A plumagem das
palavras no texto de Rosa
Sou
feliz quando enfim componho.
Sede. Moraes Moreira.*
O pássaro que se separa do outro, vai voando adeus o tempo
todo.9:459
Marco Aurélio Baggio
O que são as palavras ? O que é pra ser - são as palavras. 9:64 João Guimarães Rosa, o inclassificável literato, visava
edificar sua obra para o transcendente, para o impossível, rumo ao infinito.
Eu gosto do
apoio – o cenário, o enredo, o terra a terra é necessário para o salto, para a
transcendência. Em dúvida de entendimento, adote a solução poética, a solução
metafísica, a solução mística, então você acerta. 1:398
Mágico da língua portuguesa, abusou daquela falada no
Brasil para criar uma nova língua: a sua, rosiana. A de João Guimarães Rosa.
Poeta prosador, criador e escoimador de 10.000 palavras que injetou em seu
idioma para, assim, emprestá-las a língua de Camões e de Fernando Pessoa.
Suas palavras-porta-palavras são de uma riqueza
léxica absolutamente expressiva. Rosa é um trabalhador obsessivo, colecionando
e alimpando o borrado sujo que as palavras se impregnam pelo desgaste do uso.
Cunhou a palavra cheia,
palavra-brasa-assoprada, candente, 3:56 renascente, dita para fazer efeito
e motivar a interlocução com o outro.
Sua expressão mais conhecida é aquela proferida ao
lado do esquife de Óseas Antônio da Costa Filho, colega goiano, na Faculdade de
Medicina, em 17 de junho de 1926, e repetida 40 anos depois, ao término de seu
discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras, em 16 de novembro de 1967:
As pessoas
não morrem, ficam encantadas. 5:97
Ai está o dito poético extremamente esperançoso do
homem místico, à espera do desencantamento por meio de uma anelada
ressurreição. Este, o eufemismo consolador que edulcora a radical brutalidade
da morte. A memória de pessoas queridas ficam cristalizadas em nosso psiquismo.
E só. Guimarães Rosa encantou-se para nós no dia 19 de novembro de 1967, três
dias após haver tomado posse na Cadeira de nº2
cujo patrono é Álvares de Azevedo, tendo como fundador Coelho Neto e
cujo ocupante anterior foi João Neves da Fontoura. Por quatro anos, adiara sua
posse com medo de vir a morrer de emoção.
A segunda frase mais conhecida é a epígrafe que
também comparece no miolo do Grande
sertão: veredas:
O diabo na
rua, no meio do redemoinho... 9:262
O diabo é o cisalhador, o dispersor dos inteiros,
aquele que, incapaz de criar, por ser pura inexistência de si - nada, nonada,
não é, – o demo é aquele somente capaz de separar, cortar, diferenciar a mônada
inteiriça do ser. O diabo
*Cd Nana Caymmi e César Camargo
Mariano. Voz e suor EMI – Odeon,
1983.
comparece
com a inexistência em nossos íntimos esvaziados. Está sempre interferindo e
interpolando, falsificando a parca obra do ser. Atua na rua, lugar do público
em passagem, mediante as artes do falso círculo em vórtice de redemoinho –
pé-de-pó, pé-de-vento.
O romance maior da literatura brasileiro-portuguesa
trabalha/lida/trata como motivo central, da presença do espírito do mal, que
provém dos crespos e dos avessos do homem incompleto, por sua ainda inconsistente
inexistência como sujeito não dono de si mesmo. As
veredas do Grande sertão são as sendas derivadas da cinematografia
divididissíma dos fatos ao traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito.
2:22
Os 99 nomes do Coisa-Ruim 3:143 revelam as
múltiplas roupagens e as diversas funções do demônio, ao introduzir o Mal como
contraface do Bem, nas travessuras humanas.
Não é ainda bem ressaltado que Guimarães Rosa é um
sábio de elevada sublimidade. Em uma frase, João sintetizou qual é a função e o
sentido da vida de cada um de nós:
A gente
vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. 9:162
A gente vive para desiludir-se das ilusões atôa que carregamos desde a infância, pela
adolescência, ao longo da vida adulta jovem. Desiludir-se dos contos de fadas,
desencantar-se da fantasmagoria das idealidades não permitidas por toda esta
constante charlatanice da realidade. É necessário entrar em luto quase
permanente para desapartar-se do elenco de ilusões derruídas. Só assim, por sobre
os escombros do periclitado e do decaído, pode-se perceber as verdades -
provisórias embora – que configuram a realidade. Então, deve-se elaborar
ilusões modernas, maduras, agora estribadas no leque de possibilidades
oferecidas pela realidade tal qual se impõe, mesmo com seu mal-hálito eventual.
Vive-se para desenredar-se de ilusões e para
separar-se daquilo e daqueles que já não mais lhe convém: dejetos e resíduos
que, antes, um dia, alimentaram nossa pessoa. Um ainda não é um: quando ainda faz parte com todos 9.201.
É ingente nascer misturado em simbiose com aqueles
que a nós bem nos querem. Logo, é preciso descer do colo, ir aventurar-se pelo
chão do mundo, ainda não sabendo que se é sujeito à morrer mas já é necessário
achar a fôrma de seu pé. Lá um dia cada um pode perceber-se:
Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o
mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor
concedendo eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solta em minha
frente uma idéia ligeira e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! 9:31
Pura
individualidade integral embora insuficiente, Riobaldo é um pesquisador nato,
pelos sertões embrenhado na natureza humana. Modesto, disfarça-se de falso
ignorante para melhor cravar, no interlocutor, sua lâmpada de Deus, suas
verdades verdadeiras. É desejável
empreender um itinerário precário e pessoal como raso jagunço atirador cahorrando por este sertão na vida. 9:420 Sertão
é qualquer espaço geográfico onde vivem os humanos, por sobre 12% da superfície
da Terra. Todo o façanhar é para viver: existir como sujeito de si mesmo. Sertão: é dentro da gente. 9:325
Três apotegmas enfeixam-se como articuladores do ser
da pessoa:
Ser dono
defínito de mim, era o que eu queria, queria.9:54.
O objetivo de vida de Riobaldo, perseguido e
trabalhado por ele, era crescer em sua mesmidade, deixando de ser um
zé-prequeté-leguelé qualquer para tornar-se alguém que pudesse ser renomeado,
sucessivamente, afilhado, professor, jagunço, Cerzidor, Tatarana lagarta-de-fogo,
Urutu Branco e, por fim, fazendeiro prosperidoso.
A mudança de nome revela ascensão, melhoria de
qualificações, crescimento de atributos do personagem. A certa altura, Riobaldo
pretende:
Eu queria
ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. 9:437 Aqui
ele é hinduísta: a ninguém é permitido
permanecer sendo o que é. 11:208 E seguidor de Pe. Vaz:
A tarefa
incessante de viver realizando a
própria vida é assumida pelo homem sob o estimulo permanente do aguilhão
metafísico que o impele a ser mais. 10:224
As pessoas ainda não foram terminadas: mudam, de
mudam. A edificação da pessoalidade de Riobaldo está dada quando diz:
Eu queria
minha vida própria, por meu querer governada.9:370
Quantos bilhões de seres humanos, hoje, não se
qualificaram para dispor de uma “vida própria” e, muito menos, não elaboraram a
atilado dispositivo de querer alcançar objetos ao alcance de seu próprio alvedrio.
Atualmente, a mídia invade os incautos consumidores oferecendo-lhes produtos em
profusão e em promoção infinda, tamponando-lhes a capacidade de elaboração do
próprio desejo. Ninguém quer aquilo que adquire. Ninguém, quase, sabe, sabe o
que quer
Riobaldo quis. E quando conseguiu de seu Habão seu
cavalo emblemático – o Siruiz – o Osíris – exclama:
Choveu para
o meu arrozal! 9:448
E logo, dando as costas a Zé Bebelo que podia lhe
agredir de morte:
O medo
nenhum: eu estava forro, glorial, assegurado; quem ia conseguir audácias para
atirar em mim? 9:448
A confecção do bem querer, possível e viável, é
prerrogativa de quem sabe que aprender-a-viver
é que é o viver mesmo, 9:601, desenvolvendo virtudes como fortaleza,
temperança, ajuizamento e, sobretudo, prudência.
E sempre que o mau hálito da realidade bafejar o sujeito
poderá, tal qual Riobaldo, apelar: ouvi
minhas veias. 9:69
Sumo bebi de mim, e do que eu não me
tonteava. 9:480
,porque sumo bebi de mim, esses mares. 9:521
Riobaldo desenvolveu a aptidão de haurir de dentro de
si, a partir de suas veredas estuantes interiores, as energias que passaram a
determinar sua decisão e sua vontade.
João Guimarães Rosa não é para ser lido. É para ser
sorvido, é para ser estudado. Suas duas mil frases são prosoemas sapienciais da
mais excelsa sublimidade. Para que ler best-seller?
Para que ler autor ruim, autor enrolado, que zomba de sua inteligência?
Ler é atividade que exercita seu psiquismo e apura
sua argúcia. Não introjete lixo em sua
cabeça. O cérebro humano é um precário aparelho cheio de defeitos insanáveis de
confecção. A boa leitura desbasta sua ignorância e sara parte de sua
precariedade, alerta Harold Bloom. 4
Shakespeare e Guimarães Rosa são os melhores bibliou. O resto? Bem, você pode
escolher mais uma meia dúzia, dúzia e meia de autores. No más!
A plumagem das palavras no texto de Rosa
Coisa mais fácil de arrolar. Só que não cabe um
qüinquagésimo de sua obra. Assim, abusarei do direito de autor do capítulo para
selecionar algumas penas coloridas que fazem cócegas em minha sensibilidade e
na minha inteligência. Lá vai, quase ao acaso:
Mas o Quipes
se riu: -Dindurinh... Boa apelidação. Falava feito fosse o nome de um pássaro. 9:583
Diadorim – Dindurinh
– Andorinha. Andorinha é ave de arribação, pássaro da sublimidade. O diminutivo
realça a leveza e a delicadeza do amigo andrógino.
Com meu
amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia - voava reto para ele... 9:37
De todos, o
pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. 9:159 Manuelzinho-da-crôa passa a ser o pássaro
emblemático da amorosa relação afetiva que abarca os dois amigos jagunços.
“Riobaldo...
“Reinaldo... “...Dão par, os nomes de nós dois...” 9:160 É a própria coincidência em letras, sons e
sentido. Note-se os significantes de origem germânica, tal como a derivação do
nome Guimarães - Guimara - Wimara. Wehr mahr. 3:214. Cavaleiro combatente.
, o
Reinaldo, qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes. 9:160. Verdade
sagrada. O número sete tem fortes conotações de verdade mística verdadeira,
indubitável, sacramental. Aparece em
todas as culturas como símbolo de totalidade, plenitude e completação.
3:194
Amor vem de
amor. Digo. Em Diadorim, penso também, - mas Diadorim é a minha neblina... 9:40 Milenarmente antigo: faça o bem se quer receber
o bem. Esta é a Regra de Ouro que atravessa séculos, proferida desde os alvores
dos tempos por místicos, pensadores, filósofos e “homens bons.”
Minha
neblina é o indefinido lugar que
abriga aquilo, desaparente e enevoado, que custa a se configurar em saber.
Amor é assim
– o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão. 9:443 O amor em seus eflúvios em crescente, aflora,
insinuante; logo cresce e torna-se um avassalador sentimento que arrosta
empecilhos e se impõe a tudo.
Confiança –
o senhor sabe. - não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o
quente da pessoa. 9:72
Confiança é sutil, inspira-se mais por atitude diante
do outro do que pelos seus feitos e ademanes.
A primeira
coisa, que um para seu alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as
invejas dos outros restantes... 9:
447.
Se você é, se você está se tornando e quando pretende
engrandecer-se, é certo que despertará invejas de alguns outros. Há que seguir
adiante de si. Topar com ferrão as invejas, fazer caso delas e, ainda assim, seguir
em frente.
Quase tudo
que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição? 9:196 É necessário meter-se na matriz simbiótica com os outros,
bondosos e significativos, para ir-se constituindo como pessoa. Lá adiante, no
entanto, é preciso desidentificar-se deles para poder assumir sua própria
figura.
Fez? Não fez? Alguém ficou pra trás, alguém foi preterido.
Vantagens, interesses ou conveniências ficaram abandonados. Ou você trai as expectativas
do outro ou trai seu próprio indecente querer. Quem? O quê? Você escolhe sua
inconstante lealdade.
Somente com
a alegria é que a gente realiza bem - mesmo até as tristes ações. 9:434 Paradoxo explícito: a alegria é um dos viaticos
para a vida. Manter a mente limpa e os afetos inflados de alegria permitem que
se lide bem mesmo com as coisas tristes.
Qualquer
amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. 9:327 Amor é que sara de loucura. Isso porque
loucura é dispersão de pensamentos e disparate de ações sem seqüência,
redundando em pura improdutividade. O amor dá corpo e coalizão às intenções e
aos gestos que, assim, torna-se em boa conseqüência.
Eu tinha
medo de homem humano. 9:422 Homem é coisa que treme e que experimenta, a
cada dia, uma nova invenção de medo. Homem é animal cônscio de que sua
extinção, sua morte própria, já está em edital. Por ser besta-fera e por ter
horror à morte, o homem humano é o
jagunço, o facínora, o caçador de seu próprio irmão. O homem humano é que é o demônio, capaz de infelicitar um arraial por
pura pândega.
Vocês tem
paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado ... 9:606 Lindo
aforismo prudencial. É necessário ter paciência para os prazos de confecção e
de maturação que as coisas exigem em seus processos de cocção. Mesmo quando aqueles
estão ao alcance de meu poderio.
, queria
entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos
atos, dar corpo ao suceder.9:116 Riobaldo queria entender desses sentimentos
segundas-e-sábados, da covardia e da coragem que resulta na gana de cometer as
façanhas que nos arremetem para um ponto de marca do qual não se pode mais
voltar para trás. Ponto de mutação, ponto de diferenciação, viragem de
qualidade sem retorno.
Riobaldo, a
colheita é comum, mas o capinar é sozinho.9:74 Eis o duro paradoxo da
vida: você tem que trabalhar sozinho para edificar sua pessoa. No entanto,
muitos irão participar da colheita de benefícios que plantastes.
...quem moi
no asp`ro não fantaseia. 9:26 Maravilha de aforismo – definição que
delimita enquanto esclarece. Quem dá duro na vida, vivendo a nível de mera
subsistência, fazendo o escasso da mão pra boca, não adquire condições para
idealizar, para se iludir. Viverá no contato com a rudeza da canalhice da
realidade.
Querer mil
gritar, e não pude, desmim de mim – mesmo, me tonteava, numas ânsias. 9:610 Querer
poder mais ambicionar-se de meios ou de talentos, gera agudo conflito que se
traduz em ansiedade, em angústia, até que o sujeito tonteia por desmerecer-se
de si.
A clínica
do Dr. Rosa é exemplar. Nela se encontra uma completa farmacopéia lingüística,
capaz de “pensar” os diferentes males que assolam a condição do homem na
travessia de sua existência. Por vezes, ele usa a forma de aforismos: frases
breves, incisivas, definitivas que afirmam uma premissa e, logo, a derruba,
dando uma guinada, criando uma reviravolta que incita a inteligência do leitor
ao introduzir uma segunda afirmação, inusitada e paradoxal, contendo forte
conteúdo sapiencial. Pirlimpsiquice.
7:38 Como mago da linguagem, no entanto, Guimarães Rosa emprega frases mais
trabalhadas, verdadeiros pensêe, uma
corrente de pensamento mais longo e mais abalançado. Suas duas mil frases
poético–sapienciais merecem a cunhagem de uma nova palavra para bem defini-las:
são prosoemas, na feliz concepção de Oswaldino Marques. A saber, prosa eivada
de poesia, escanchada em poemas... 5:43;3:244.
Trabalho, trabalho e mais trabalho, Guimarães Rosa sabia que
a poesia e a literatura se fazem a partir de lutas pessoais intermináveis. 4
O que gasta, vai gastando o diabo de dentro
da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre
meu Quelemém diz. 9:27. O diabo é
o mal que nos habita. Sofrer um pouquinho e amar, é o que compassa nossos
demoníacos afetos.
O senhor... Mire veja: o mais importante
e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.
Verdade maior. É o que a vida me ensinou. 9:39 As pessoas
podem regredir ou podem crescer e melhorar. Elas evoluem para a maturidade e
para a sabedoria. Ou não... É preciso
ser a pedra irregular que funda sua própria capela, na qual se abriga o reino
de luz que está dentro de si. Seja lâmpada que ilumina pedacinho da escuridão,
esclarecendo algo para si mesmo.
A literatura e a psicanálise existem para
ajudar as pessoas a aumentar suas capacidades humanas. Ambas acreditam que os
seres humanos são sempre capazes de desenvolver potenciais e talentos ainda
enovelados dentro de si.
Mira
veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais
de si. Para isso é que o muito se fala? 9:55 Toleramos
mal nossa própria maldade. Procuramos negá-la. Ou explicá-la para até
justificá-la. Falar sobre nossa calhordice e nossa perversidade, ajuda a
amenizar a corroência de seu ácido agir. Eis o porquê da eficácia da
psicoterapia, como processo ágil para limpar, por dentro, a mente da pessoa. Permite
assim que ela se libere do arresto de sua maldade e possa voltar a estuar-se
como pessoa plena.
Um está sempre no escuro, só no último derradeiro
é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: êle se
dispõe para a gente é no meio da travessia. 9:80 A realidade é um instantâneo, um
presentificado, que captura nossa atenção. Mostra-se como forte e pétreo. No
entanto, a realidade gosta de desafirmar-se e, com freqüência, desaba. O que o
sábio Guimarães afirma é que existe um quadrinho de realidade a cada passo da
travessia.
Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte,
reverte. 9:114 Tudo
é e não é, mas pode ser que venha a ser. Um fato, uma coisa, traz, em seu bojo,
a verdade inversa. Os acontecimentos estão em metamorfose permanente. A moda
muda e depois muda para o mesmo...
Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu
conto. 9:115
Tudo acontece desencaixado, descoordenado, desmastriado.
Resolvi ter brio... Eu estava indo a meu
esmo. 9:120
Diante do menino exemploso,
Riobaldo resolveu acionar sua vergonha na cara, tornar-se quase igualmente animoso.
Só assim podia entregar-se à vontade do menino do rio. Brio é amor-próprio,
sentimento de valor de si mesmo. Coragem. Garbo. Magnanimidade.
Amanheci minha aurora. 9:123
Exultei-me em mim mesmo. Esplandi minha mesmidade.
Muita
coisa importante falta nome. 9:125 De fato:
tantos sucederes nas transações humanas carecem de denominações apropriadas. No
que se refere as novas formas de relacionamento afetivo, empregamos nomes
inadequados: “ele é meu namorado, é meu amigo colorido, é meu novo companheiro,
é o namorado da minha terceira madrasta”. Formas de definição das relações
humanas que ficam devendo à riqueza e a complexidade dos novos envolvimentos
afetivos de hoje.
Eu queria o ferver. 9:139 Eu queria que as coisas adquirissem
vivência e conseqüência, que fossem cheias de incisividade.
Homem? É coisa que treme. 9:168 Homem? É sempre bananeira que já deu
cacho e folha que balança ao sabor do vento.
Esta vida está cheia de ocultos caminhos.
9:170
Quando tudo
parece cerrado, costuma abrir-se uma vereda até então encoberta. Se faz caminho
ao caminhar.
Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. 9:196 A natureza da gente é inconfiável por ser variável, incongruente.
A natureza humana, no entanto, é a mesma. Sempre foi e continua sendo
absolutamente previsível em sua imprevisibilidade.
Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão da
fuga. 9:200 Cada um
deve saber evitar de se envolver com aquilo e com aqueles de que não mais precisa
nem mais lhe convém. Fugidor e fingidor são estratégias benévolas, posturas
sábias, uma vez que é necessário aprender a ignorar o que deve ser ignorado.
Para não encher o psiquismo de conteúdos desnecessários.
Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e
varjas, matas e campinas. Coração
mistura amores. Tudo cabe. 9:204
Coração mistura
sentimentos e amores. Vai rompendo, brincando, divertido e folgazão, por entre
as margens das circunstâncias. Coração não é lógico nem coerente. É um atanor,
um cadinho onde se misturam quereres e gostares, metidos em pura mesclagem.
... continuados
trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos. 9:205 É o trabalho que dá sentido e significado às
intenções do psiquismo. Assim, endurece o corpo e cria propósito que, ao ocupar
os tempos largos do dia, gera os produtos almejados.
Confusa
é a vida da gente; 9:206 Pois não é que tudo vem fechando em um tempo
só, num entrecruzamento de componentes desencontrados? O que nos custa
desemaranhá-los com os instrumentos de nossa inteligência e de nossa capacidade
discriminativa. Alhos e borralhos, uma coisa e outra coisa, bago de aí-vim e
feijão de corda tem de ser diligentemente separados.
quer não
é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. 9:214 O
sábio místico do sertão mineiro, o compadre meu Clemente quer saber é aquilo
que está depois da tempestade, aquilo que está por detrás do confessado
relatado manifesto. Para além do explicito, tem-se que adivinhar o implícito, o
sobre - dentro.
Tem um ponto da marca, que dele
não se pode mais voltar para trás.9:229 Viver
é seguir adiante. A lei Juscelino Kubitschek reza: “Pra frente é que se anda”.
Avante, sempre, as coisas se diferenciam e se configuram irreversíveis.
Vida, e guerra, é o que é: êsses tontos
movimentos, ... 9:245 Linda
formulação poética: esses volteados moventes eventos, esse vai-e-vem
enlouquecido que é a guerra e a vida.
O que carece é a companheiragem de todos no
simples, assim irmãos. 9:264
Sejamos compassivos, amenos, fraternos, capazes de compartilharmos o pão e as
demais dotações que dispomos uns com os outros. De todos, todos eram garantia.
Toda hora estou em julgamento. 9:275
A cada momento estamos em um cômpito, sendo avaliados, seja por nosso super Eu,
nossa consciência crítica interna, seja pelos outros todos, por demais. É a
presença ubíqua da instância censora e crítica que nos mantém, sob vara de
marmelo, nas sendas veredas da boa ordem.
O vau do mundo é a alegria. 9:321 Alegria é o afeto que nos induz irmos de uma
perfeição menor para uma perfeição maior. Alegria é a melhor coisa que existe.
Ela é amor em estado de vivo contentamento. É a alegria o requisito prévio ao
prazer que, a seguir, acarreta o regozijo e o jubilo. Alegria é jocoso afeto
que expande as fronteiras do Eu. Só flui de nossos adentros após a correta
fazeção das façanhas que a vida nos impõe.
- vau do mundo é a coragem... 9:321 Coragem provém do coração em pleno sentimento
de cordialidade, tornando-nos cordos. Coragem é o influxo que nos faz embrenhar
pelo sertão adentro afora. Ela é a energia que impulsa as escolhas de nosso bom
senso, mediante acuidade de percepção e discernimento por aquilo que contém
valor. É necessário dotar-se de bravura e de denodo, firmeza de espírito e
intrepidez para arrostar os obstáculos e as dificuldades que se interpolam
entre nós e nossos anelados objetos de completude. Determinação e tenacidade
são componentes de nosso brio, de nossa hombridade, que configuram a grandeza
de ânimo.
Todos estão loucos nêste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as
coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores
diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. 9:327
Experimentar, intrugir, conhecer,
vivenciar para expandir o cômpito e a visão de mundo. Ninguém tem o direito de
continuar sendo sempre igual. É de bom alvitre edificar-se, conhecer-se,
crescer.
Ah, para o prazer e para ser feliz, é que
é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência... Todo caminho da
gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a
gente sobe a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho mêdo? Não.
Estou dando batalha. É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe. 9:328
Todo caminho é áspero e cansativo. Cai sete vezes o homem cordo,
levanta oito. É necessário estar sempre no eito, no campo de confecção da vida.
É assim que se nega e se renega as patranhas com as quais o cisalhador –
dispersor diabólico tenta fazer prevalecer em nós.
O
correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. 9:334
A vida é um vago variado, uma mixórdia de ingredientes disparatados, um
rebuceteio infernal desacorçoante sobre o qual temos que impor nossa prudência.
A
liberdade é assim, movimentação. 9:336 Movimento e
mudança: tudo é o mesmo, sempre diferente, sempre igual, com mil aparências
transmudantes. Liberdade é esparrodar-se por ai, até topar com os limites da
liberdade dos outros.
Vá
se ter dó de cangussú, dever finezas a escorpião! 9:352 É preciso precaver-se da
piedade espúria, aquela, auto-lesiva, que nos convida a ter compaixão para com nosso
predador e a ser gentil e imprudente para com quem nos pica e nos envenena. É
da sabedoria milenar a prescrição de se evitar o mal em qualquer de suas
configurações.
Então,
onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? 9:359 A verdade é uma dama de muitas faces. No teatro da vida, a
verdade se impõe com determinada roupagem. Tolos, néscios somos nós, ao
creditá-la como única. A lisa e real verdade contém, inclita, em si, verdade
inversa. E dá como filhotes, miríades de verdades tergiversas, quando não,
também, transversas...
É
no junto do que sabe bem, que a gente
aprende o melhor...9:361 É
com mestre mais apetrechado que temos exemplo e matriz para aprender bem e, as
vezes, mais tarde, até poder superá-lo. Conviver com ignorantes é perder
cabedais...
Então
o mundo era muita doideira e pouca razão? 9:361
É. Pouca razão vigora nos negócios do
mundo. Não sabe, meu filho, quão pouca
sabedoria rege os negócios do mundo, alertou o Papa Júlio II a um seu pupilo.
O
que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? 9:370 As coisas e os
acontecimentos tem, por natureza, uma dinâmica própria, que passa por cima dos
desejos e das conveniências humanas. A vida é caos e fúria, vagidos e
estampidos, suavidade e volúpia. Esta vida é grande.
Quem
vence, é custoso não ficar
com a cara de demônio. 9:372 Ao vencedor os louros e as batatas.
A
mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói,
mói. 9:421 A pedra moenda ao girar, moi o grão ou não,
moi e corrói a si mesma, em sua inexorável condenação de moenda. Guimarães Rosa
quer explicitar a voracidade incoercível que tem certos processos – entre eles,
o cometimento da maldade – de seguirem adiante, até o fim, quando então se extinguem
por mera exaustão.
Serras que vão saindo, para
destapar outras serras. Tem de tôdas as coisas. Vivendo, se aprende, mas o que
aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas. 9:429
Serras vencidas descerram outras serras.
Tem de todas as matizes do azul. Viver é aprender. Mas o que se aprende serve
por um momento. Logo acode ao sujeito outras novas questões maiúsculas. É
necessário adquirir conhecimento pessoal, depurado, vivenciado. Ele possibilita
distinguir o certo do errado; o feio do bonito; o bom do mal; o impertinente do
conveniente. O conhecimento é patrimônio introjetado, faz amigos na cidade, é
companheiro no revés, na solidão e no desamparo. É uma oferta carinhosa aos
amigos, uma proteção contra os inimigos. O conhecimento é via constelar para a
edificação da pessoa. Indica-nos a felicidade possível.
Somente
com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações. 9:434 Ao cometer a façanha que
rompe o impasse e granjeia distinção, a pessoa se sente plena, gloriosa,
consistente consigo mesma. É vivenciando a alegria que a pessoa eleva-se de um
estado de perfeição menor para outro maior, e assim expande sua completude.
– Porque a
vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. 9:477 Ninguém está sozinho.
Todo homem vive imerso em uma comunidade, na qual tantos contribuem e outros
tantos atrapalham. E, lembre-se: em
panela de pobre quase tudo quanto há,
é tempero.
Acho
que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo. 10:355 Ser
integro, impoluto, sem jaça e sem incongruência? Só quem já cristalizou-se e
desvitalizou-se. Riobaldo – como todos nós – somos a própria inconseqüência, o
próprio disparate, o vivente contraditório, e o inconsistente e gelatinoso
ser. Riobaldo sente uma inquietude que
o leva a assumir sucessivas personalidades, como já relatamos.
Atravessei
meus fantasmas? 9:499
Em psicanálise, dá-se importância ao laborioso processo de travessia dos
fantasmas que o analisando traz no bornal de seu passado. O processo
psicanalítico permite o afloramento dos imaginários fantasmas que pululam no
psiquismo do sujeito, infernizando-o e atazanando-o. Uma vez explicitados,
segue-se a elaboração dos conflitos até obter-se uma resultante resolutiva
valiosa.
A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito,
de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no
comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder
encontrar e saber? Mas, êsse norteado, tem. Tem que ter. Se
não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. 9:500 Encontrar a via do meio, o itinerário do ser incompleto ao ser de
plenitude. É preciso seguir as diretivas dos mais velhos. Senão, a vida
despenca por cima das laterais, desabando nos excessos e nas exorbitâncias que
transformam o sujeito em uma vítima infelicitada por si mesmo.
Ser chefe –
por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores. 9:100 Ser chefe é parar
quieto, só comandar. Há que carregar cobras na sacola: tem o seu ônus. Mas por
dentro é enorme a satisfação de fazer a massa do mundo rodar e poder cometer as
façanhas que constitui o currículo do homem verdadeiro homem.
Chefe
não era para arrecadar vantagem, mas para emendar o defeituoso. 9:510 Ser chefe é assumir poderio para
consertar o malfeito. Deve-se resguardar de tirar proveito pessoal da chefia.
Para
vencer justo, o senhor não olhe nem veja o inimigo, volte para sua obrigação. 9:521 Faça sua parte a tempo e com correção. O inimigo irá desencostar
e cair vencido.
O
passado - é ossos em redor de ninho de coruja... 9:538
O passado concretizou-se em resíduos
periclitados que já tiveram sua utilidade para nutrir um presente que se foi.
Sossêgo
traz desejos. 9:540 Bem-estar e não ter o que fazer desperta
anseios. Cabeça vazia é oficina de quereres.
E
eu vi que: menos me entendiam, mais me davam os maiores podêres de chefia
maior. 9:555 O poder outorgado é ilógico e irracional.
Basta assumi-lo que ele, como um rio, recebe logo novos tributários afluentes.
Viver
– não é?
– é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o
viver, mesmo.9:443
A
vida é como tocar um solo de violino em público e aprender a manejar o
instrumento enquanto se toca, ensinou Samuel Butler. Aos sessenta anos, o homem cordo está
amadurecido, preparado para viver. Ás portas da senectude, o que tem como
perspectiva é defrontar, logo adiante, com sua alta tarefa: a morte.
Vocês
têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado... 9:606 Mesmo sendo poderoso, capaz
de fazer e acontecer, Riobaldo sabe que as coisas gastam um tempo longo até
ficarem prontas. É preciso, portanto, esperar com paciência o Káiros – o momento azado, oportuno, no
qual as transmutações se fazem com maior facilidade.
Tudo
sai mesmo é de escuros buracos, tirante o que vem do céu. 9:611 Todo o humano aflora dos fundos internos de
sua biologia impulsional. Acrescido do que vem do espaço aéreo, apolíneo,
luminoso e noético.
Nonada.
O diabo não há! É o que digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia. 9:624
Não e não. O diabo não existe solto, por si, cidadão. Tem diabo nenhum. Nem
espírito. Nunca vi. 9:26
Existe é a cruel estupidez desatinada de
homem humano, posto em extensão de existência: travessia.
Um
livro, a ser certo, devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor para todos,
virtude de enganar com um clareado a fantasia da gente, empuxar a coragem. 8:182
Leminiscata 9:624
A leminiscata é o duplo zero hindu, deitado e jungido tal qual
laço de fita. Anel de Borromeu. Eterno retorno, símbolo matemático do infinito.
Para
onde nos atrai o azul?
A plumagem das palavras em outras obras de Guimarães
Rosa
Viver é
obrigação sempre imediata (“Lá, nas
campinas”–8:97) Viver impõe o desempenho esperto de tarefas e de deveres. Uma
vez cumpridos, sobra-nos um tempo largo para desfrutar das coisas boas da vida.
Dívidas e não cumprimento das obrigações são como cânceres no psiquismo da
pessoa.
A gente
pensa que vive por gosto, mas vive é por obrigação” (“A história do homem do
Pinguelo – Estas estórias). Vive-se
por precisão, não por boniteza. Viver, sobreviver, é tarefa para toda a vida.
Este é o principal mandato a ser cumprido por cada um de nós.
Nenhuma vida
tem resumo: a tarda crosta da vida, com seu trecheio de ilusões. A gente vê só
o cinzento, mas tem-se de adivinhar o branco e o preto (“Ave, Palavra”)
A vida cria crosta recheada de ilusões. O que se vê é
o meio foveiro mas tem-se de adivinhar de que tons nele estão desfavorecidos e
misturados.
Viver seja
talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente. (“Quadrinho de Estória” – 8:139)
A gente quer
mas não consegue furtar no peso da vida.
Todos nós somos Prometeus, ladrões de fogo. Muito
embora, a maioria, fracassados.
O mal não
tem miolo. Rebimba, o bom –. 8:144)
O mal não tem existência própria. Não é. Viceja nos
interstícios onde o Bem ainda não penetrou.
Quem quer
viver, faz mágica. (“Uai, Eu?” – 8:197)
Vida é opção, é querência. Frágil e dependente como
é, ela nos obriga tornarmo-nos Mandrakes para trapacear em abater seu peso.
A vida
também é para ser lida. (“Aletria e
Hermenêutica”8:8) A vida é também para ser aprendida.
Felicidade
se acha é só em horinhas de descuido.
(“Barra da vaca” – 8:36) Momentos
felizes são inesperados e fugazes. O bom
da vida é só de chuvisco.
Foram
infelizes e felizes, misturadamente.
(“A vela ao Diabo, 8:27) Como em toda relação amorosa, há muito que reclamar e
sofrer. Há muito também para nos completar e alegrar. Misturadamente.
Ternura sem
tentativa – fraternura. (“A Vela ao
Diabo”8:27) Respeito e dignidade
permite o bem-querer sem maiores intimidades.
Ninguém está
a cobro da doideira de si e dos outros. (“Droenha” 8:50) Ninguém está isento das perigosas e imprevisíveis aleivosias
dos humanos.
Tudo o que é
bom faz mal e bem. (“Êsses Lopes, 8:58)
Aquilo que me ataca e não me mata, contribui, como
alimento, para meu crescimento. O que não me destrói, ainda assim me desgasta e
me aborrece.
Viver é
encargo de pouco proveito e muito desempenho, não nos dando por ora lazer para
nos ocuparmos em aumentar a riqueza, a beleza, a expressividade da língua. (“Hipotrélico”, 8:77) Viver é trabalhar para cuidar da língua, repositório da
dignidade do homem.
A vida se
ata com barbante? (“Intruge-se”, 8:83)
Ata-se com qualquer coisa: com amor, com ódio, arame, solda, barbante, encaixe,
corda, afinidade e, até, com dissensão.
As
coisas mesmas, por si, escolhem de suceder ou não, no prosseguir. (“No
prosseguir”, pág. 114) Os acontecimentos trazem em si sua dinâmica própria, sua
fronésis, isto é, sua específica processualística. Independentemente de nossas
vontades e de nossas conveniências. Planejar é preciso. No entanto, as coisas e
os eventos, no mundo e na vida, tem um movimento e um poderio próprio em devir,
que, frequentemente, trespassam e transbordam nosso querer e nosso planejado.
Loucos, a
ponto de quererem juntas, a liberdade e a felicidade. (“O outro ou o Outro”, 8:120) Ciganos, zíngaros, calões, romanis, milenar
povo nômade, dotados de adaptabilidade e de estuância de viver, a ponto de
conseguir e manter sua liberdade de movimentos e sua alegria de viver, em meio
a diferentes povos menos efusivos. Gitanos exerciam notável fascínio sobre o
sertanejo Guimarães Rosa.
Ou a
sovinice da vida, as inexatidões do concreto imediato, o mau-hálito da
realidade. (“Orientação” 8:125)
A vida nos dá três de seis coisas
que precisamos: bom, bonito, barato, fácil, disponível e gostoso. Escolha as
suas e se console com o que lhe ficou faltando. A realidade, por vezes, tem um
bafo desagradável e, com freqüência deixa transparecer sua canalhice.
-‘Tu, toma conta!’ – pelo tom, parecia vingar-se das
variadas ofensas da vida. (“Ripuaria”,
8:151) Viver bem, a cavaleiro de seus
interesses, é a única vingança.
Do que o da
gente, vale a semente. Preserve seu
imo, seu self, sua matriz de
mesmidade. Há um núcleo inclito e lídimo na interioridade luminosa do ser.
Até hoje,
para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. (“Sobre a escova e a dúvida”, 8:167) O relógio é o marcador lógico e implacável
que impõe ao ser sair para fora de si, em exteriorizações esterilizantes.
Os sonhos são ainda rabiscos de crianças desatordoadas. 8:168 Sonhos
são insinuações de desejos infantis desacorçoados.
Tudo é
incauto e pseudo, as flores sou eu não meditando, mesmo o de hoje é um dia que
comprei fiado. 8:168
Tudo é incerto e transitório, as
flores afloram por elas mesmas, independentes de nossa mente e, mesmo,
vivencia-se o dia de hoje a base do fiado. Nunca se sabe se dispõe-se de cabedal para fazer face à suas exigências.
A meu ver, este é um dos dez melhores prosoemas de Guimarães Rosa.
O mal está
agora guardando lugar para o bem. O mundo supura é só a olhos impuros. 8:183. O mal
se dispersa quando insurge o bem.
As verdades
da vida são sem prazos. (Sota e
Barla, 8:187)
As verdades são atemporais, semi-eternas.
Mas o nosso
bom São Marcos vaqueiro, viajeiro, ajudou: primeiro mandou forte desalento;
depois, então, a coragem. (“Vida
Ensinada”, 8:204) Diante das exigências
que a vida nos impõe, primeiro sente-se forte desanimo, depois lassidão e
desamparo. Aos poucos, brota a coragem necessária para o enfrentamento e a
superação das dificuldades.
Tudo se
finge, primeiro; germina autêntico é depois. (Sobre a escova e a dúvida 8:166) O primeiro contato com o inesperado desperta
em nós uma finta, como que uma esguelha. Consolida-se, veraz, depois.
Mestre
não é quem sempre ensina, mas quem de repente
aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma
vez? 9:326
Nesse prosoema esta cravada a utopia de Guimarães Rosa, digna de
Jesus de Nazaré, o excelso homem:
O que impede que os homens se religuem em
suas humanidades, para enfrentar as adversidades e supera-las juntos, de uma
vez? Por quais artes diabólicas isso não acontece?
Rosa queria acreditar na humanidade: Um
dia, ela tomará tento e juízo.
Por que plumagem?
Guimarães Rosa procurou escrever na
“língua dos pássaros”, aquela, falada antes de Babel. Para ele, as palavras têm
canto e plumagem.
Sim,
que, a parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e
menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fôra se jamais usado. E, mais abaixo, declara: E não é sem assim que as palavras têm
canto e plumagem. 6:238
Pássaro é dinossauro voador, cujos braços
tornaram-se asas, ornadas e equipadas com diferentes tipos de penas.
Da pele do pássaro surge uma formação de
queratina, oca, um tubo ou cálamo, de onde se projeta em reque ou eixo, aos
quais se unem filamentos ou barbas, formando um vexilo. Penas tectrizes cobrem
o corpo da ave. Penas timoneiras surgem na cauda. Remiges dispõe-se nas pontas
das asas, comandando o vôo, inseridas que estão nos ossos dos membros anteriores.
No campo da linguagem, a queratina
fundante equivale aos substantivos: componentes léxicos duros, que dão nome às
coisas. Verbos são remiges que flexionam e dão movimento à linguagem. Adjetivos
modulam e colorem as penas. As penas
remiges principais da linguagem são as metáforas, escoltadas pelas metonímias. A
metáfora compara uma coisa insossa, a outra semelhante, mais luminosa. Por
exemplo: Abracei Diadorim, como as asas
de todos os pássaros. 9.57 Ou ainda: Quando
a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flôr. 9. 304
Na metonímia designa-se uma coisa por
outra, com a qual mantém uma relação de causa ou de efeito. Emprega-se o
mecanismo psíquico do deslocamento, típico do discurso metonímico. Exemplo: Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com
ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim. 9. 209
Sinestesias dão colorido à da linguagem: O vento é verde. Ai, no intervalo, o senhor
pega o silêncio põe no colo. 9. 306
O vexilo das penas é dado pelas aliterações:
Quero
sombra? Quero eco? Quero cão? Não, 9.199
Pão
ou pães, é questão de opiniães... 9. 24.
Antíteses:
tudo é e não é... 9.27, silépses:
concordâncias estúrdias; prosopopéia, isto é, ato de atribuir qualidades
humanas a coisas inanimadas, como em:...
o cabecear das árvores, o riso do ar... 9:68, tudo isso constituem os fios
de barbas das penas na linguagem.
Já a intertextualidade, junto com a
metalinguagem, constituem o encaixe e a articulação das grandes penas remiges
nos ossos das asas da linguagem. Da mesma forma, a mistura do concreto e do
abstrato como em: E de tudo miúdo eu dava
de comer a minha alegria. 9:564, são outras remiges – grandes penas que dão
sustentação ao vôo da linguagem.
Palavras porta – palavras tais como aboborosa, sonhice, mutema, borbôlo, lualã,
luzluziu, tornopio, docice, militriz 3:84 e centenas de outras cunhadas na
oficina lingüística de Guimarães Rosa, são, junto com os neologismos, como moimeichego, são vistosas penas novas
que encorpam e enriquecem a plumagem de seu idioma – pássaro.
Através do mandato da intuição e da
cordialidade expressos em seus contos, Guimarães Rosa tenta alcançar o
infinito. A literatura rosiana captura
verbalmente a cinematografia divididíssima dos fatos ao traduzir aos milésimos os movimentos da
psiquê humana. 8:77. Antes de utilizar
a lógica e a razão, Rosa percebe o homem pelas vertentes do afeto, da
estranheza e do paradoxo, para melhor organizar a arquitetura psíquica de ser
tão próprio. É para isso que o homem é revelado em suas entranhas e patranhas,
desde seus crespos e seus avessos, a partir do sangue, das veias e dos nervos
que o constituem.
A plumagem das palavras configuram a
especificidade das vivências desses transeuntes pássaros que somos cada um de
nós. Ave!
Pois
não é que Pica-pau voa é duvidando do ar.
9:526 ?
Referências
1- Araújo, Heloísa Vilhena. O roteiro de Deus. São Paulo: Mandarim, 1996.
2- -------------------------------- As três graças. São Paulo: Mandarim, 2001.
3- Baggio, Marco Aurélio. Um abreviado do Grande sertão: veredas. Contagem: Santa Clara,
2006.
4-
Bloom, Harold. Gênio: os 100
autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva,
2003
5- Rocha, Luiz Otávio Savassi. João Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1981.
6- Rosa, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
7- ------------------------------- Primeiras estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. 1985.
8- ----------------------------- Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1985.
9- ---------------------------- Grande sertão: veredas. 19º ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
10-
Vaz Henrique Cláudio de Lima. Antropologia
filosófica. 2 vols. São Paulo: Loyola. 1991.
11
– Zimmer, Heinrich Robert. A conquista
psicológica do mal. São Paulo: Palas Athena. 1988.
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