terça-feira, 26 de março de 2013

Os deserdados da sorte na obra de Guimarães Rosa


Os deserdados da sorte na obra de Guimarães Rosa

 

Marco Aurélio Baggio

 

        Joãozito teve uma infância sofrida. Detestava a intromissão dos adultos em sua intimidade. Brincava solitário ou com amiguinhos e ouvia os casos na venda de seu pai. Cresceu ávido de saber e talentoso para línguas. Como médico, no tugúrio de Itaguara, conheceu a miséria e a dor humana desamparada. Constatou que a medicina dava pouco alívio ao sofrimento dos doentes. Como cônsul em Hamburgo vivenciou a estupidez decadente de uma Alemanha hitlerista. Compadeceu-se dos perseguidos pela fúria de Wotan.

        Em 1947 esteve no pantanal mato-grossense.

Estava presente em 1948 por ocasião do levante civil conhecido por Bogotaço. Em 1952, reencontra a pobreza e a dureza da vida no interior mineiro. Nada mudara para melhor.

Homem de fino pathos, Guimarães Rosa sempre soube da precariedade da vida das pessoas. Por experiência própria, aprendera que o homem é um ser, de início, desequipado, desprotegido, acossado por necessidades e por insuficiências, quase que o tempo todo. Nascido incompleto, postado na sua querência de origem na margem primeira da vida, o homem tem que, cedo e rápido, desenvolver seu potencial – sua inteligência e seu talento – para, logo, adquirir recursos vivenciais e apetrechamentos que o capacitem a se situar melhor na travessia do enorme rio da vida em bamba canoa, por sobre o bambalango das insurgências e dos acontecimentos.

O vetor pulsional do ser humano o coloca em prolepse, voltado para a busca dos objetos completadores e satisfatores que, sempre, se postam lá longe, na outra margem do rio da vida. É destino o homem ser objeto e sujeito de sua própria busca.

O homem João Guimarães Rosa viveu marcado / tocado pela urgente necessidade de dar conta das contrariedades pulsionais que o acossavam. Ouvindo os “causos”, viveu em entranhado drama, percebendo que os seres humanos, em sua derrelicção, espremiam expedientes para dar conta de sair de seus embondos e de seus impasses. Os “causos” que tanto gostava de ouvir contar eram exemplares. Neles encontrava a intendência das situações, logo seguidas da logística disponível à pessoa. A seguir, evolvia as táticas para o enfrentamento dos desafios e dos problemas. Tais peripécias desvelavam a riqueza psíquica que a pessoa desenvolvera, muitas vezes sem saber que continha tais recursos.

Recriados na oficina lingüística de Guimarães Rosa, os causos adquiriram a grandeza literária da qual o gênio de “Cordisburgo” era capaz. Por suas mãos tornado conto, pode-se perceber a estratégia empregada na guerra da vida pelo personagem. E desse amplo cenário lingüístico Rosa inoculava pérolas e peças de sua concepção de vida. Sua cosmovisão sempre visava alcançar o excelso, o transcendente e o infinito. Os seres incompletos de sua casuística desempenhavam, em pirlimpsiquice, sua trajetória de crescimento pessoal, rumo à progressiva edificação de suas vidas. A meu ver, por isso é que a obra de João Guimarães Rosa ultrapassa a mera literatura mesma. Não canso de lê-la e de dizê-la como sendo uma coleção de livros sapienciais de excepcional acuidade e valor.

Certamente é considerado pelos intelectuais, mestres e doutores em textos de Guimarães Rosa, sua inteligência, sua cultura universal, sua habilidade para línguas e seu exuberante talento para criar uma língua portuguesa-brasileiro-rosiana, só sua.

Bah! Bar, ba, barbaridade, uai! Que trem, siô!

Por que esquecem o Unheimlich, o âmago do homem?

Ele era, acima de tudo, um Homem Bom. Doce. Meigo. Suave. Rosa. João é deus conosco. Guimarães é Wimara: cavaleiro andante, cavaleiro combatente. Rosa é símbolo da beleza e da bondade. Seu apelido era “burgo do coração”:  “Cordisburgo”. Assim o chanceler João Neves da Fontoura o convocava.

Joãozito para os íntimos, cedo dotou-se de um forte sentimento de solidariedade para com a pobre humanidade. Metafísico, místico, cristão, crente na ressurreição e na reencarnação, vivia como um sacerdote da condição humana. Homem dotado de compaixão legítima para com a humanidade, descrente da política, o diplomata João Guimarães Rosa foi o embaixador que, através da língua, aspirava trazer lenitivo e conserto para esse nosso mundo sem juízo e desmastriado.

Os deserdados da sorte somos todos nós. Se ganhamos a vida, nossa ração de boa fortuna é não apenas aleatória quanto escassa. Em panela de pobre quase tudo que há é tempero. No bornal de cada um de nós, nos resta tornarmo-nos metietas. É imprescindível desenvolver habilidades, ferramentas, expedientes, instrumentos e capacitações variadas, múltiplas e eficazes. Nossa Bildung - nossa formação - ainda deve pautar-se pela aretê grega: a busca a excelência em tudo que se faça. Superioridade; instalação de padrões pessoais de decência, de dignidade, de auto-respeito no que quer que um toque ou que faça ou que relacione.

Guimarães Rosa foi esse homem de Excelência.

Os deserdados da terra são descritos por Albert Camus.

Sebastião Salgado os retrata por todo o planeta.

Sêneca, Horácio, Virgílio, Epicuro e Lucrécio nos demonstram que a vida não dá nada aos homens sem ingentes esforços.       

  É na literatura de Guimarães Rosa que iremos encontrar os primeiros formidáveis personagens positivos da literatura brasileira. A começar por Riobaldo, Diadorim, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Soropita, Lalino Salãthiel, Melim Meloso.

Se o Grande sertão: veredas é um romance de educação espiritual, no qual trafega a forja das vontades para os valores mais elevados, descrevendo a radiosa aventura humana, são os contos de Primeiras Estórias, de Tutaméia, de Essas estórias e de Ave Palavra onde Rosa trabalha / trata dos processos que se desdobram em fronesis. O que se apura são os múltiplos expedientes através dos quais se dá / acontece a edificação humana. Em coragem e desempenho; em amor e alegria, em decência e em dignidade. Tal é a magna função da alta literatura.

Os deserdados da sorte são os desdichados, os desgraçados de pouca fortuna. São os humilhados e ofendidos pela baixa posição que ocupam no estamento da sociedade. Constituem a massa de intocáveis, de parias, - os Dalits - de destituídos, aqueles que, no Brasil, chamamos,  eufemisticamente, de “carentes”. Despossuídos de quase que de todos equipamentos humanísticos, dispondo apenas de seu corpo e de sua vida para se apresentar ao mercado.

O bando de catrumanos do Sucruiu são a expressão mais candente desses, no Grande sertão.  Estão todos, à espera de sua hora e sua vez, a procura da redenção de sua infelicidade.

Guimarães Rosa sabia que literatura não se faz com bem postas, comportadas maneiras. Gide já dissera: “É com bons sentimentos que se faz literatura ruim.”

Guimarães Rosa percebeu que o homem nasce inerme, raramente desenvolve-se por inteiro, ficando áreas e partes  de sua personalidade incultas, aguardando oportunidade de virem a serem realizadas e iluminadas. É dessa dotação diafótica, sombria e torva, de onde medra a maldade, a inveja, a perversidade – o crime, enfim. Movido por verdadeira compaixão pela precariedade da condição humana, Rosa povoou sua ficção com os seres incompletos, seres de exceção, organizando um roteiro de personagens empenhados na diligência de vir a dar conta de melhorar / iluminar parcelas crescentes de suas vidas. Compôs assim uma literatura de comiseração autêntica, não devocional e não evangélica – escritural.

“Só o epitáfio é fórmula lapidar.”

Cada conto seu é exemplar.

Guimarães Rosa pôs em prática sua convicção de que a ação arguta, obtida pelo aperfeiçoamento da consciência egóica do personagem, era quase sempre a chave, a solução resultante de boa qualidade para a superação da inicial inferioridade. Coragem. Alegria. Façanha. Lucidez e discernimento: eis os atributos componentes do bornal para a travessia da vida.

“No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar.” Fortuna Crítica: p. 94.

O instrumento que esgrimiu com tanto esmero, foi a palavra, palavra candente, brasa-assoprada, alimpada e renovada.

Viver é perceber-se e aceitar-se incompleto e mal constituído, obrigando-se a desenvolver expedientes para estabelecer relações fecundas e satisfatórias, em um processo de edificação de sua pessoalidade. O objetivo final é poder comparecer na terceira margem do rio como um conviva que se retira satisfeito do banquete da vida, em seu dia de alta tarefa.

Auroras! Absolutas estrelas!

Aragem do em si - En-soph - consagrado. 

 

 

Pequena Casuística

 

       Os marginalizados extrapolam a razão e a lógica, postando-se no registro da desrazão e da poiesis.

        MulaMarmela em A benfazeja é essa lupina mulher que mata o marido malfeitor e, depois, o filho cego Retrupé, por puro amor e compaixão para com eles e para com a sociedade. Malquista, desprezada, encarna o bode expiatório da maldade de uma comunidade. A ela só sobra a carcaça de um apodrecido cão morto como mortalha.

        Maria Mutema é a própria maldade gratuita se descobrindo em gozo de perversidade pura. Assassina sem motivo, por puro gosto de auferir prazer na maldade praticada. Um dia, confessa-se culpada. Arroja-se no chão da igreja e implora perdão. Presa, torna-se beata, a tal ponto que “o povo andava dizendo que Maria Mutema ia virar santa”...

        Jimirulino percebe na cadeia que agiu sobre indução e influência do Dr. Mimoso. Pagava por um crime que cometera mas que não era seu. Na prisão, reflete e acha o erro: “de querer aprender demais depressa, no sofreguido. Inda hei porém de ser inteligente, bom e justo: meu patrão por cópia de imagem.”

        Boné, escorraçado e desprezado pelos colegas como papalvo, basbaque ou beócio, diante do possível fracasso da representação da peça, súbito, avulta-se, representando o verdadeiro viver no que se ouvia dos outros e em seu próprio falar. Vivencia de si o ser e o parecer ser, encarnando e sendo, a um só tempo, aluno / pessoa e personagem / ator.         Zé Boné induzira a todos: “ cada um de nós esquecera do seu mesmo e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar”.

        Nessa epifania extática do ser Zé Boné deixara de ser considerado beócio.  O personagem que representava o papel principal apura-se, ao ter que dar um fim àquela representação que brotara do fundo de todos no palco. Aproxima-se da borda do palco, dá uma cambalhota e cai sobre a platéia: pirlimpsiquice. Este foi o expediente para dar fim àquela maravilhosa patuscada.

        Cuidou também das mulheres velhas, bruxas da senil feminilidade: Ana Duzuza, Rosalina. Esta constatando: “Estou na desflor.” É a mulher mais velha, Lina, que, exaltando a virilidade, faz Lélio revelar-se a si mesmo.

        Tinha particular apreço pelas prostitutas, sobressaindo a prostitutriz Nhorinhá, e ainda, Maria-da-Luz, a nhazinha – moura que “não era siguilgaita simples” e Hortência – meã muito dindinha.

        Meninos são Miguelim e Dito, em Campo Geral ou Mutum e, também, o próprio Rosa em As Margens da alegria e Os cimos.

        Meninas são Nhinhinha, de A menina de lá e Brejeirinha A partida do audaz navegante.

        Cegos são Retrupé, bramoso e vituperento com o impoder da cegueira e Borromeu, posto da banda direita de Riobaldo ladeado a esquerda pelo menino pretinho Guirigó.

        Flausina, “Maria Miss”, em Esses Lopes, é a menina mulher velha que se livra, por expedientes, de cinco Lopes que a quiseram e dela abusaram. Torna-se fintosa: “Saquei, com malinas lábias”. Contudo, conserva ainda, no âmago de seu ser: “Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem”. Livre dos Lopes, enriquecida, possui um novo amor. “Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível.”

        “Eu, um dia, já fui muito menininha...

       

Todo o mundo vive para ter alguma serventia”. Tutaméia, p. 58.

        Se em “Rebimba, o bom” vemos o personagem em pleno amadurecimento por efeito de saber-se respaldado por existir “Rebimba, o bom”, em “Meu tio o Iauaretê” deparamos com uma regressão do personagem para longe dos foros da civilização, regredindo ao nível animal de homem-fera, homem-onça.

        “Eh, onça é meu tio, o Jaguaretê, todas”

        Num ultimo recurso para tentar escapar do tiro de revólver do visitante, o homem-onça se diz preto: Macuncozo, remuaci: amigo, quase parente de você que me quer matar.

        Araaã... uhm... Ui... Ui... Uh... Uh... êeêê... êê... ê... ê...

        Regride à linguagem gutural, animal em falecimento...

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