terça-feira, 26 de março de 2013

ELABORAÇÃO DO LUTO POR DIADORIM


ELABORAÇÃO DO LUTO POR DIADORIM

 

 

         Guimarães Rosa era um sensitivo da melhor estirpe, tal qual compadre meu Quelemém.

 

O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram... De supetão... e só...

E eu estou vendo!

[...] O diabo na rua, no meio do redemunho... (p. 610-611).

 

            A narrativa interrompida, entremeada pelas reticências, demonstra o estado de espírito de Riobaldo, ao relembrar o momento da luta de morte entre Diadorim e Hermógenes. Tomado pela emoção e pelo remorso, Riobaldo não consegue narrar de maneira fluente a luta entre os dois jagunços.

         A mulher do Hermógenes, uma esfinge aprisionada, de súbito, transforma-se: “Aquela Mulher não era malina.” (p. 613).

         Ela se torna a figura feminina de compadecimento e de cuidado para com o corpo de Diadorim. De dona, senhora, mulher, ela cresce como Mulher, oficia como sacerdotisa o ritual fúnebre que desvela a mulher que existia dentro de Reinaldo. Dez vezes ela é referida com M maiúsculo.

         A defunta recém-descoberta em sua identidade de gênero feminino é assim mencionada:

         “Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... [...] Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero.” (p. 615).

         Nesse momento, também se quebra o encanto. Riobaldo descobre em Diadorim a mulher amada. Não que Riobaldo passasse a amá-la menos, mas a descoberta quase o enlouquece. O que poderia ter sido e não foi!

         “Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei a mão para me benzer – [...]”. (p. 615).

 

         O feminino hierático vivo – a Mulher – começa a compor as exéquias de Diadorim, deslanchando o processo de luto pelo qual atravessará Riobaldo.

         “Estarreci. [...]. Uivei.” (p. 615).

         “Desapoderei.” (p. 616).

         Riobaldo adoece. “Desembestei doente [...] Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial – nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu – [...]” (p. 617).

         A doença física faz parte do luto de Riobaldo. Era necessário que seu corpo passasse também pelo sofrimento. Só a penúria da alma não seria suficiente para que ele voltasse a sua vida. Diante da brutalidade da realidade acachapante, tão freqüentemente o psiquismo não dá conta de conter o sofrimento desesperante. É assim que sempre o corpo se oferece como buffer, como agente modulador e contemporizador do padecimento e da angústia humana.  Durante a doença, ocorre um processo de aceitação da perda seguida de acalmia no espírito. “O tempo que fiquei, deslembrado, detido.” (p. 618).

         Levado para a fazenda de seo Josafá Ornelas, Riobaldo é aí tratado com carinho e conforto. Aos poucos, vai-se recuperando física e espiritualmente, embora permaneçam as marcas deixadas pela falta de Diadorim. “Sosseguei de meu ser. Era feito eu me esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras.” (p. 618).

         Superado o obstáculo que impedia Riobaldo de reconhecer e admitir seu amor por Diadorim, perde-se também o objetivo dessa paixão. Diadorim, ou melhor, Maria Deodorina, está morta. Toda a luta de Riobaldo, todo o seu sofrimento por achar que estava apaixonado por um homem, revelam-se inúteis. O destino, no entanto, era esse. Nada poderia mudar, como ele um dia quis, ao sonhar que Diadorim havia passado debaixo de um arco-íris e virado mulher. “Sonhice” – diz ele (p. 66).

         Deprimido, angustiado, Riobaldo, no entanto, recupera-se. “E o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava.” (p. 621).

         A narrativa de Riobaldo constitui também uma catarse por meio da qual ele se penitencia, expõe a sua alma, os seus mais secretos medos e desejos.

         O que o salva, no entanto, o que o sobrelevanta, está expresso em suas próprias palavras:

         “Mas o amor de minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar. Era.” (p. 621). Então ele viu Auroras (p. 623).

         Assim, depois de viver tempos e tempos em busca de um amor  encantado, impossível, Riobaldo encontra em Otacília o amor que o salva. “Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho.” (p. 623). Diadorim, porém, continuará a ser, “sempremente”, a sua neblina...

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