria e seu amor, enfeixados apenas por sua inteligência. Ele descreveu os primeiros heróis resolutos da literatura brasileira – aqueles capazes da ação mais perfeita. Riobaldo, Diadorim, Soropita, Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Soroco e Melim-Meloso são exemplos disso.

       

 

               Medicina liberal


 

 

        A Medicina como prática clínica ancilar será sempre necessária para se lidar com aquelas áreas do doente retardadas em seu desenvolvimento ou periclitadas nos embates com as vicissitudes da vida.

 

        A Medicina liberal, exercício de maestria e arte, por sua vez, jamais irá desaparecer. O médico profissional liberal trabalha com nobres valores humanos, tais como empatia, empenho, capacidade de inspirar confiança e talento para gostar de se relacionar com seu cliente. A isso, soma-se sua formação permanente, o que o mantém atualizado com os avanços conceituais e terapêuticos da Medicina. Seu sistema de trabalho é simples, claro, direto, sem prepostos ou intermediários. A prática da Medicina liberal sendo a arte de interagir do profissional com o doente, sem ambigüidades, é aquela que permite o desfrute de maiores benefícios para ambos, envolvidos numa relação calorosa e implicada pelo transcurso de tempo que for preciso.(6)

 

        Faço aqui minha profissão de fé. Por mais difícil que pareça, a Medicina liberal irá  manter-se como metro e referência, como a prática médica por excelência.

 

        Por mais que se faça medicina de massas e medicina por convênios, sempre haverá pessoas que buscarão a assistência personalizada e nela se manterão implicados. Distinção e excelência são valores imorredouros.

       

y y y

        A clínica do Dr. Rosa é exemplar. Nela se encontra uma completa farmacopéia lingüística, capaz de “pensar” os diferentes males que assolam a condição do homem na travessia de sua existência.

 

        “O que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor - compadre meu Quelemém diz.” (10:12)

 

        “Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solta em minha frente uma idéia ligeira e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (10:15)  

 

        “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.” (10:20)

 

        “Mira veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?” (10:33)   

 

        “Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: êle se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (10:52)  

 

        “Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte.” (10:77)

 

        “Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto.” (10:78)       

 

        “Resolvi ter brio... Eu estava indo a meu esmo.” (10:81)  

 

        “Amanheci minha aurora.” (10:84)

 

        “Muita coisa importante falta nome.” (10:86) 

 

        “Eu queria o ferver.” (10:96)

 

        “Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar.” (10:114)    

 

        “Homem? É coisa que treme.” (10:118)

 

        “Esta vida está cheia de ocultos caminhos.” (10:119)   

 

        “Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados.” (10:139) 

 

        “Quase tudo o que gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?(10:139)

 

        “Um  ainda  não  é  um:  quando  ainda  faz  parte  com  todos.” (10:142) 

 

        “Mas eu fui sempre um fugidor. Ao  que fugi até da precisão da fuga.” (10:142)

 

        “Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas,  matas  e  campinas.  Coração  mistura  amores.  Tudo   cabe.” (10:145)      

 

        “... continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos.” (10:145) 

 

        “Confusa é a vida da gente;” (10:146)

 

        “quer não  é o caso inteirado em si, mas a sôbre-coisa, a outra-coisa.” (10:152)

        “Tem um ponto da marca, que dêle não se pode mais voltar para trás” (10:163)

 

        “Vida, e guerra, é o que é: êsses tontos movimentos, ...” (10:175)

 

        “O que carece é a companheiragem de todos no simples, assim irmãos.”  (10:189)

 

        “Toda hora estou em julgamento.” (10:198)

 

        “O vau do mundo é a alegria.” (10:231)

 

        “- vau do mundo é a coragem...” (10:232)

 

        “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez” (10:235)

 

                “Todos estão loucos nêste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” (10:236)

 

                “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” (10:236)

 

                “Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência... Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais - a gente levanta, a gente sobe  a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho mêdo? Não.  Estou dando batalha. É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe.” (10:237)

 

 

 

                “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,  aperta  e  daí  afrouxa,  sossega  e depois desinquieta.” (10:241)

 

        “A liberdade é assim, movimentação”. (10:243)

 

        “Vá se ter dó de cangussú, dever finezas a escorpião!” (10:255)

 

        “Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?(10:260)

 

        “É  no junto  do que sabe bem, que a gente aprende o melhor...” (10:261)

 

        “Então o mundo era muita doideira e pouca razão?(10:262)

 

        “O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? (10:268)

 

        “Quem   vence, é  custoso  não  ficar com a  cara  de  demônio.” (10:270)

 

        “A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói.” (10:307)

 

        “Eu tinha medo de homem humano.” (10:307)

 

        “Serras que vão saindo, para destapar outras serras. Tem de tôdas as coisas. Vivendo, se aprende, mas o que aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” (10:312)

 

        “Somente com a alegria é que a gente realiza bem - mesmo até as tristes ações.” (10:316)

 

           “A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme nas invejas dos outros restantes.” (10:326)

 

        “Eu estava forro, glorial, assegurado:” (10:327)

 

        “- Porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.” (10:348)

 

        “Acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo.” (10:355)

 

        “Atravessei meus fantasmas?” (10:365)

 

              “A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, êsse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é.” (10:366)

 

        “Chefe não era para arrecadar vantagem, mas para emendar o defeituoso.” (10:373)

       

“Para vencer justo, o senhor não olhe nem veja o inimigo, volte para sua obrigação.” (10:382)

 

        “O passado - é ossos em redor de ninho de coruja...” (10:394)

 

        “Sossêgo traz desejos.” (10:396)

 

        “E eu vi que: menos me entendiam, mais me davam os maiores podêres de chefia maior.” (10:408)

 

        “Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.” (10:443)

 

        “Vocês têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado...” (10:447)

 

        “Tudo sai mesmo é de escuros buracos, tirante o que vem do céu. ”(10:451)

       

“Nonada. O diabo não há! É o que digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia.

                                          

 Leminiscata” (10:460)

 

 

 

 



Referências Bibliográficas

 

 

 

1.   BAGGIO, Marco Aurélio. Apego e loucura em João Guimarães Rosa. Belo Horizonte: PUC, Revista Extensão, vol. 3, setembro, 1993.

2.   ________ . Constituição da identidade de Riobaldo. Belo Horizonte: PUC, Revista Extensão, vol. 6,    2, Agosto, 1996.

3.   ________  .  Dos seres incompletos à edificação humana. Belo Horizonte: PUC, Scripta, vol. 2, nº 3, 1999.

4.   _________  . “Psicoterapia na prática médica”. In Terapêutica clínica. Editor Manoel Otávio da Costa Rocha. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.

5.   COUTINHO, Eduardo F. (Org.) Guimarães Rosa. 7ª ed., Rio de Janeiro: Civilização  Brasileira,  1983.  (Coleção  Fortuna  Crítica, 6).

6.   LANDMANN, Jayme. As medicinas alternativas: mito, embuste ou ciência? Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.

7.   ROCHA, Luiz Otávio Savassi. João Guimarães Rosa. Belo Horizonte, UFMG, 1981.

8.   __________ . João Guimarães Rosa: sua hora e sua vez. Belo Horizonte, Faculdade de Medicina da UFMG. Centro de Memória da Medicina, 1988.

9.   ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
_________ . Grande sertão: veredas. 7ª ed., Rio de Janeiro: José  Olympio, 1970.

Nenhum comentário:

Postar um comentário