ELABORAÇÃO DO LUTO POR DIADORIM
Guimarães Rosa
era um sensitivo da melhor estirpe, tal qual compadre meu Quelemém.
O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim foi
nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e
baralharam, terçaram... De supetão... e só...
E eu estou vendo!
[...] O diabo na rua, no meio do redemunho... (p. 610-611).
A
narrativa interrompida, entremeada pelas reticências, demonstra o estado de
espírito de Riobaldo, ao relembrar o momento da luta de morte entre Diadorim e
Hermógenes. Tomado pela emoção e pelo remorso, Riobaldo não consegue narrar de
maneira fluente a luta entre os dois jagunços.
A
mulher do Hermógenes, uma esfinge aprisionada, de súbito, transforma-se: “Aquela
Mulher não era malina.” (p. 613).
Ela
se torna a figura feminina de compadecimento e de cuidado para com o corpo de
Diadorim. De dona, senhora, mulher, ela cresce como Mulher, oficia como
sacerdotisa o ritual fúnebre que desvela a mulher que existia dentro de
Reinaldo. Dez vezes ela é referida com M maiúsculo.
A
defunta recém-descoberta em sua identidade de gênero feminino é assim
mencionada:
“Que
Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... [...] Diadorim! Diadorim
era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia,
como eu solucei meu desespero.” (p. 615).
Nesse
momento, também se quebra o encanto. Riobaldo descobre em Diadorim a mulher
amada. Não que Riobaldo passasse a amá-la menos, mas a descoberta quase o
enlouquece. O que poderia ter sido e não foi!
“Ela
era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei a mão
para me benzer – [...]”. (p. 615).
O
feminino hierático vivo – a Mulher – começa a compor as exéquias de Diadorim,
deslanchando o processo de luto pelo qual atravessará Riobaldo.
“Estarreci.
[...]. Uivei.” (p. 615).
“Desapoderei.”
(p. 616).
Riobaldo
adoece. “Desembestei doente [...] Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com
sezão, mas sezão forte especial – nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era
tamanha tanta, como nunca se viu – [...]” (p. 617).
A doença física
faz parte do luto de Riobaldo. Era necessário que seu corpo passasse também pelo
sofrimento. Só a penúria da alma não seria suficiente para que ele voltasse a
sua vida. Diante da brutalidade da realidade acachapante, tão freqüentemente o
psiquismo não dá conta de conter o sofrimento desesperante. É assim que sempre
o corpo se oferece como buffer, como agente modulador e contemporizador
do padecimento e da angústia humana. Durante
a doença, ocorre um processo de aceitação da perda seguida de acalmia no espírito.
“O tempo que fiquei, deslembrado, detido.” (p. 618).
Levado
para a fazenda de seo Josafá Ornelas, Riobaldo é aí tratado com carinho e
conforto. Aos poucos, vai-se recuperando física e espiritualmente, embora
permaneçam as marcas deixadas pela falta de Diadorim. “Sosseguei de meu ser. Era
feito eu me esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a
alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras.” (p. 618).
Superado
o obstáculo que impedia Riobaldo de reconhecer e admitir seu amor por Diadorim,
perde-se também o objetivo dessa paixão. Diadorim, ou melhor, Maria Deodorina,
está morta. Toda a luta de Riobaldo, todo o seu sofrimento por achar que estava
apaixonado por um homem, revelam-se inúteis. O destino, no entanto, era esse. Nada
poderia mudar, como ele um dia quis, ao sonhar que Diadorim havia passado
debaixo de um arco-íris e virado mulher. “Sonhice” – diz ele (p. 66).
Deprimido,
angustiado, Riobaldo, no entanto, recupera-se. “E o pobre de mim, minha
tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão
acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava.” (p. 621).
A
narrativa de Riobaldo constitui também uma catarse por meio da qual ele se
penitencia, expõe a sua alma, os seus mais secretos medos e desejos.
O
que o salva, no entanto, o que o sobrelevanta, está expresso em suas próprias
palavras:
“Mas
o amor de minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de
devagar. Era.” (p. 621). Então ele viu Auroras (p. 623).
Assim,
depois de viver tempos e tempos em busca de um amor encantado, impossível, Riobaldo encontra em Otacília o amor que o
salva. “Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e
trabalho.” (p. 623). Diadorim, porém, continuará a ser, “sempremente”, a sua
neblina...
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