A
inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio
Marco
Aurélio Baggio
Este conto monotemático é o mais insólito, estúrdio e
perturbador de toda a obra de João Guimarães Rosa. Nenhum rio possui uma
terceira margem. Ao propor isso, Guimarães Rosa comete um absurdo. Um excessus linguae. Típico de Rosa,
geógrafo das fronteiras, literato capaz de extrapolá-las pela fulguração da linguagem,
criando uma geografia psíquica expandida e inusitada. Provocativo, o título do
conto incita os neurônios do leitor logo a se perguntar e a querer saber:
- O que quer
dizer “a terceira margem do rio?” 5
O real, a prosaica realidade serve
de base para o autor construir sua elucubração. A linguagem comporta a criação
de um mundo ficcional, idealístico e fictício, que ultrapassa aquilo que o bom
senso chancela como sendo o meramente possível.
O rio é um
fluxo perene de água descendente de suas fontes. Segue o trajeto de menor
resistência, sinuoso embora, rumo a seu destino, o mar. Ele é contigenciado por
duas margens contra as quais se esbatem suas torrentes. Disso resulta apenas um
deslizar, um fluxo escoante para diante. Então o que é, onde está, para que
serve, o que significa a estranha terceira margem do rio? Mentira exagerada do
autor? Guimarães Rosa não é um mentiroso. Loucura de um escritor psicótico?
Guimarães Rosa não era esquizofrênico.
Devaneio
ficcional de uma mente fértil? Pode ser que.
Metáfora
transcendente de uma irrealidade presumida?
“Jogue o texto para o alto, o mais
alto possível e você acertará”, recomendava Guimarães Rosa a seus tradutores:
Edoardo Bizzarri, Curt Meyer-Clason, Jean-Jacques Villard, Harriet de Onis.” “- Persigo
sempre as formas mais altas.” 7
Segundo Agnucha,
sua segunda filha Agnes, Guimarães Rosa era espiritualista, apreciador do
hinduísmo e de Krishnamurti. Ele afirmou: “Eu creio firmemente em ressurreição
e no infinito. Reporto-me ao transcendente. Sou profundamente, essencialmente
religioso. Sou místico, pelo menos acho que sou. Vivo no infinito; o momento
não conta.”7
Este é o quadro
sinóptico das crenças e das convicções do maior escritor brasileiro/português.
Para ele, o mundo é mágico e o mistério está sempre aguardando um milagre para
se resolver.
Um autor bem
menor, 0,1% de Guimarães Rosa, mas com a mesma cepa de buscar conhecer o real e
o absoluto, vai aqui interpretar o que quer significar “a terceira margem do
rio.” Prosaica, descolorida e, talvez, antipoeticamente.
A primeira
margem do rio é aquela na qual nascemos, crescemos e estamos como
sujeito-a-nós-mesmos. Aqui nos situamos, com nosso embornal de apetrechamentos,
ávidos do desejo de buscar algo mais, melhor, postado lá, alhures, na e para
diante da segunda margem do rio. Os objetos de nossos desejos, emergentes de
nossas incompletudes e de nossas carências, imploram para serem amortizados ou
mesmo preenchidos por novos objetos de completude indicados pela
concupisciência de nossos desbragados desejos.
Desejo é um renitente
nostálgico que está sempre hiante, aberto, a buscar o objeto qualquer, porém
adequado, capaz de encaixar-se e preencher a carência do sujeito. Para tanto, o
indivíduo terá que ousar arrostar a correnteza e a profundidade do rio,
atravessando-o, com medo e com coragem, em bamba canoa. Do lado de lá, na
segunda margem do rio, a pessoa encontra e locupleta-se do outro -
semelhante-dessemelhante – novidadeiro, desafiante e, ao mesmo tempo, completador
e enriquecedor. Constitui-se assim uma corriqueira trama de vida. Então porquê,
onde está a terceira margem do rio?
Vamos
especular. Todo ser vivo deve uma morte à natureza. A teleologia, a finalidade
da vida é a morte pessoal do façanhudo sujeito. Viver é, a cada momento,
aproximar-se mais da própria morte. A morte é a única interrogação séria a ser
feita por quem é vivo. O evento futuro da morte pessoal é o motor de todas as
cogitações filosóficas. 2
O pai –
semiologicamente tido por louco, leproso, calado, silencioso, possuído por
vertigens – nada disso o define. O pai é a sã consciência lúcida da assunção da
angústia – do estreitamento das livres disponibilidades do ser vivente. Resolve
antecipar-se ao inexorável destino tomando atitude para todos incognoscível.
Seu comportamento é estranho, insólito, inapreensível para todos nós, aqueles
que, meramente, utilizam o rio como vau de passagem daqui-prali e de lá pra cá.
O pai posta-se em canoa no meio da corrente do rio. Instala-se parado em meio
ao fluxo incessante. Compõe a paralisia do ser em pleno movimento das águas
roladoras. O pai cria um delírio fluvial, a um só tempo estático – em permanência
parada – e extático – encantado, suspenso por sobre si e por sobre o mundo
sensível, por efeito de uma convicção do temor reverente e arrebatador do
destino que é a espera da própria morte. O pai maravilhou-se com aquilo – a
morte –, que sempre, todos nós, arredamos de nós, o mais possível. A morte para
nós, prosaicos barranqueiros, é a encarnação, a entronização do mal em escala
maior. A morte é o maior mal que, um dia, irá nos engolfar.
“Mire veja: o que é ruim, dentro da gente a gente perverte
sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?” 4:55.
O pai
encantou-se com seu destino – a morte. Foi cumpri-lo em vida. Ai, o insólito, o
inusitado, a estranheza. O inquietante para todos nós.
Para nós, os ripuários,
aqueles que vivem vagabundeantes, ora numa ora noutra margem do rio, a atitude
do pai causa uma Unheimlich - uma
inquietante estranheza. 3:275
O feito do pai
tem por mérito o ter sido feito. Seu motivo, seu propósito é postar-se na
contra-mão da cultura. Ele involuiu, regrediu, em um ousado desmanche do mundo
da cultura. Cria um escandaloso possível. Provoca um brutal choque com o
prosaico bem-posto. Insere-se em isolamento
evidente, no entanto, pública e explícitamente. A um só tempo, visível e
inacessível. O pai pioneiro, encantado e obstinado, assume a travessia que todo
homem terá que fazer – de má vontade embora -, do momento presente ao devir,
visando cumprir sua alta tarefa, qual seja, ir de encontro com o não-ser,
mergulhar na dissolução da morte. Trata-se de mera vicissitude característica
da biologia. A morte apenas , sem mistificação.
Muitos sempre
quiseram e querem edulcorar a morte como sendo algo metafísico, transcendente,
e, até, metempsicótico. João Guimarães Rosa é um crente nesses tipos irreais e
sem evidência de transcendência. Tais concepções místicas e mistificadas são
belas e altamente consoladoras, insufladas pela ventosidade da fé. Fé é crença
sem evidência.
Como tudo que é
idealista e imaginário cria, contudo, a possibilidade de uma estética baseada no
mistério. Se tais conceitos aquecem o peito e obstruem a inteligência de 80% da
humanidade, em todos os tempos, uma minoria mais esclarecida estabelece uma
estética e uma ética desprovida de crendices e de divindades. 2 Talvez crie pior literatura. Sei lá. Talvez não.
Parece que a humanidade está prestes a se cansar de acreditar em deuses que em
nada lhe beneficia. Resta-nos então creditar ao homem – ao vero homem humano –
suas vicissitudes e suas trampolinagens. Do divinolente, da divinatoriedade é
necessário cometer-se um salto mortale
e descair de bunda no plano do humano, simplesmente humano: Pirlimpsiquice. 5:38
Chega, no
entanto, de proselitismo “brilhante”, agnóstico.
Voltemos ao
centro do rio. Rio pode ser palavra mágica para conjugar futuro. Rio é via,
estrada, vereda, caminho, um dos lugares possíveis de trânsito para o Viator,
para o homem viajante, sempre insatisfeito com aquilo que o constitui e que
conforma seu ser. Assim, parte, aventuroso, rumo ao excitante novidadeiro
renovador enriquecedor. Caminhar é preciso.
Tudo muda o
tempo todo nas águas do rio, tal qual Heráclito afirmou. Não se banha os pés
pela segunda vez na mesma água do rio. O cosmos está em mudança constante.
Nada muda por
sobre as águas do rio, tal qual, afirmou Parmênides. O pai feitoriza a
imobilidade. “Pai calado, rio calado.” Insere a paralisia no movimento.
O pai, ativa e
solitariamente, funde-se em simbiose ao rio, de uma forma inexplicável e
inexprimível.
Aos 14 anos, o enfezado e
incompreendido esquizóide Joãozito decidiu deitar e nunca mais se levantar.
Dado biográfico relatado por ele, João Rosa. 7
O pai, com sua
definição, cria uma aporia, uma dificuldade filosófica para o filho e para
todos os demais. Ao inovar em
comportamento, o pai gera um dilema: o quê torna-se interrogação: - Por quê?
Esta é a paixão
do filho. Ele é colocado em drama, em busca inútil para obter uma explicação ou
uma justificação para o feito do pai. Debalde. O filho desenvolvera um
comportamento de apego para com o pai. Complexo de Édipo mais especial apego,
vinculou o filho em admiração ao pai. Um potente liame uniu o filho ao pai,
mediante um familiar processo intrapsíquico de identificação introjetiva.
“Mas, por afeto
mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom
procedimento, eu falava: - “Foi pai que
um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato, mas, que
era mentira por verdade.” 5:35
Todo o acervo intrapsíquico de boa qualidade
que o filho colecionara estava referido ao exemplo e ao ensinamento do pai.
Houvera sintonia entre os dois: “Espiou manso para mim, me acenando de vir
também por uns passos”. O filho acatou internamente o convite do pai, mas se
conteve por temor da mãe.
“Não cito (os
autores que leio), mas absorvo.” 7 Assim
se explica Guimarães Rosa.
Os mecanismos
de operação psíquicos de preenchimento do vazio em tabula rasa do psiquismo
infante são, em seqüência, comer o seio, comer a mãe, comer o outro, o que se
conceitua, em psicodinâmica, como sendo incoporação; imitar os ademanes do
outro, o que se denomina introjeção.
A apropriação
por parte do ego do sujeito de atributo ou propriedade do mundo externo, o qual
se instala, tal qual, a partir daí, em seu psiquismo, é conceituado, em
psicanálise, como sendo internalização.
Em estágio mais
avançado, o filho desenvolve uma identificação introjetiva maciça para com seu
pai, tornando-se como sujeito psíquico, em grande parte igual/tal qual à imagem
e parecença do pai. Faltou-lhe tão somente o encantamento e a coragem de ir “da
parte de além” No momento de decisão faltou-lhe tutano. A não se deixar
encantar, aterrorizou-se com “o além.”
“Ah, a algum,
isso é que é, a gente tem de vassalar.” 1
Quem melhor
senão ao bom pai?
“Nosso pai era
homem cumpridor, ordeiro, positivo; do que eu mesmo me alembro, ele não
figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só
quieto.” A atitude do pai de se internar em canoa de vinhático na terceira
margem do rio – seu permanente fluxo -, esticou o psiquismo do filho até gerar
um estado persistente e impregnante de angústia. Ficou capturado na teia
paterna. Não encontrando explicação para a trama, o filho ficou aderido à gosma
da servidão, restando-lhe prestar vassalagem ao grande senhor do rio. Encarregou-se
de abastecer o pai dos alimentos e das roupas de que ele, pai, vinha
desentocar, para se manter vivo enquanto as forças não lhe faltassem.
“Mostrei o de
comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco
de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora.”
Os anos
passaram. “Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.” “Eu fiquei aqui,
de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da
vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei
– na vagação, no rio no ermo – sem dar razão de seu feito.” 5:35
Fixado no pai,
fisgado por sua postura imperscrutável, fascinado por sua misteriosa e
inquietante atitude, o filho permanece capturado pelo mandato de nutrir e de
zelar, no possível, pelo espectro do pai. É assim que o filho adquire uma forte
e significativa razão de ser e de viver. Este, seu emprego e sua profissão, malgré elle meme.
O filho
torna-se uma versão vassala, submissa de um pai portentoso em sua inovação. Assim,
pouco evoluído no que tange a erigir sua própria pessoalidade, o filho adquire
cabelos brancos e torna-se homem de tristes palavras. Castrado por não poder
desabrochar suas livres disponibilidades ao não seguir vida própria, por seu
querer governada, o filho é invadido pela culpa.
“De que era que
eu tinha tanta, tanta culpa?”
Por hipótese,
podemos supor um afluente de culpa derivada do empecilho de o filho não
vir-a-ser aquilo que poderia ter sido. Culpa de não ser o que se pudesse querer
vir-a-ser. Essa, a culpa endógena.
O outro
manancial de culpa, provém do contato constante de apego do filho ao pai, ao
participar ativamente do drama. O tempo é o infiel de todas as traições. “Ah, o
tempo é o mágico de todas as traições...” escreve Guimarães Rosa no conto O espelho, que é o articulador e o
fulcro deste tratado pessoal de filosofia de que trata Primeiras Estórias. O tempo corrói a disponibilidade e a boa vontade
do filho. Como a correnteza erodi o casco da canoa poitada em três décadas.
Sabe-se que a
culpa é péssima conselheira. Ela destrói, por impregnação, as capacidades do
sujeito tomar atitudes de avanço e de auto-realização. Culpa diminui e acovarda
a pessoa. Além disso, é inesgotável se não for carpida em adequado processo de
luto.
Se o pai se
acha na terceira margem do rio, o filho, por sua vez, se perde postado na
primeira margem. Vivia depletado: “esta vida era só o demoramento.”
O filho sabe de
sua impotência. O drama pode resvalar para o falimento, para a tragédia.
Guimarães Rosa
emprega, a me ver, apenas três termos inusitados no conto. Neologismos? Nem por
isso.
Diluso quer dizer vislumbrado,
entrevisto, pouco nítido.
Bubuiasse é bubuiar, boiar ao sabor da
corrente, sobrenadar. Provém do tupi: be’bui
- algo leve, flutuante.
Tororoma, do
tupi toro´rom, significando corrente
fluvial forte e ruidosa. Nada de neologismos. Apenas o conhecimento de línguas.
“Eu não escrevo
difícil. EU SEI O NOME DAS COISAS.”7:196 Afirma nosso querido escritor.
A mãe tem papel marginal na estória.
“Nossa mãe era quem regia,”
“Nossa mãe, a
gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou
o beiço e bramou:
- Cê vai, ocê
fique, você nunca volte!” 5:32
“- Cê vai” é aceitação da resolução
de um íntimo, o marido.
“- Ocê fique” é
o tratamento explícito a um outro diferente.
“- Você nunca volte!” é a exclamação de
protesto pela rejeição inflingida a ela, “nossa mãe”, que assim rompe de vez
com ele, marido, pai: “você.”
“Nossa mãe,
vergonhosa, se portou com muita cordura;”
Tempos depois,
desistida “Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã,
ela estava envelhecida.” A mãe cumpre a sina de porcentagem de mulheres que
acolhem o sexo do homem, procriam e, lá um dia, são abandonadas por ele, com a
prole.
Os homens fazem
o que querem, no fim e ao cabo.
As mulheres são
tratadas, muitas vezes, como um belo complemento. Sei que, ao escrever e
publicar isso, haverá ódio e ranger de dentes, protestos virulentos. Isso
porque ninguém gosta da realidade dos fatos. Azar. Azeite. Azeitona.
Pode-se agora examinar
a terceira margem do rio comparando-o com alguns mitologemas.
Noé recebeu
aviso do próximo dilúvio e o mandato de construir a arca. O pai não recebeu
nenhuma revelação profética. Apenas teve o insight,
a iluminação súbita de que devia uma morte à natureza. E decidiu cumpri-la.
Caronte é o
barqueiro autorizado a transportar as almas dos mortos em sua barca pelo rio
Aqueronte, que era a porta de entrada dos infernos. O pai transportava apenas a
si mesmo em um rio largo e comum.
Apenas que, é
bom lembrar, todo rio em Guimarães Rosa possui três margens.
Ulisses, o
Odisseu navegador, cometeu uma enorme seqüência de peripécias e participou de
dezenas de aventuras. Suas navegações caracterizam pela intencionalidade de ir
sempre adiante, numa constante impermanência. O pai é bem mais prosaico. Sua
peripécia envolve apenas a si e ao filho, subsidiariamente. Sua odisséia é
mínima, porém mais perturbadora e inquietante.
Iô, a peregrina
transformada em novilha por Zeus, seu amante, deu nome ao golfo de Jônio e ao
Bósforo – “Passagem da vaca” – em suas andanças tentando fugir das perseguições
de Hera, ciumenta esposa de Zeus, pouco tem a ver com a monomania fluvial do
Pai. Desde Millôr Fernandes, sabe-se que Bos/Ox significa boi; Foro/Ford é
estreito. Assim, Bósforo e Oxford é o estreito do boi ou, mitologicamente, a
passagem da vaca Iô.
Prometeu, o
façanhudo raptor do fogo dos deuses e doador do fogo aos homens, era “aquele
que pensa antes de cometer o feito.” Nisso, o pai certamente equivale a este
herói da mitologia grega.
Por fim, uma
deidade simbólica grega – Tanatos - personificava o fim da existência humana.
Tanatos ou a Morte é a representação da reintegração do ser no poço ctônico
cósmico, retornando, átomo por átomo, ao repositório da mãe-natureza. Tanatos
expressa o desmantelamento das formas, em um catabolismo em dissolução, num
retorno ao estado seminal da existência.
É nesse sentido
que, certamente, o pai fora possuído pela iluminação súbita de que chegara o
momento de postar-se em A terceira margem
do rio. Ele intuiu, mais antecipadamente que nós, que era hora de vivenciar
o eterno ainda em vida. Coisa a que se propôs o filho, em hora extrema e que
não teve substância, homência de substituir o pai na canoa. “Ele que parecia
vir: da parte de além.”
“Temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo.”
Mais um
fracasso, mais uma traição ao pai. A gente jamais cuida totalmente do outro
querido. A morte, qualquer morte, é um libelo que denuncia nossas falhas. O
filho rompe o vínculo, quebra a comparsaria que manteve, por anos, com o pai. A
culpa aumenta em conseqüência, transmuda-se:
“Sofri o grave
frio dos medos, adoeci.” Psicossomatizou em sintomas de tristeza e de falimento
pessoal.
Por fim, se
constituiu em negativo, em melancolia: “sou o que não foi,”. Melancolia decorre
da perda de um bem concreto, alegórico, imaginário ou da ordem de um valor.
Perda acarreta
tristeza. Tristeza é o sentimento a-menos decorrente de um bem amado que se
foi. “Sei que ninguém soube mais dele.”
O objeto de
fascínio, de apego ao qual está identificado, perpetra um feito estúrdio. Cria
um dilema: ou o abandona, como fizeram “nossa mãe, a filha, o irmão.” Ou
atreve-se a partilhar a experiência do imponderável e do ignoto. Para obter o
saber do pai será necessário entrar só na canoa, em substituição ao desgrenhado
e macilento fantasma do pai. A inquietante estranheza da decaída figura do pai,
transitando pela margem da morte, é demais para quase todos nós. Sejamos
compassivos para com a fuga do filho. Só João Guimarães Rosa obteve autorização
para lidar com essas extremas dimensões. Ele soube usar sua língua pessoal na
plenitude da função de produzir uma realidade sublimada.
Todo ser humano
tem uma canoa em meio ao rio a sua espera em áurea horas. Auroras.
A gente morre
para provar que viveu.
Alguns querem,
com pertinência, ler e entender o conto A
terceira margem do rio como sendo a façanha de Rosa tornar a língua
portuguesa consciente de si mesma, assumindo função produtora de realidade
ficcional e de criação de mundos possíveis. No que tange à primeira margem do
idioma português, ele está voltado para o mar oceano e está inserido nas
bibliotecas. A segunda margem é dada pelos sertões brasileiros, com sua
linguagem mais rica e mais formosa. Dessas duas margens, Guimarães Rosa
insinua/vislumbra uma terceira margem lingüística que é o campo desbravado para
se fazer um pensar novo, mais síntono com as complexidades da vida de hoje. A
obra em monumento de João Guimarães Rosa cuida de criar uma língua própria,
pessoal, enormemente enriquecedora das duas margens da língua
portuguesa-brasileira.
Rosa é o
feiticeiro da língua, inovador e renovador do idioma. Possui o porte de um
Dante, de um Camões, de um Cervantes, de um Shakespeare.
Duas palavras
ainda. As concepções de Sigmund Freud 3
atravessaram o século XX e umas três dúzias delas mantém-se como fecundas bases
para se pensar aspectos do psiquismo do homem. O fato de que se pode
interpretar “A terceira margem do rio” a partir de uma visão não devocional,
não clerical da transcendência humana, permite escoimar o conto de boa parte de
suas abstrusidades. O que fiz foi buscar sua hermenêutica utilizando o falquejo,
o desbatamento das formas misteriosas, desmentindo os milagres que não se vê
nem se pega e que, infelizmente, nem sequer acontecem.
Já é hora de
creditar a atuação do espírito humano sem edulcorações, balangandãs ou
penduricalhos. 1
Sem culpa.
Com reverência
ao autor forte antecessor.
Com a dignidade
do autor menor sucessor.
Referências
1- BAGGIO,
Marco Aurélio. Um abreviado do Grande
sertão: veredas. Contagem: Santa Clara, 2006.
2- -------------
Um abreviado de quase tudo. Contagem:
Santa Clara, 2007.
3- FREUD,
Sigmund. O Estranho. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
4- ROSA,
João Guimarães. Grande sertão: veredas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
5-
------------ Primeiras Estórias. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
6-
------------ Tutaméia. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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