RIOBALDO, O
ESCANCHELADOR DOS LIMITES
Marco Aurélio Baggio
Ao longo da obra de arte metafísica e
literária que é o Grande sertão: veredas,
João Guimarães Rosa, personagem, autor e pessoa, abre o relato a partir da
não-existência de tudo. Nonada.
Segue-se uma coleção de portentos e de
absurdos que principiam a organizar elementos a partir do caos. O relato vai
sem pés nem cabeça, arrevesado, tateante, como pica-pau que voa testando o ar.
O que prevalece é um homem corriqueiro, comum, desprovido de qualidades, sem
pai, de fraca mãe – a Bigri. No final da infância, ele encontra o Menino.
Reinaldo o possui. Leva-o pelo bambalango do rio enorme até a outra, segunda
margem do rio. Toma a sua mão. E o sagra com o atributo magno:
-
Você também é animoso...
Deixa-lhe a paixão de seus verdes esmartes olhos
vivazes, sobrancelhas, nariz afiladinho.
O menino já é um ser posto em extensão. Existe. Convida
Riobaldo a percorrer o caminho da existência. Deixa-lhe um viático, farnel,
munição de muitos contos de réis.
-
Vau do mundo é a coragem...
Coração e sentimento, inteligência e sagacidade. Ações
certas e corretas. Precisas.
Pelos finais da adolescência, um dia, o mundo se desproduz,
em tonteira e vergonha. É a crise do necessário afastamento dos pais. Como um
filho pródigo, Riobaldo requer umas armas, um cavalo, uma sacola de poucas
coisas e troveja no mundo. Vai campear. Começa a viver por sua própria conta.
Professor.
Zé Bebelo, jagunceia. Rosa’uarda. Alemão Wupes. Nhorinhá.
Prostitutriz. Militriz.
Um dia, o encontro fortuito com o Moço.
-
Reinaldo – Riobaldo – nossos nomes dão par...Fraternura.
Os rios carregados de hormônios da macheza fazem desabrochar
o amor. Homem a homem. Mano a mano.
Reinaldo confidencia: ...
meu nome é Diadorim.
-
Amanheci minha aurora.
O primeiro epíteto que ganha agora é o de jagunço. Homem de
Titão Passos. Nas tropas de Joca Ramiro. É como Ramiro que Riobaldo dá vazão à
estuância potencial instintiva de seu ser. Atira bem. Luta. Briga. Desgasta o
excedente pulsional agressivo, emprestando-se à campanha de outro. Adquiriu
habilidade e estofo de cavaleiro combatente. Wehr mahr. Guimara.
Guerreiro. Tem a seu lado um erado protetor: combate sob a égide de Diadorim.
Dele aufere e incorpora múltiplas qualidades. A coragem em peça inteirada. A
sensibilidade pelas coisas dos Gerais. A ambiguidade da composição da
ferocidade e o objetivo implacável: vingar-se dos Judas – entremesclado com as
sutilezas e a sensibilidade para as coisas da amizade e do sentimento.
Riobaldo se deixa entranhar por ele e se torna...Dindurinh...
Ambíguo, andrógino, incerto ainda no campo da diferenciação
do gênero sexual, Diadorim é a própria plurivocidade. Dessa múltipla
potencialidade brota uma dimensão de beleza divina.
Diadorim é Palas Atena. Nobre. Belo. Kalós. Kagathós.
Tem gosto pelos objetos refinados. Agalma.
Assume e exibe todos os atributos que estofam o currículo da
deusa grega.
Inaparentemente, Riobaldo incorpora em si todos esses
atributos. Enche sua capanga, de bom grado. A dotação pulsional de Riobaldo –
seu daimon – aparece ligado à
inteligência – nous – que busca
discernir as coisas na massa confusa de tudo que é o sertão da existência.
Diadorim é um presente – Dora – de
Deus – Deo -, proveniente do diabo – Dia. Nascido sem mãe – partogenos – saído da cabeça de Joca Ramiro
– Zeus –, Diadorim é a própria deusa Palas Atena da mitologia grega.
Nous é a capacidade de distinguir o mundo dos fenômenos do campo
dos afetos e do sensível, para além do âmbito das essências, visando a
articulá-los em um todo inteligível. Viver é distender-se para o imprevisto que
se apresenta a cada instante, na briga dos ventos.
O viajor tem de intuir aquilo que a vida oferece e exige,
espremer-se por um caminho certo, estreito, sinuoso, escoltado pela percepção
da possibilidade de falibilidade, sabedor da própria mortalidade, indo adiante,
apesar da angústia e do medo. Aí, o bambalango.
Riobaldo, assim, mete-se, mediante sua nous, no enredo dos deuses.
Atena – Diadorim – significa “moça, flor”.
Filha de Zeus, - Joca Ramiro e Metis – mãe desconhecida que
personifica a Sabedoria, o Expediente, a Astúcia, Atena sai da cabeça de Zeus –
é a personificação do nous divino – a
verdadeira lâmpada de Deus. Metieta. Filha de Metis.
Diadorim - Riobaldo torna-se assim uma díade, cheio de
expedientes, apetrechado de diversos instrumentos: um metieta.
Metieta – cada habilidade adequada ao enfrentamento de
perigos e riscos.
Promachos - luta nas primeiras fileiras.
Alalcomeneis – que faz o inimigo recuar.
Areia – guerreiro.
Pronóia – previdente.
Boulaia – conselheira.
Agoraia – presente, participante nas assembléias.
Hippia – amiga dos cavalos.
Fosforos – que traz a luz.
Polimetim – inventiva.
Khalós – belo.
Kakaton – da égide, escudo defensivo poderosos, centro onde está a
cabeça, cheia de serpentes da Medusa.
Com Mestre Lucas, aprenderá a poder fazer. Ao ensinar Zé
Bebelo, Riobaldo, reflexivamente, aprenderá a aprender rápido. Medeiro Vaz o
ungiu com a cobiça da chefia. Selorico Mendes o inspira para a jagunçagem.
Deu-lhe casa, arma e cavalo. Joca Ramiro o distinguiu com arma qualificada. Com
o torpe Hermógenes, aprendeu a combater e a guerrear. Diadorim o alertou para
manter-se em mobilidade de posição, sempre, durante o combate. Com todos os
demais chefes, aprendeu a chefiar.
No bojo, colheu repertório qualificado de qualidades que lhe
deram condição para sustentar-se nos momentos de passagem, onde prevalecem o
indefinido e toda possibilidade de danação. Só por pouco é que a sala é clara.
Aprendeu a vislumbrar o clim de clina por onde lampeja a lâmpada de Deus: a
Verdade insurgente, curta e segura, que logo se desfaz, pelas artes do
redemoinho do demo. Esse, o norteado a ser percorrido pela gã que dá corpo ao
suceder. Mesmo que sucedido desgovernado, não importa.
Depois, conto ao senhor coisas que, não sabendo, passarei a saber.
Seu método é beber água de todo rio.
Muita
religião, seu moço. Quero todas as meremerências.
Inhá Izina, Maria Calanga, o Paspe, meieiro meu é meu.
Compadre meu
Quelemém disse que terríveis bons espíritos me possuem. Ih! Com gosto.
Visto e experimentado o mundo, apoiado pelo amor e pelo
companheirismo de Diadorim, um dia Riobaldo intui que precisa de um novo sócio
para lhe dar empuxo para outras maiores façanhas.
Quem tem capital e energia é o demo. Vai convocá-lo,
espicaçá-lo, coercê-lo. Em seus próprios passos sustentado, vai à encruzilhada
hierática onde se unge do mais próprio valor. O diabo – diafótero – é legal,
desde que se proponha algo benigno a investir.
Cumprido o rito de passagem mediante imersão na noite escura
dos inferus, cabe ao viajor acrescer
em si. Este, então, pleno, forro, glorial, assegurado para pôr
trela – Klalinitis – em outras novas
insurgências da desordem demoníaca que assola o mundo, a dupla vareja pela
vastidão cósmica do sertão, dando vazão à efervescência pulsional das
tendências desacorçoadas da subjetividade do personagem compósito.
Riobaldo é um contador de seu próprio caso – um analisando
posto em relação de autoperquirição – de psicanálise – em presença de um
interlocutor de elevado valor, que o analisa pela simples presença atenta,
mediante escuta, sem dizer palavra. Trata-se do exemplo mais rigoroso de como
se processa, idealmente, uma psicanálise bem-sucedida.
Guimarães Rosa era um cristão piedoso. Um tímido menino
míope que se condoía com a vastidão de seres incompletos que vagueiam pelo
sertão em desamparo, como Garranço ou Alaripe.
Cachorrando pelo sertão da vida, em contínuo desacerto. Um
dia, alguém lhe pôs óculos no rosto, e ele pôde descobrir a maravilha que é se
instrumentar para ver o mundo. Talento para línguas, estudioso da significação,
tornou-se um pedreiro escoimador de palavras, retirando delas o excesso, o
desgaste e as escórias que as amortecem. Recriou uma língua, a ser lida e
falada daqui a 700 anos.
Com um gravetinho, aprendeu a descobrir onde pisca a lisa e
real lâmpada de Deus. Esse norteado, tem. O itinerário da mente ao espírito se
dá mediante percurso ao longo dessa pirilâmpica trilha de pequenas luzes, em
verdades provisórias. As pessoas não morrem, ficam encantadas. O mundo é mágico.
As pessoas – gentes infelizes, como o demo – estão distantes daquilo que é
deles tão perto – e não sabem, não sabem.
O homem do burgo do coração equipou-se em dotação em Belo
Horizonte, na Faculdade de Medicina, na Rua Leopoldina, depois em
Itaguara, e em Barbacena, na Polícia
Militar, no amplo espaço cênico dos Gerais e das Minas, para, um dia, como Lalino
Salatiel, pegar o trem que o levou para o Rio e para o mundo. De seu sertão
mineiro, levou a pedra safira de topázio ametista. A pedra de esmeralda daquele
que foi o atravessador por excelência, o Hermes, dito Trimegistro. O mais
precioso do mundo é que as pessoas não estão terminadas. Deu batalha.
Ele, o doce Rosa, cavaleiro combatente, saiu pelo mundo a
dar batalha. Deixou-nos seu precioso legado. Um viático. Um código baseado em
muitos outros códigos validados pela tradição humanística do Ocidente..
Ele nos disse que nós – Riobaldos – nascemos e crescemos
incompletos, em falta e por descaminhos, resvalando. Mas não tem nada não, a
gente levanta, a gente cai, a gente sobe.
Viver é muito perigoso. É preciso conjurar as insurgências
às brutas do demo e usar sua força bruta para o bom propósito. Aprender a viver
é que é o viver mesmo. Há que se afastar de si a tristeza, que constrange e
coarcta as livres disponibilidades do ser-em-transcurso.
O vau da travessia do rio da vida é em bamba canoa.
Consoante alegria. Mediante coragem. Armas a serem apreendidas e incrementadas
A obra de arte de Guimarães Rosa é o breviário que nos
incita, poeticamente, a compreender o cenário onde se passa nossa vida de seres
precários, fazendo façanhas e contribuindo, texto e enredo, para que, tocados
pela sensibilidade do divino, possamos rumar em glória, em direção ao espírito
– o UNO -, alcançando a edificação humana do ser imerso na plenitude de Deus.
Em paz. Aragem do Sagrado. Absolutas estrelas!
- Eta
gostusura de fim de mundo...
– exulta Augusto Matraga, outro ser plenamente escarmentado.
Dos seres incompletos à edificação
humana, eis o legado de que nos dotou Joãozito. Para isso, é preciso que o viajor aprenda a transitar por
meios e por espaços variados.
O fio condutor é dado pela linguagem
desdobrada em percepção, cenário, depois em enredo, confeiçoado, “coraçãoado”
pela poética – capacidade de fazer com sensibilidade e beleza, buscando a
verdade, o bem, o belo e exercendo a vontade, forçando o suceder. Assim,
atinge-se o espírito. O que se acerta é sempre o espírito, – alcançando-se uma
dimensão ética - de boa conduta, mística - o seio de Deus - e telúrica – muita coisa
falta nome.
Fui
fogo logo depois de ter sido cinza. Como a Fênix renascida, atravessou os
infernos, como Psique, Dante e Soropita, para alcançar a escansão gloriosa do
badalar dos sinos: Dão-Lalalão. Aleluias!
Cartear
marra e ir vivendo a vida com luxúrias entre huris – no bom, bonito, gostoso e
barato, para depois voltar a resgatar sua mulher Ritinha... Como Lalino Salatiel. Ou, mais
levemente, Melim-Meloso, que percebeu que Era sujeito a morrer. A pois, antes, queria dar uma volta pelo mundo, achar
a forma do seu pé.
Cada qual tem seus nove dias.
Poucos são
tão absolutos quanto os ciganos, loucos a ponto de quererem , juntas, a
liberdade e a felicidade.
A
maioria vive mesmo é felizes e infelizes misturadamente...
A
vida são coisas muito compridas.
Escanchar – superando meio a meio.
Escachar. Abrir. Alargar as pernas, quando monta a cavalo. Escarranchar.
Escancelar.
Chaim – 67-68 – Riobaldo qualifica-se
ao longo de sua travessia pela vida a apurar e aperfeiçoar sua aretê – conjunto de qualidades,
habilidades e virtudes internas – indissociável patrimônio pessoal de
apetrechamentos, capacitações e vantagens, que lhe permitem operar com elevada
qualidade por meio de um modo prático e ideológico na vida social do sertão da
existência.
Articulador (quem ou o quê?) das
diferenças, apropinquador dos diasparagmos místico-esotéricos, dotado de
espírito agonístico, de competição e provas, capaz de produzir diferenças e de,
delas, extrair a outra-coisa, a sobre-coisa – suprassumidas – o sobredentro – aristos – distinguido, seleto,
diferenciado, sofisticado, qualificado, eis o grande literato João Guimarães
Rosa.
Colecionador de lutas bem resolvidas,
Riobaldo é uma fonte estuante de referências e de ensinamentos valiosos e
paradigmáticos de como os homens podem vir a adquirir seta, certeza, intenção e
gesto no pensar e no agir, dando força à gã de suceder pelos colominhantes
caminhozinhos estreitos onde pirilampeia a luzinha do divino que a nós
corresponde.
Brilho do espírito. Aragem do Sagrado.
Absolutas estrelas!
O que ele quer é Homem humano,
escanchelando para todos os lados as
bordas de seus infaustos limites...
Obs. É preciso
rever. O texto tem muitas idéias repetidas. Não há também seqüência lógica na
ordenação das idéias.
Escanchelador
e escanchelando?
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