terça-feira, 26 de março de 2013

RIOBALDO, O ESCANCHELADOR


RIOBALDO, O ESCANCHELADOR DOS LIMITES

 

Marco Aurélio Baggio

 

         Ao longo da obra de arte metafísica e literária que é o Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa, personagem, autor e pessoa, abre o relato a partir da não-existência de tudo. Nonada.

         Segue-se uma coleção de portentos e de absurdos que principiam a organizar elementos a partir do caos. O relato vai sem pés nem cabeça, arrevesado, tateante, como pica-pau que voa testando o ar. O que prevalece é um homem corriqueiro, comum, desprovido de qualidades, sem pai, de fraca mãe – a Bigri. No final da infância, ele encontra o Menino. Reinaldo o possui. Leva-o pelo bambalango do rio enorme até a outra, segunda margem do rio. Toma a sua mão. E o sagra com o atributo magno:

-         Você também é animoso...

Deixa-lhe a paixão de seus verdes esmartes olhos vivazes, sobrancelhas, nariz afiladinho.

O menino já é um ser posto em extensão. Existe. Convida Riobaldo a percorrer o caminho da existência. Deixa-lhe um viático, farnel, munição de muitos contos de réis.

-         Vau do mundo é a coragem...

Coração e sentimento, inteligência e sagacidade. Ações certas e corretas. Precisas.

Pelos finais da adolescência, um dia, o mundo se desproduz, em tonteira e vergonha. É a crise do necessário afastamento dos pais. Como um filho pródigo, Riobaldo requer umas armas, um cavalo, uma sacola de poucas coisas e troveja no mundo. Vai campear. Começa a viver por sua própria conta. Professor.

Zé Bebelo, jagunceia. Rosa’uarda. Alemão Wupes. Nhorinhá. Prostitutriz. Militriz.

Um dia, o encontro fortuito com o Moço.

-         Reinaldo – Riobaldo – nossos nomes dão par...Fraternura.

Os rios carregados de hormônios da macheza fazem desabrochar o amor. Homem a homem. Mano a mano.

Reinaldo confidencia: ... meu nome é Diadorim.

-         Amanheci minha aurora.

O primeiro epíteto que ganha agora é o de jagunço. Homem de Titão Passos. Nas tropas de Joca Ramiro. É como Ramiro que Riobaldo dá vazão à estuância potencial instintiva de seu ser. Atira bem. Luta. Briga. Desgasta o excedente pulsional agressivo, emprestando-se à campanha de outro. Adquiriu habilidade e estofo de cavaleiro combatente. Wehr mahr. Guimara. Guerreiro. Tem a seu lado um erado protetor: combate sob a égide de Diadorim. Dele aufere e incorpora múltiplas qualidades. A coragem em peça inteirada. A sensibilidade pelas coisas dos Gerais. A ambiguidade da composição da ferocidade e o objetivo implacável: vingar-se dos Judas – entremesclado com as sutilezas e a sensibilidade para as coisas da amizade e do sentimento.

Riobaldo se deixa entranhar por ele e  se torna...Dindurinh...

Ambíguo, andrógino, incerto ainda no campo da diferenciação do gênero sexual, Diadorim é a própria plurivocidade. Dessa múltipla potencialidade brota uma dimensão de beleza divina.

Diadorim é Palas Atena. Nobre. Belo. Kalós. Kagathós.

Tem gosto pelos objetos refinados. Agalma.

Assume e exibe todos os atributos que estofam o currículo da deusa grega.

Inaparentemente, Riobaldo incorpora em si todos esses atributos. Enche sua capanga, de bom grado. A dotação pulsional de Riobaldo – seu daimon – aparece ligado à inteligência – nous – que busca discernir as coisas na massa confusa de tudo que é o sertão da existência. Diadorim é um presente – Dora – de Deus – Deo -, proveniente do diabo – Dia. Nascido sem mãe – partogenos – saído da cabeça de Joca Ramiro – Zeus –, Diadorim é a própria deusa Palas Atena da mitologia grega.

Nous é a capacidade de distinguir o mundo dos fenômenos do campo dos afetos e do sensível, para além do âmbito das essências, visando a articulá-los em um todo inteligível. Viver é distender-se para o imprevisto que se apresenta a cada instante, na briga dos ventos.

O viajor tem de intuir aquilo que a vida oferece e exige, espremer-se por um caminho certo, estreito, sinuoso, escoltado pela percepção da possibilidade de falibilidade, sabedor da própria mortalidade, indo adiante, apesar da angústia e do medo. Aí, o bambalango.

Riobaldo, assim, mete-se, mediante sua nous, no enredo dos deuses.

Atena – Diadorim – significa “moça, flor”.

Filha de Zeus, - Joca Ramiro e Metis – mãe desconhecida que personifica a Sabedoria, o Expediente, a Astúcia, Atena sai da cabeça de Zeus – é a personificação do nous divino – a verdadeira lâmpada de Deus. Metieta. Filha de Metis.

Diadorim - Riobaldo torna-se assim uma díade, cheio de expedientes, apetrechado de diversos instrumentos: um metieta.

Metieta – cada habilidade adequada ao enfrentamento de perigos e riscos.

Promachos - luta nas primeiras fileiras.

Alalcomeneis – que faz o inimigo recuar.

Areia – guerreiro.

Pronóia – previdente.

Boulaia – conselheira.

Agoraia – presente, participante nas assembléias.

Hippia – amiga dos cavalos.

Fosforos – que traz a luz.

Polimetim – inventiva.

Khalós – belo.

Kakaton – da égide, escudo defensivo poderosos, centro onde está a cabeça, cheia de serpentes da Medusa.

Com Mestre Lucas, aprenderá a poder fazer. Ao ensinar Zé Bebelo, Riobaldo, reflexivamente, aprenderá a aprender rápido. Medeiro Vaz o ungiu com a cobiça da chefia. Selorico Mendes o inspira para a jagunçagem. Deu-lhe casa, arma e cavalo. Joca Ramiro o distinguiu com arma qualificada. Com o torpe Hermógenes, aprendeu a combater e a guerrear. Diadorim o alertou para manter-se em mobilidade de posição, sempre, durante o combate. Com todos os demais chefes, aprendeu a chefiar.

No bojo, colheu repertório qualificado de qualidades que lhe deram condição para sustentar-se nos momentos de passagem, onde prevalecem o indefinido e toda possibilidade de danação. Só por pouco é que a sala é clara. Aprendeu a vislumbrar o clim de clina por onde lampeja a lâmpada de Deus: a Verdade insurgente, curta e segura, que logo se desfaz, pelas artes do redemoinho do demo. Esse, o norteado a ser percorrido pela gã que dá corpo ao suceder. Mesmo que sucedido desgovernado, não importa.

 Depois, conto ao senhor coisas que, não sabendo, passarei a saber.

Seu método é beber água de todo rio.

Muita religião, seu moço. Quero todas as meremerências.

Inhá Izina, Maria Calanga, o Paspe, meieiro meu é meu.

Compadre meu Quelemém disse que terríveis bons espíritos me possuem. Ih! Com gosto.

Visto e experimentado o mundo, apoiado pelo amor e pelo companheirismo de Diadorim, um dia Riobaldo intui que precisa de um novo sócio para lhe dar empuxo para outras maiores façanhas.

Quem tem capital e energia é o demo. Vai convocá-lo, espicaçá-lo, coercê-lo. Em seus próprios passos sustentado, vai à encruzilhada hierática onde se unge do mais próprio valor. O diabo – diafótero – é legal, desde que se proponha algo benigno a investir.

Cumprido o rito de passagem mediante imersão na noite escura dos inferus, cabe ao viajor acrescer em si. Este, então, pleno, forro, glorial, assegurado para pôr trela – Klalinitis – em outras novas insurgências da desordem demoníaca que assola o mundo, a dupla vareja pela vastidão cósmica do sertão, dando vazão à efervescência pulsional das tendências desacorçoadas da subjetividade do personagem  compósito.

Riobaldo é um contador de seu próprio caso – um analisando posto em relação de autoperquirição – de psicanálise – em presença de um interlocutor de elevado valor, que o analisa pela simples presença atenta, mediante escuta, sem dizer palavra. Trata-se do exemplo mais rigoroso de como se processa, idealmente, uma psicanálise bem-sucedida.

Guimarães Rosa era um cristão piedoso. Um tímido menino míope que se condoía com a vastidão de seres incompletos que vagueiam pelo sertão em desamparo, como Garranço ou Alaripe.

Cachorrando pelo sertão da vida, em contínuo desacerto. Um dia, alguém lhe pôs óculos no rosto, e ele pôde descobrir a maravilha que é se instrumentar para ver o mundo. Talento para línguas, estudioso da significação, tornou-se um pedreiro escoimador de palavras, retirando delas o excesso, o desgaste e as escórias que as amortecem. Recriou uma língua, a ser lida e falada daqui a 700 anos.

Com um gravetinho, aprendeu a descobrir onde pisca a lisa e real lâmpada de Deus. Esse norteado, tem. O itinerário da mente ao espírito se dá mediante percurso ao longo dessa pirilâmpica trilha de pequenas luzes, em verdades provisórias. As pessoas não morrem, ficam encantadas. O mundo é mágico. As pessoas – gentes infelizes, como o demo – estão distantes daquilo que é deles tão perto – e não sabem, não sabem.

O homem do burgo do coração equipou-se em dotação em Belo Horizonte, na Faculdade de Medicina, na Rua Leopoldina, depois em Itaguara,  e em Barbacena, na Polícia Militar, no amplo espaço cênico dos Gerais e das Minas, para, um dia, como Lalino Salatiel, pegar o trem que o levou para o Rio e para o mundo. De seu sertão mineiro, levou a pedra safira de topázio ametista. A pedra de esmeralda daquele que foi o atravessador por excelência, o Hermes, dito Trimegistro. O mais precioso do mundo é que as pessoas não estão terminadas.  Deu batalha.

Ele, o doce Rosa, cavaleiro combatente, saiu pelo mundo a dar batalha. Deixou-nos seu precioso legado. Um viático. Um código baseado em muitos outros códigos validados pela tradição humanística do Ocidente..

Ele nos disse que nós – Riobaldos – nascemos e crescemos incompletos, em falta e por descaminhos, resvalando. Mas não tem nada não, a gente levanta, a gente cai, a gente sobe.

Viver é muito perigoso. É preciso conjurar as insurgências às brutas do demo e usar sua força bruta para o bom propósito. Aprender a viver é que é o viver mesmo. Há que se afastar de si a tristeza, que constrange e coarcta as livres disponibilidades do ser-em-transcurso.

O vau da travessia do rio da vida é em bamba canoa. Consoante alegria. Mediante coragem. Armas a serem apreendidas e incrementadas

A obra de arte de Guimarães Rosa é o breviário que nos incita, poeticamente, a compreender o cenário onde se passa nossa vida de seres precários, fazendo façanhas e contribuindo, texto e enredo, para que, tocados pela sensibilidade do divino, possamos rumar em glória, em direção ao espírito – o UNO -, alcançando a edificação humana do ser imerso na plenitude de Deus. Em paz. Aragem do Sagrado. Absolutas estrelas!

- Eta gostusura de fim de mundo... – exulta Augusto Matraga, outro ser plenamente escarmentado.

         Dos seres incompletos à edificação humana, eis o legado de que nos dotou Joãozito.          Para isso, é preciso que o viajor aprenda a transitar por meios e por espaços variados.

         O fio condutor é dado pela linguagem desdobrada em percepção, cenário, depois em enredo, confeiçoado, “coraçãoado” pela poética – capacidade de fazer com sensibilidade e beleza, buscando a verdade, o bem, o belo e exercendo a vontade, forçando o suceder. Assim, atinge-se o espírito. O que se acerta é sempre o espírito, – alcançando-se uma dimensão ética - de boa conduta, mística - o seio de Deus - e telúrica – muita coisa falta nome.

         Fui fogo logo depois de ter sido cinza. Como a Fênix renascida, atravessou os infernos, como Psique, Dante e Soropita, para alcançar a escansão gloriosa do badalar dos sinos: Dão-Lalalão. Aleluias!

         Cartear marra e ir vivendo a vida com luxúrias entre huris – no bom, bonito, gostoso e barato, para depois voltar a resgatar sua mulher  Ritinha...           Como Lalino Salatiel. Ou, mais levemente, Melim-Meloso, que percebeu que Era sujeito a morrer. A pois, antes, queria dar uma volta pelo mundo, achar a forma do seu pé.

         Cada qual tem seus nove dias.

         Poucos são tão absolutos quanto os ciganos, loucos a ponto de quererem , juntas, a liberdade e a felicidade.

         A maioria vive mesmo é felizes e infelizes misturadamente...

         A vida são coisas muito compridas.

 

         Escanchar – superando meio a meio. Escachar. Abrir. Alargar as pernas, quando monta a cavalo. Escarranchar. Escancelar.

         Chaim – 67-68 – Riobaldo qualifica-se ao longo de sua travessia pela vida a apurar e aperfeiçoar sua aretê – conjunto de qualidades, habilidades e virtudes internas – indissociável patrimônio pessoal de apetrechamentos, capacitações e vantagens, que lhe permitem operar com elevada qualidade por meio de um modo prático e ideológico na vida social do sertão da existência.

         Articulador (quem ou o quê?) das diferenças, apropinquador dos diasparagmos místico-esotéricos, dotado de espírito agonístico, de competição e provas, capaz de produzir diferenças e de, delas, extrair a outra-coisa, a sobre-coisa – suprassumidas – o sobredentro – aristos – distinguido, seleto, diferenciado, sofisticado, qualificado, eis o grande literato João Guimarães Rosa.

         Colecionador de lutas bem resolvidas, Riobaldo é uma fonte estuante de referências e de ensinamentos valiosos e paradigmáticos de como os homens podem vir a adquirir seta, certeza, intenção e gesto no pensar e no agir, dando força à gã de suceder pelos colominhantes caminhozinhos estreitos onde pirilampeia a luzinha do divino que a nós corresponde.

         Brilho do espírito. Aragem do Sagrado.

         Absolutas estrelas!

         O que ele quer é Homem humano, escanchelando  para todos os lados as bordas de seus infaustos limites...

 

 

Obs. É preciso rever. O texto tem muitas idéias repetidas. Não há também seqüência lógica na ordenação das idéias.

Escanchelador e escanchelando?

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