terça-feira, 26 de março de 2013

A plumagem das palavras no texto de Rosa


A plumagem das palavras no texto de Rosa

               

         Sou feliz quando enfim componho.

Sede. Moraes Moreira.*

 

O pássaro que se separa do outro, vai voando adeus o tempo todo.9:459

Marco Aurélio Baggio

           

O que são as palavras ? O que é pra ser - são as palavras. 9:64      João Guimarães Rosa, o inclassificável literato, visava edificar sua obra para o transcendente, para o impossível, rumo ao infinito.

Eu gosto do apoio – o cenário, o enredo, o terra a terra é necessário para o salto, para a transcendência. Em dúvida de entendimento, adote a solução poética, a solução metafísica, a solução mística, então você acerta. 1:398

Mágico da língua portuguesa, abusou daquela falada no Brasil para criar uma nova língua: a sua, rosiana. A de João Guimarães Rosa. Poeta prosador, criador e escoimador de 10.000 palavras que injetou em seu idioma para, assim, emprestá-las a língua de Camões e de Fernando Pessoa.

Suas palavras-porta-palavras são de uma riqueza léxica absolutamente expressiva. Rosa é um trabalhador obsessivo, colecionando e alimpando o borrado sujo que as palavras se impregnam pelo desgaste do uso. Cunhou a palavra cheia, palavra-brasa-assoprada, candente, 3:56 renascente, dita para fazer efeito e motivar a interlocução com o outro.

Sua expressão mais conhecida é aquela proferida ao lado do esquife de Óseas Antônio da Costa Filho, colega goiano, na Faculdade de Medicina, em 17 de junho de 1926, e repetida 40 anos depois, ao término de seu discurso      de posse na Academia Brasileira de Letras, em 16 de novembro de 1967:

As pessoas não morrem, ficam encantadas. 5:97

Ai está o dito poético extremamente esperançoso do homem místico, à espera do desencantamento por meio de uma anelada ressurreição. Este, o eufemismo consolador que edulcora a radical brutalidade da morte. A memória de pessoas queridas ficam cristalizadas em nosso psiquismo. E só. Guimarães Rosa encantou-se para nós no dia 19 de novembro de 1967, três dias após haver tomado posse na Cadeira de nº2  cujo patrono é Álvares de Azevedo, tendo como fundador Coelho Neto e cujo ocupante anterior foi João Neves da Fontoura. Por quatro anos, adiara sua posse com medo de vir a morrer de emoção.

A segunda frase mais conhecida é a epígrafe que também comparece no miolo do Grande sertão: veredas:

O diabo na rua, no meio do redemoinho... 9:262

O diabo é o cisalhador, o dispersor dos inteiros, aquele que, incapaz de criar, por ser pura inexistência de si - nada, nonada, não é, – o demo é aquele somente capaz de separar, cortar, diferenciar a mônada inteiriça do ser. O diabo

 

*Cd Nana Caymmi e César Camargo Mariano. Voz e suor EMI – Odeon, 1983.

 

comparece com a inexistência em nossos íntimos esvaziados. Está sempre interferindo e interpolando, falsificando a parca obra do ser. Atua na rua, lugar do público em passagem, mediante as artes do falso círculo em vórtice de redemoinho – pé-de-pó, pé-de-vento.

O romance maior da literatura brasileiro-portuguesa trabalha/lida/trata como motivo central, da presença do espírito do mal, que provém dos crespos e dos avessos do homem incompleto, por sua ainda inconsistente inexistência como sujeito não dono de si mesmo. As veredas do Grande sertão são as sendas derivadas da cinematografia divididissíma dos fatos ao traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito. 2:22

Os 99 nomes do Coisa-Ruim 3:143 revelam as múltiplas roupagens e as diversas funções do demônio, ao introduzir o Mal como contraface do Bem, nas travessuras humanas.

Não é ainda bem ressaltado que Guimarães Rosa é um sábio de elevada sublimidade. Em uma frase, João sintetizou qual é a função e o sentido da vida de cada um de nós:

A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. 9:162

A gente vive para desiludir-se das ilusões atôa que carregamos desde a infância, pela adolescência, ao longo da vida adulta jovem. Desiludir-se dos contos de fadas, desencantar-se da fantasmagoria das idealidades não permitidas por toda esta constante charlatanice da realidade. É necessário entrar em luto quase permanente para desapartar-se do elenco de ilusões derruídas. Só assim, por sobre os escombros do periclitado e do decaído, pode-se perceber as verdades - provisórias embora – que configuram a realidade. Então, deve-se elaborar ilusões modernas, maduras, agora estribadas no leque de possibilidades oferecidas pela realidade tal qual se impõe, mesmo com seu mal-hálito eventual. Vive-se para desenredar-se de ilusões e para separar-se daquilo e daqueles que já não mais lhe convém: dejetos e resíduos que, antes, um dia, alimentaram nossa pessoa. Um ainda não é um: quando ainda faz parte com todos 9.201.

É ingente nascer misturado em simbiose com aqueles que a nós bem nos querem. Logo, é preciso descer do colo, ir aventurar-se pelo chão do mundo, ainda não sabendo que se é sujeito à morrer mas já é necessário achar a fôrma de seu pé. Lá um dia cada um pode perceber-se:

Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solta em minha frente uma idéia ligeira e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! 9:31  

            Pura individualidade integral embora insuficiente, Riobaldo é um pesquisador nato, pelos sertões embrenhado na natureza humana. Modesto, disfarça-se de falso ignorante para melhor cravar, no interlocutor, sua lâmpada de Deus, suas verdades verdadeiras. É desejável empreender um itinerário precário e pessoal como raso jagunço atirador cahorrando por este sertão na vida. 9:420 Sertão é qualquer espaço geográfico onde vivem os humanos, por sobre 12% da superfície da Terra. Todo o façanhar é para viver: existir como sujeito de si mesmo. Sertão: é dentro da gente. 9:325

 

Três apotegmas enfeixam-se como articuladores do ser da pessoa:

Ser dono defínito de mim, era o que eu queria, queria.9:54.

O objetivo de vida de Riobaldo, perseguido e trabalhado por ele, era crescer em sua mesmidade, deixando de ser um zé-prequeté-leguelé qualquer para tornar-se alguém que pudesse ser renomeado, sucessivamente, afilhado, professor, jagunço, Cerzidor, Tatarana lagarta-de-fogo, Urutu Branco e, por fim, fazendeiro prosperidoso.  

A mudança de nome revela ascensão, melhoria de qualificações, crescimento de atributos do personagem. A certa altura, Riobaldo pretende:

Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. 9:437 Aqui ele é hinduísta: a ninguém é permitido permanecer sendo o que é. 11:208 E seguidor de Pe. Vaz:

A tarefa incessante de viver realizando a própria vida é assumida pelo homem sob o estimulo permanente do aguilhão metafísico que o impele a ser mais. 10:224

As pessoas ainda não foram terminadas: mudam, de mudam. A edificação da pessoalidade de Riobaldo está dada quando diz:

Eu queria minha vida própria, por meu querer governada.9:370

Quantos bilhões de seres humanos, hoje, não se qualificaram para dispor de uma “vida própria” e, muito menos, não elaboraram a atilado dispositivo de querer alcançar objetos ao alcance de seu próprio alvedrio. Atualmente, a mídia invade os incautos consumidores oferecendo-lhes produtos em profusão e em promoção infinda, tamponando-lhes a capacidade de elaboração do próprio desejo. Ninguém quer aquilo que adquire. Ninguém, quase, sabe, sabe o que quer

Riobaldo quis. E quando conseguiu de seu Habão seu cavalo emblemático – o Siruiz – o Osíris – exclama:

Choveu para o meu arrozal! 9:448

E logo, dando as costas a Zé Bebelo que podia lhe agredir de morte:

O medo nenhum: eu estava forro, glorial, assegurado; quem ia conseguir audácias para atirar em mim? 9:448

A confecção do bem querer, possível e viável, é prerrogativa de quem sabe que aprender-a-viver é que é o viver mesmo, 9:601, desenvolvendo virtudes como fortaleza, temperança, ajuizamento e, sobretudo, prudência.

E sempre que o mau hálito da realidade bafejar o sujeito poderá, tal qual Riobaldo, apelar: ouvi minhas veias. 9:69

 Sumo bebi de mim, e do que eu não me tonteava. 9:480

 ,porque sumo bebi de mim, esses mares. 9:521

Riobaldo desenvolveu a aptidão de haurir de dentro de si, a partir de suas veredas estuantes interiores, as energias que passaram a determinar sua decisão e sua vontade.

João Guimarães Rosa não é para ser lido. É para ser sorvido, é para ser estudado. Suas duas mil frases são prosoemas sapienciais da mais excelsa sublimidade. Para que ler best-seller? Para que ler autor ruim, autor enrolado, que zomba de sua inteligência?

Ler é atividade que exercita seu psiquismo e apura sua  argúcia. Não introjete lixo em sua cabeça. O cérebro humano é um precário aparelho cheio de defeitos insanáveis de confecção. A boa leitura desbasta sua ignorância e sara parte de sua precariedade, alerta Harold Bloom. 4

Shakespeare e Guimarães Rosa são os melhores bibliou. O resto? Bem, você pode escolher mais uma meia dúzia, dúzia e meia de autores. No más!

 

A plumagem das palavras no texto de Rosa

 

Coisa mais fácil de arrolar. Só que não cabe um qüinquagésimo de sua obra. Assim, abusarei do direito de autor do capítulo para selecionar algumas penas coloridas que fazem cócegas em minha sensibilidade e na minha inteligência. Lá vai, quase ao acaso:

Mas o Quipes se riu: -Dindurinh... Boa apelidação. Falava feito fosse o nome de um pássaro. 9:583

Diadorim – Dindurinh – Andorinha. Andorinha é ave de arribação, pássaro da sublimidade. O diminutivo realça a leveza e a delicadeza do amigo andrógino.

Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia - voava reto para ele... 9:37

De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. 9:159 Manuelzinho-da-crôa passa a ser o pássaro emblemático da amorosa relação afetiva que abarca os dois amigos jagunços.

“Riobaldo... “Reinaldo... “...Dão par, os nomes de nós dois...” 9:160 É a própria coincidência em letras, sons e sentido. Note-se os significantes de origem germânica, tal como a derivação do nome Guimarães - Guimara - Wimara. Wehr mahr. 3:214. Cavaleiro combatente.

, o Reinaldo, qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes. 9:160.   Verdade sagrada. O número sete tem fortes conotações de verdade mística verdadeira, indubitável, sacramental. Aparece em todas as culturas como símbolo de totalidade, plenitude e completação. 3:194

Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também, - mas Diadorim é a minha neblina... 9:40 Milenarmente antigo: faça o bem se quer receber o bem. Esta é a Regra de Ouro que atravessa séculos, proferida desde os alvores dos tempos por místicos, pensadores, filósofos e “homens bons.”

Minha neblina é o indefinido lugar que abriga aquilo, desaparente e enevoado, que custa a se configurar em saber.

Amor é assim – o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão. 9:443 O amor em seus eflúvios em crescente, aflora, insinuante; logo cresce e torna-se um avassalador sentimento que arrosta empecilhos e se impõe a tudo.

Confiança – o senhor sabe. - não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa. 9:72

Confiança é sutil, inspira-se mais por atitude diante do outro do que pelos seus feitos e ademanes.

A primeira coisa, que um para seu alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes... 9: 447.

Se você é, se você está se tornando e quando pretende engrandecer-se, é certo que despertará invejas de alguns outros. Há que seguir adiante de si. Topar com ferrão as invejas, fazer caso delas e, ainda assim, seguir em frente.

Quase tudo que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?  9:196 É necessário meter-se na matriz simbiótica com os outros, bondosos e significativos, para ir-se constituindo como pessoa. Lá adiante, no entanto, é preciso desidentificar-se deles para poder assumir sua própria figura.

Fez? Não fez? Alguém ficou pra trás, alguém foi preterido. Vantagens, interesses ou conveniências ficaram abandonados. Ou você trai as expectativas do outro ou trai seu próprio indecente querer. Quem? O quê? Você escolhe sua inconstante lealdade.

Somente com a alegria é que a gente realiza bem - mesmo até as tristes ações. 9:434 Paradoxo explícito: a alegria é um dos viaticos para a vida. Manter a mente limpa e os afetos inflados de alegria permitem que se lide bem mesmo com as coisas tristes.

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. 9:327 Amor é que sara de loucura. Isso porque loucura é dispersão de pensamentos e disparate de ações sem seqüência, redundando em pura improdutividade. O amor dá corpo e coalizão às intenções e aos gestos que, assim, torna-se em boa conseqüência.

Eu tinha medo de homem humano. 9:422  Homem é coisa que treme e que experimenta, a cada dia, uma nova invenção de medo. Homem é animal cônscio de que sua extinção, sua morte própria, já está em edital. Por ser besta-fera e por ter horror à morte, o homem humano é o jagunço, o facínora, o caçador de seu próprio irmão. O homem humano é que é o demônio, capaz de infelicitar um arraial por pura pândega.

Vocês tem paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado ... 9:606  Lindo aforismo prudencial. É necessário ter paciência para os prazos de confecção e de maturação que as coisas exigem em seus processos de cocção. Mesmo quando aqueles estão ao alcance de meu poderio.

, queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.9:116  Riobaldo queria entender desses sentimentos segundas-e-sábados, da covardia e da coragem que resulta na gana de cometer as façanhas que nos arremetem para um ponto de marca do qual não se pode mais voltar para trás. Ponto de mutação, ponto de diferenciação, viragem de qualidade sem retorno.

Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho.9:74  Eis o duro paradoxo da vida: você tem que trabalhar sozinho para edificar sua pessoa. No entanto, muitos irão participar da colheita de benefícios que plantastes.

...quem moi no asp`ro não fantaseia. 9:26  Maravilha de aforismo – definição que delimita enquanto esclarece. Quem dá duro na vida, vivendo a nível de mera subsistência, fazendo o escasso da mão pra boca, não adquire condições para idealizar, para se iludir. Viverá no contato com a rudeza da canalhice da realidade. 

Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim – mesmo, me tonteava, numas ânsias. 9:610  Querer poder mais ambicionar-se de meios ou de talentos, gera agudo conflito que se traduz em ansiedade, em angústia, até que o sujeito tonteia por desmerecer-se de si.

 

              A clínica do Dr. Rosa é exemplar. Nela se encontra uma completa farmacopéia lingüística, capaz de “pensar” os diferentes males que assolam a condição do homem na travessia de sua existência. Por vezes, ele usa a forma de aforismos: frases breves, incisivas, definitivas que afirmam uma premissa e, logo, a derruba, dando uma guinada, criando uma reviravolta que incita a inteligência do leitor ao introduzir uma segunda afirmação, inusitada e paradoxal, contendo forte conteúdo sapiencial. Pirlimpsiquice. 7:38 Como mago da linguagem, no entanto, Guimarães Rosa emprega frases mais trabalhadas, verdadeiros pensêe, uma corrente de pensamento mais longo e mais abalançado. Suas duas mil frases poético–sapienciais merecem a cunhagem de uma nova palavra para bem defini-las: são prosoemas, na feliz concepção de Oswaldino Marques. A saber, prosa eivada de poesia, escanchada em poemas...  5:43;3:244.

Trabalho, trabalho e mais trabalho, Guimarães Rosa sabia que a poesia e a literatura se fazem a partir de lutas pessoais intermináveis. 4

            O que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém diz. 9:27. O diabo é o mal que nos habita. Sofrer um pouquinho e amar, é o que compassa nossos demoníacos afetos.              

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. 9:39   As pessoas podem regredir ou podem crescer e melhorar. Elas evoluem para a maturidade e para a sabedoria. Ou não...  É preciso ser a pedra irregular que funda sua própria capela, na qual se abriga o reino de luz que está dentro de si. Seja lâmpada que ilumina pedacinho da escuridão, esclarecendo algo para si mesmo.

A literatura e a psicanálise existem para ajudar as pessoas a aumentar suas capacidades humanas. Ambas acreditam que os seres humanos são sempre capazes de desenvolver potenciais e talentos ainda enovelados dentro de si.

Mira veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala? 9:55  Toleramos mal nossa própria maldade. Procuramos negá-la. Ou explicá-la para até justificá-la. Falar sobre nossa calhordice e nossa perversidade, ajuda a amenizar a corroência de seu ácido agir. Eis o porquê da eficácia da psicoterapia, como processo ágil para limpar, por dentro, a mente da pessoa. Permite assim que ela se libere do arresto de sua maldade e possa voltar a estuar-se como pessoa plena.

            Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: êle se dispõe para a gente é no meio da travessia. 9:80   A realidade é um instantâneo, um presentificado, que captura nossa atenção. Mostra-se como forte e pétreo. No entanto, a realidade gosta de desafirmar-se e, com freqüência, desaba. O que o sábio Guimarães afirma é que existe um quadrinho de realidade a cada passo da travessia.

            Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. 9:114        Tudo é e não é, mas pode ser que venha a ser. Um fato, uma coisa, traz, em seu bojo, a verdade inversa. Os acontecimentos estão em metamorfose permanente. A moda muda e depois muda para o mesmo...

            Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. 9:115 Tudo acontece desencaixado, descoordenado, desmastriado.

            Resolvi ter brio... Eu estava indo a meu esmo. 9:120  

            Diante do menino exemploso, Riobaldo resolveu acionar sua vergonha na cara, tornar-se quase igualmente animoso. Só assim podia entregar-se à vontade do menino do rio. Brio é amor-próprio, sentimento de valor de si mesmo. Coragem. Garbo. Magnanimidade.

            Amanheci minha aurora. 9:123 Exultei-me em mim mesmo. Esplandi minha mesmidade.

Muita coisa importante falta nome. 9:125  De fato: tantos sucederes nas transações humanas carecem de denominações apropriadas. No que se refere as novas formas de relacionamento afetivo, empregamos nomes inadequados: “ele é meu namorado, é meu amigo colorido, é meu novo companheiro, é o namorado da minha terceira madrasta”. Formas de definição das relações humanas que ficam devendo à riqueza e a complexidade dos novos envolvimentos afetivos de hoje.  

            Eu queria o ferver. 9:139       Eu queria que as coisas adquirissem vivência e conseqüência, que fossem cheias de incisividade.

            Homem? É coisa que treme. 9:168            Homem? É sempre bananeira que já deu cacho e folha que balança ao sabor do vento.

            Esta vida está cheia de ocultos caminhos. 9:170

            Quando tudo parece cerrado, costuma abrir-se uma vereda até então encoberta. Se faz caminho ao caminhar.

            Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. 9:196  A natureza da gente é inconfiável por ser variável, incongruente. A natureza humana, no entanto, é a mesma. Sempre foi e continua sendo absolutamente previsível em sua imprevisibilidade.

        Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão da fuga. 9:200  Cada um deve saber evitar de se envolver com aquilo e com aqueles de que não mais precisa nem mais lhe convém. Fugidor e fingidor são estratégias benévolas, posturas sábias, uma vez que é necessário aprender a ignorar o que deve ser ignorado. Para não encher o psiquismo de conteúdos desnecessários.

            Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.  Coração mistura amores.  Tudo cabe. 9:204      

            Coração mistura sentimentos e amores. Vai rompendo, brincando, divertido e folgazão, por entre as margens das circunstâncias. Coração não é lógico nem coerente. É um atanor, um cadinho onde se misturam quereres e gostares, metidos em pura mesclagem.

            ... continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos. 9:205  É o trabalho que dá sentido e significado às intenções do psiquismo. Assim, endurece o corpo e cria propósito que, ao ocupar os tempos largos do dia, gera os produtos almejados.

Confusa é a vida da gente; 9:206  Pois não é que tudo vem fechando em um tempo só, num entrecruzamento de componentes desencontrados? O que nos custa desemaranhá-los com os instrumentos de nossa inteligência e de nossa capacidade discriminativa. Alhos e borralhos, uma coisa e outra coisa, bago de aí-vim e feijão de corda tem de ser diligentemente separados.   

            quer não  é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. 9:214 O sábio místico do sertão mineiro, o compadre meu Clemente quer saber é aquilo que está depois da tempestade, aquilo que está por detrás do confessado relatado manifesto. Para além do explicito, tem-se que adivinhar o implícito, o sobre - dentro.

Tem um ponto da marca, que dele não se pode mais voltar para trás.9:229            Viver é seguir adiante. A lei Juscelino Kubitschek reza: “Pra frente é que se anda”. Avante, sempre, as coisas se diferenciam e se configuram irreversíveis.

            Vida, e guerra, é o que é: êsses tontos movimentos, ... 9:245  Linda formulação poética: esses volteados moventes eventos, esse vai-e-vem enlouquecido que é a guerra e a vida.

            O que carece é a companheiragem de todos no simples, assim irmãos.  9:264 Sejamos compassivos, amenos, fraternos, capazes de compartilharmos o pão e as demais dotações que dispomos uns com os outros. De todos, todos eram garantia.

            Toda hora estou em julgamento. 9:275 A cada momento estamos em um cômpito, sendo avaliados, seja por nosso super Eu, nossa consciência crítica interna, seja pelos outros todos, por demais. É a presença ubíqua da instância censora e crítica que nos mantém, sob vara de marmelo, nas sendas veredas da boa ordem.

            O vau do mundo é a alegria. 9:321  Alegria é o afeto que nos induz irmos de uma perfeição menor para uma perfeição maior. Alegria é a melhor coisa que existe. Ela é amor em estado de vivo contentamento. É a alegria o requisito prévio ao prazer que, a seguir, acarreta o regozijo e o jubilo. Alegria é jocoso afeto que expande as fronteiras do Eu. Só flui de nossos adentros após a correta fazeção das façanhas que a vida nos impõe.   

            - vau do mundo é a coragem... 9:321  Coragem provém do coração em pleno sentimento de cordialidade, tornando-nos cordos. Coragem é o influxo que nos faz embrenhar pelo sertão adentro afora. Ela é a energia que impulsa as escolhas de nosso bom senso, mediante acuidade de percepção e discernimento por aquilo que contém valor. É necessário dotar-se de bravura e de denodo, firmeza de espírito e intrepidez para arrostar os obstáculos e as dificuldades que se interpolam entre nós e nossos anelados objetos de completude. Determinação e tenacidade são componentes de nosso brio, de nossa hombridade, que configuram a grandeza de ânimo.

Todos estão loucos nêste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. 9:327

Experimentar, intrugir, conhecer, vivenciar para expandir o cômpito e a visão de mundo. Ninguém tem o direito de continuar sendo sempre igual. É de bom alvitre edificar-se, conhecer-se, crescer.

Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência... Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe  a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho mêdo? Não.  Estou dando batalha. É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe. 9:328

Todo caminho é áspero e cansativo. Cai sete vezes o homem cordo, levanta oito. É necessário estar sempre no eito, no campo de confecção da vida. É assim que se nega e se renega as patranhas com as quais o cisalhador – dispersor diabólico tenta fazer prevalecer em nós.

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e  daí  afrouxa,  sossega  e depois desinquieta. 9:334  A vida é um vago variado, uma mixórdia de ingredientes disparatados, um rebuceteio infernal desacorçoante sobre o qual temos que impor nossa prudência.

A liberdade é assim, movimentação. 9:336  Movimento e mudança: tudo é o mesmo, sempre diferente, sempre igual, com mil aparências transmudantes. Liberdade é esparrodar-se por ai, até topar com os limites da liberdade dos outros.

Vá se ter dó de cangussú, dever finezas a escorpião! 9:352 É preciso precaver-se da piedade espúria, aquela, auto-lesiva, que nos convida a ter compaixão para com nosso predador e a ser gentil e imprudente para com quem nos pica e nos envenena. É da sabedoria milenar a prescrição de se evitar o mal em qualquer de suas configurações. 

Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? 9:359  A verdade é uma dama de muitas faces. No teatro da vida, a verdade se impõe com determinada roupagem. Tolos, néscios somos nós, ao creditá-la como única. A lisa e real verdade contém, inclita, em si, verdade inversa. E dá como filhotes, miríades de verdades tergiversas, quando não, também, transversas...

É no junto  do que sabe bem, que a gente aprende o melhor...9:361  É com mestre mais apetrechado que temos exemplo e matriz para aprender bem e, as vezes, mais tarde, até poder superá-lo. Conviver com ignorantes é perder cabedais...

Então o mundo era muita doideira e pouca razão? 9:361

É. Pouca razão vigora nos negócios do mundo. Não sabe, meu filho, quão pouca sabedoria rege os negócios do mundo, alertou o  Papa Júlio II a um seu pupilo.

O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? 9:370  As coisas e os acontecimentos tem, por natureza, uma dinâmica própria, que passa por cima dos desejos e das conveniências humanas. A vida é caos e fúria, vagidos e estampidos, suavidade e volúpia. Esta vida é grande.

Quem vence, é  custoso  não  ficar com a  cara  de  demônio. 9:372  Ao vencedor os louros e as batatas.

A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói. 9:421  A pedra moenda ao girar, moi o grão ou não, moi e corrói a si mesma, em sua inexorável condenação de moenda. Guimarães Rosa quer explicitar a voracidade incoercível que tem certos processos – entre eles, o cometimento da maldade – de seguirem adiante, até o fim, quando então se extinguem por mera exaustão.

   Serras que vão saindo, para destapar outras serras. Tem de tôdas as coisas. Vivendo, se aprende, mas o que aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas. 9:429

Serras vencidas descerram outras serras. Tem de todas as matizes do azul. Viver é aprender. Mas o que se aprende serve por um momento. Logo acode ao sujeito outras novas questões maiúsculas. É necessário adquirir conhecimento pessoal, depurado, vivenciado. Ele possibilita distinguir o certo do errado; o feio do bonito; o bom do mal; o impertinente do conveniente. O conhecimento é patrimônio introjetado, faz amigos na cidade, é companheiro no revés, na solidão e no desamparo. É uma oferta carinhosa aos amigos, uma proteção contra os inimigos. O conhecimento é via constelar para a edificação da pessoa. Indica-nos a felicidade possível.

Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações. 9:434   Ao cometer a façanha que rompe o impasse e granjeia distinção, a pessoa se sente plena, gloriosa, consistente consigo mesma. É vivenciando a alegria que a pessoa eleva-se de um estado de perfeição menor para outro maior, e assim expande sua completude.

 – Porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. 9:477 Ninguém está sozinho. Todo homem vive imerso em uma comunidade, na qual tantos contribuem e outros tantos atrapalham. E, lembre-se: em panela de pobre quase tudo quanto há, é tempero.

Acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo. 10:355 Ser integro, impoluto, sem jaça e sem incongruência? Só quem já cristalizou-se e desvitalizou-se. Riobaldo – como todos nós – somos a própria inconseqüência, o próprio disparate, o vivente contraditório, e o inconsistente e gelatinoso ser.   Riobaldo sente uma inquietude que o leva a assumir sucessivas personalidades, como já relatamos.  

Atravessei meus fantasmas? 9:499 Em psicanálise, dá-se importância ao laborioso processo de travessia dos fantasmas que o analisando traz no bornal de seu passado. O processo psicanalítico permite o afloramento dos imaginários fantasmas que pululam no psiquismo do sujeito, infernizando-o e atazanando-o. Uma vez explicitados, segue-se a elaboração dos conflitos até obter-se uma resultante resolutiva valiosa.

  A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, êsse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. 9:500  Encontrar a via do meio, o itinerário do ser incompleto ao ser de plenitude. É preciso seguir as diretivas dos mais velhos. Senão, a vida despenca por cima das laterais, desabando nos excessos e nas exorbitâncias que transformam o sujeito em uma vítima infelicitada por si mesmo.

Ser chefe – por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores. 9:100 Ser chefe é parar quieto, só comandar. Há que carregar cobras na sacola: tem o seu ônus. Mas por dentro é enorme a satisfação de fazer a massa do mundo rodar e poder cometer as façanhas que constitui o currículo do homem verdadeiro homem.

Chefe não era para arrecadar vantagem, mas para emendar o defeituoso. 9:510  Ser chefe é assumir poderio para consertar o malfeito. Deve-se resguardar de tirar proveito pessoal da chefia.

Para vencer justo, o senhor não olhe nem veja o inimigo, volte para sua obrigação. 9:521  Faça sua parte a tempo e com correção. O inimigo irá desencostar e cair vencido.

O passado - é ossos em redor de ninho de coruja... 9:538

O passado concretizou-se em resíduos periclitados que já tiveram sua utilidade para nutrir um presente que se foi.

Sossêgo traz desejos. 9:540  Bem-estar e não ter o que fazer desperta anseios. Cabeça vazia é oficina de quereres.

E eu vi que: menos me entendiam, mais me davam os maiores podêres de chefia maior. 9:555  O poder outorgado é ilógico e irracional. Basta assumi-lo que ele, como um rio, recebe logo novos tributários afluentes.

Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.9:443

A vida é como tocar um solo de violino em público e aprender a manejar o instrumento enquanto se toca, ensinou Samuel Butler. Aos sessenta anos, o homem cordo está amadurecido, preparado para viver. Ás portas da senectude, o que tem como perspectiva é defrontar, logo adiante, com sua alta tarefa: a morte.

Vocês têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado... 9:606  Mesmo sendo poderoso, capaz de fazer e acontecer, Riobaldo sabe que as coisas gastam um tempo longo até ficarem prontas. É preciso, portanto, esperar com paciência o Káiros – o momento azado, oportuno, no qual as transmutações se fazem com maior facilidade.

Tudo sai mesmo é de escuros buracos, tirante o que vem do céu.  9:611  Todo o humano aflora dos fundos internos de sua biologia impulsional. Acrescido do que vem do espaço aéreo, apolíneo, luminoso e noético.

Nonada. O diabo não há! É o que digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia. 9:624

Não e não. O diabo não existe solto, por si, cidadão. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. 9:26

Existe é a cruel estupidez desatinada de homem humano, posto em extensão de existência: travessia.

Um livro, a ser certo, devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor para todos, virtude de enganar com um clareado a fantasia da gente, empuxar a coragem. 8:182

                                   

    Leminiscata 9:624

 

 

 


A leminiscata é o duplo zero hindu, deitado e jungido tal qual laço de fita. Anel de Borromeu. Eterno retorno, símbolo matemático do infinito.

            Para onde nos atrai o azul?

 

A plumagem das palavras em outras obras de Guimarães Rosa

 

Viver é obrigação sempre imediata (“Lá, nas campinas”–8:97) Viver impõe o desempenho esperto de tarefas e de deveres. Uma vez cumpridos, sobra-nos um tempo largo para desfrutar das coisas boas da vida. Dívidas e não cumprimento das obrigações são como cânceres no psiquismo da pessoa.

A gente pensa que vive por gosto, mas vive é por obrigação” (“A história do homem do PingueloEstas estórias).  Vive-se por precisão, não por boniteza. Viver, sobreviver, é tarefa para toda a vida. Este é o principal mandato a ser cumprido por cada um de nós.

Nenhuma vida tem resumo: a tarda crosta da vida, com seu trecheio de ilusões. A gente vê só o cinzento, mas tem-se de adivinhar o branco e o preto (“Ave, Palavra”)

A vida cria crosta recheada de ilusões. O que se vê é o meio foveiro mas tem-se de adivinhar de que tons nele estão desfavorecidos e misturados. 

Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente. (“Quadrinho de Estória” – 8:139)

A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida.

Todos nós somos Prometeus, ladrões de fogo. Muito embora, a maioria, fracassados.

O mal não tem miolo. Rebimba, o bom –. 8:144)

O mal não tem existência própria. Não é. Viceja nos interstícios onde o Bem ainda não penetrou.

Quem quer viver, faz mágica. (“Uai, Eu?” – 8:197)

Vida é opção, é querência. Frágil e dependente como é, ela nos obriga tornarmo-nos Mandrakes para trapacear em abater seu peso.

A vida também é para ser lida. (“Aletria e Hermenêutica”8:8) A vida é também para ser aprendida.

Felicidade se acha é só em horinhas de descuido. (“Barra da vaca” – 8:36) Momentos felizes são inesperados e fugazes. O bom da vida é só de chuvisco.

Foram infelizes e felizes, misturadamente. (“A vela ao Diabo, 8:27) Como em toda relação amorosa, há muito que reclamar e sofrer. Há muito também para nos completar e alegrar. Misturadamente.

Ternura sem tentativa – fraternura. (“A Vela ao Diabo”8:27)  Respeito e dignidade permite o bem-querer sem maiores intimidades.

Ninguém está a cobro da doideira de si e dos outros. (“Droenha” 8:50) Ninguém está isento das perigosas e imprevisíveis aleivosias dos humanos.

Tudo o que é bom faz mal e bem. (“Êsses Lopes, 8:58)

Aquilo que me ataca e não me mata, contribui, como alimento, para meu crescimento. O que não me destrói, ainda assim me desgasta e me aborrece.

Viver é encargo de pouco proveito e muito desempenho, não nos dando por ora lazer para nos ocuparmos em aumentar a riqueza, a beleza, a expressividade da língua. (“Hipotrélico”, 8:77)            Viver é trabalhar para cuidar da língua, repositório da dignidade do homem.

A vida se ata com barbante? (“Intruge-se”, 8:83) Ata-se com qualquer coisa: com amor, com ódio, arame, solda, barbante, encaixe, corda, afinidade e, até, com dissensão.

            As coisas mesmas, por si, escolhem de suceder ou não, no prosseguir. (“No prosseguir”, pág. 114) Os acontecimentos trazem em si sua dinâmica própria, sua fronésis, isto é, sua específica processualística. Independentemente de nossas vontades e de nossas conveniências. Planejar é preciso. No entanto, as coisas e os eventos, no mundo e na vida, tem um movimento e um poderio próprio em devir, que, frequentemente, trespassam e transbordam nosso querer e nosso planejado.

Loucos, a ponto de quererem juntas, a liberdade e a felicidade. (“O outro ou o Outro”, 8:120)  Ciganos, zíngaros, calões, romanis, milenar povo nômade, dotados de adaptabilidade e de estuância de viver, a ponto de conseguir e manter sua liberdade de movimentos e sua alegria de viver, em meio a diferentes povos menos efusivos. Gitanos exerciam notável fascínio sobre o sertanejo Guimarães Rosa.

Ou a sovinice da vida, as inexatidões do concreto imediato, o mau-hálito da realidade. (“Orientação” 8:125)

            A vida nos dá três de seis coisas que precisamos: bom, bonito, barato, fácil, disponível e gostoso. Escolha as suas e se console com o que lhe ficou faltando. A realidade, por vezes, tem um bafo desagradável e, com freqüência deixa transparecer sua canalhice. 

-‘Tu, toma conta!’ – pelo tom, parecia vingar-se das variadas ofensas da vida. (“Ripuaria”, 8:151)  Viver bem, a cavaleiro de seus interesses, é a única vingança.

Do que o da gente, vale a semente. Preserve seu imo, seu self, sua matriz de mesmidade. Há um núcleo inclito e lídimo na interioridade luminosa do ser.

Até hoje, para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. (“Sobre a escova e a dúvida”, 8:167)  O relógio é o marcador lógico e implacável que impõe ao ser sair para fora de si, em exteriorizações esterilizantes. 

            Os sonhos são ainda rabiscos de crianças desatordoadas. 8:168  Sonhos são insinuações de desejos infantis desacorçoados.

Tudo é incauto e pseudo, as flores sou eu não meditando, mesmo o de hoje é um dia que comprei fiado. 8:168

            Tudo é incerto e transitório, as flores afloram por elas mesmas, independentes de nossa mente e, mesmo, vivencia-se o dia de hoje a base do fiado. Nunca se sabe se dispõe-se  de cabedal para fazer face à suas exigências. A meu ver, este é um dos dez melhores prosoemas de Guimarães Rosa.

O mal está agora guardando lugar para o bem. O mundo supura é só a olhos impuros. 8:183.  O mal se dispersa quando insurge o bem.

As verdades da vida são sem prazos. (Sota e Barla, 8:187)

            As verdades são atemporais, semi-eternas.

Mas o nosso bom São Marcos vaqueiro, viajeiro, ajudou: primeiro mandou forte desalento; depois, então, a coragem. (“Vida Ensinada”, 8:204)  Diante das exigências que a vida nos impõe, primeiro sente-se forte desanimo, depois lassidão e desamparo. Aos poucos, brota a coragem necessária para o enfrentamento e a superação das dificuldades.

Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. (Sobre a escova e a dúvida 8:166)  O primeiro contato com o inesperado desperta em nós uma finta, como que uma esguelha. Consolida-se, veraz, depois.

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de  repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez?  9:326  

Nesse prosoema esta cravada a utopia de Guimarães Rosa, digna de Jesus de Nazaré, o excelso homem:

O que impede que os homens se religuem em suas humanidades, para enfrentar as adversidades e supera-las juntos, de uma vez? Por quais artes diabólicas isso não acontece?

Rosa queria acreditar na humanidade: Um dia, ela tomará tento e juízo.

 

Por que plumagem?

 

Guimarães Rosa procurou escrever na “língua dos pássaros”, aquela, falada antes de Babel. Para ele, as palavras têm canto e plumagem.

Sim, que, a parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fôra se jamais usado. E, mais abaixo, declara: E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. 6:238       

Pássaro é dinossauro voador, cujos braços tornaram-se asas, ornadas e equipadas com diferentes tipos de penas.

Da pele do pássaro surge uma formação de queratina, oca, um tubo ou cálamo, de onde se projeta em reque ou eixo, aos quais se unem filamentos ou barbas, formando um vexilo. Penas tectrizes cobrem o corpo da ave. Penas timoneiras surgem na cauda. Remiges dispõe-se nas pontas das asas, comandando o vôo, inseridas que estão nos ossos dos membros anteriores.

No campo da linguagem, a queratina fundante equivale aos substantivos: componentes léxicos duros, que dão nome às coisas. Verbos são remiges que flexionam e dão movimento à linguagem. Adjetivos modulam e colorem as penas.  As penas remiges principais da linguagem são as metáforas, escoltadas pelas metonímias. A metáfora compara uma coisa insossa, a outra semelhante, mais luminosa. Por exemplo: Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. 9.57 Ou ainda: Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flôr. 9. 304

Na metonímia designa-se uma coisa por outra, com a qual mantém uma relação de causa ou de efeito. Emprega-se o mecanismo psíquico do deslocamento, típico do discurso metonímico. Exemplo: Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim. 9. 209

Sinestesias dão colorido à da linguagem: O vento é verde. Ai, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo. 9. 306

O vexilo das penas é dado pelas aliterações:

Quero sombra? Quero eco? Quero cão? Não, 9.199

Pão ou pães, é questão de opiniães...  9. 24.

            Antíteses: tudo é e não é... 9.27, silépses: concordâncias estúrdias; prosopopéia, isto é, ato de atribuir qualidades humanas a coisas inanimadas, como em:... o cabecear das árvores, o riso do ar... 9:68, tudo isso constituem os fios de barbas das penas na linguagem.

Já a intertextualidade, junto com a metalinguagem, constituem o encaixe e a articulação das grandes penas remiges nos ossos das asas da linguagem. Da mesma forma, a mistura do concreto e do abstrato como em: E de tudo miúdo eu dava de comer a minha alegria. 9:564, são outras remiges – grandes penas que dão sustentação ao vôo da linguagem.

Palavras porta – palavras tais como aboborosa, sonhice, mutema, borbôlo, lualã, luzluziu, tornopio, docice, militriz 3:84 e centenas de outras cunhadas na oficina lingüística de Guimarães Rosa, são, junto com os neologismos, como moimeichego, são vistosas penas novas que encorpam e enriquecem a plumagem de seu idioma – pássaro.

Através do mandato da intuição e da cordialidade expressos em seus contos, Guimarães Rosa tenta alcançar o infinito. A literatura rosiana captura verbalmente a cinematografia divididíssima dos fatos ao traduzir aos milésimos os movimentos da psiquê humana. 8:77.  Antes de utilizar a lógica e a razão, Rosa percebe o homem pelas vertentes do afeto, da estranheza e do paradoxo, para melhor organizar a arquitetura psíquica de ser tão próprio. É para isso que o homem é revelado em suas entranhas e patranhas, desde seus crespos e seus avessos, a partir do sangue, das veias e dos nervos que o constituem.

A plumagem das palavras configuram a especificidade das vivências desses transeuntes pássaros que somos cada um de nós. Ave! 

 Pois não é que Pica-pau voa é duvidando do ar. 9:526 ?

 

Referências

1-       Araújo, Heloísa Vilhena. O roteiro de Deus. São Paulo: Mandarim, 1996.

2-       -------------------------------- As três graças. São Paulo: Mandarim, 2001.

3-       Baggio, Marco Aurélio. Um abreviado do Grande sertão: veredas. Contagem: Santa Clara, 2006.

4- Bloom, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003

5-       Rocha, Luiz Otávio Savassi. João Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1981.

6-       Rosa, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

7-       ------------------------------- Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985.

8-       ----------------------------- Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985.

9-       ---------------------------- Grande sertão: veredas. 19º ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

10- Vaz Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica. 2 vols. São Paulo: Loyola. 1991.

11 – Zimmer, Heinrich Robert. A conquista psicológica do mal. São Paulo: Palas Athena. 1988.

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