Os deserdados da sorte na obra de
Guimarães Rosa
Marco Aurélio Baggio
Joãozito teve
uma infância sofrida. Detestava a intromissão dos adultos em sua intimidade.
Brincava solitário ou com amiguinhos e ouvia os casos na venda de seu pai. Cresceu
ávido de saber e talentoso para línguas. Como médico, no tugúrio de Itaguara,
conheceu a miséria e a dor humana desamparada. Constatou que a medicina dava
pouco alívio ao sofrimento dos doentes. Como cônsul em Hamburgo vivenciou a
estupidez decadente de uma Alemanha hitlerista. Compadeceu-se dos perseguidos
pela fúria de Wotan.
Em 1947 esteve
no pantanal mato-grossense.
Estava presente em 1948 por ocasião
do levante civil conhecido por Bogotaço. Em 1952, reencontra a pobreza e a
dureza da vida no interior mineiro. Nada mudara para melhor.
Homem de fino pathos, Guimarães Rosa sempre soube da precariedade da vida das
pessoas. Por experiência própria, aprendera que o homem é um ser, de início,
desequipado, desprotegido, acossado por necessidades e por insuficiências,
quase que o tempo todo. Nascido incompleto, postado na sua querência de origem
na margem primeira da vida, o homem tem que, cedo e rápido, desenvolver seu
potencial – sua inteligência e seu talento – para, logo, adquirir recursos
vivenciais e apetrechamentos que o capacitem a se situar melhor na travessia do
enorme rio da vida em bamba canoa, por sobre o bambalango das insurgências e
dos acontecimentos.
O vetor pulsional do ser humano o
coloca em prolepse, voltado para a busca dos objetos completadores e
satisfatores que, sempre, se postam lá longe, na outra margem do rio da vida. É
destino o homem ser objeto e sujeito de sua própria busca.
O homem João Guimarães Rosa viveu
marcado / tocado pela urgente necessidade de dar conta das contrariedades
pulsionais que o acossavam. Ouvindo os “causos”, viveu em entranhado drama,
percebendo que os seres humanos, em sua derrelicção, espremiam expedientes para
dar conta de sair de seus embondos e de seus impasses. Os “causos” que tanto
gostava de ouvir contar eram exemplares. Neles encontrava a intendência das
situações, logo seguidas da logística disponível à pessoa. A seguir, evolvia as
táticas para o enfrentamento dos desafios e dos problemas. Tais peripécias
desvelavam a riqueza psíquica que a pessoa desenvolvera, muitas vezes sem saber
que continha tais recursos.
Recriados na oficina lingüística de
Guimarães Rosa, os causos adquiriram a grandeza literária da qual o gênio de
“Cordisburgo” era capaz. Por suas mãos tornado conto, pode-se perceber a estratégia
empregada na guerra da vida pelo personagem. E desse amplo cenário lingüístico
Rosa inoculava pérolas e peças de sua concepção de vida. Sua cosmovisão sempre
visava alcançar o excelso, o transcendente e o infinito. Os seres incompletos
de sua casuística desempenhavam, em pirlimpsiquice, sua trajetória de
crescimento pessoal, rumo à progressiva edificação de suas vidas. A meu ver,
por isso é que a obra de João Guimarães Rosa ultrapassa a mera literatura
mesma. Não canso de lê-la e de dizê-la como sendo uma coleção de livros
sapienciais de excepcional acuidade e valor.
Certamente é considerado pelos
intelectuais, mestres e doutores em textos de Guimarães Rosa, sua inteligência,
sua cultura universal, sua habilidade para línguas e seu exuberante talento para
criar uma língua portuguesa-brasileiro-rosiana, só sua.
Bah! Bar, ba, barbaridade, uai! Que
trem, siô!
Por que esquecem o Unheimlich, o âmago do homem?
Ele era, acima de tudo, um Homem
Bom. Doce. Meigo. Suave. Rosa. João é deus conosco. Guimarães é Wimara: cavaleiro
andante, cavaleiro combatente. Rosa é símbolo da beleza e da bondade. Seu
apelido era “burgo do coração”: “Cordisburgo”. Assim o chanceler João Neves da Fontoura o
convocava.
Joãozito para os íntimos, cedo
dotou-se de um forte sentimento de solidariedade para com a pobre humanidade.
Metafísico, místico, cristão, crente na ressurreição e na reencarnação, vivia
como um sacerdote da condição humana. Homem dotado de compaixão legítima para
com a humanidade, descrente da política, o diplomata João Guimarães Rosa foi o
embaixador que, através da língua, aspirava trazer lenitivo e conserto para
esse nosso mundo sem juízo e desmastriado.
Os deserdados da sorte somos todos
nós. Se ganhamos a vida, nossa ração de boa fortuna é não apenas aleatória quanto
escassa. Em panela de pobre quase tudo que há é tempero. No bornal de cada um
de nós, nos resta tornarmo-nos metietas.
É imprescindível desenvolver habilidades, ferramentas, expedientes,
instrumentos e capacitações variadas, múltiplas e eficazes. Nossa Bildung - nossa formação - ainda deve
pautar-se pela aretê grega: a busca a
excelência em tudo que se faça. Superioridade; instalação de padrões pessoais
de decência, de dignidade, de auto-respeito no que quer que um toque ou que
faça ou que relacione.
Guimarães Rosa foi esse homem de
Excelência.
Os deserdados da terra são descritos
por Albert Camus.
Sebastião Salgado os retrata por
todo o planeta.
Sêneca, Horácio, Virgílio, Epicuro e
Lucrécio nos demonstram que a vida não dá nada aos homens sem ingentes esforços.
É na literatura de Guimarães Rosa que iremos encontrar os primeiros formidáveis
personagens positivos da literatura brasileira. A começar por Riobaldo,
Diadorim, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Soropita, Lalino Salãthiel,
Melim Meloso.
Se o Grande sertão: veredas é um romance de educação espiritual, no qual
trafega a forja das vontades para os valores mais elevados, descrevendo a
radiosa aventura humana, são os contos de Primeiras
Estórias, de Tutaméia, de Essas estórias e de Ave Palavra onde Rosa trabalha / trata dos
processos que se desdobram em fronesis. O que se apura são os múltiplos
expedientes através dos quais se dá / acontece a edificação humana. Em coragem
e desempenho; em amor e alegria, em decência e em dignidade. Tal é a magna
função da alta literatura.
Os deserdados da sorte são os desdichados, os desgraçados de pouca
fortuna. São os humilhados e ofendidos pela baixa posição que ocupam no
estamento da sociedade. Constituem a massa de intocáveis, de parias, - os Dalits - de destituídos, aqueles que, no
Brasil, chamamos, eufemisticamente, de
“carentes”. Despossuídos de quase que de todos equipamentos humanísticos,
dispondo apenas de seu corpo e de sua vida para se apresentar ao mercado.
O bando de catrumanos do Sucruiu são
a expressão mais candente desses, no Grande
sertão. Estão todos, à espera de
sua hora e sua vez, a procura da redenção de sua infelicidade.
Guimarães Rosa sabia que literatura
não se faz com bem postas, comportadas maneiras. Gide já dissera: “É com bons sentimentos
que se faz literatura ruim.”
Guimarães Rosa percebeu que o homem nasce
inerme, raramente desenvolve-se por inteiro, ficando áreas e partes de sua personalidade incultas, aguardando
oportunidade de virem a serem realizadas e iluminadas. É dessa dotação
diafótica, sombria e torva, de onde medra a maldade, a inveja, a perversidade –
o crime, enfim. Movido por verdadeira compaixão pela precariedade da condição
humana, Rosa povoou sua ficção com os seres incompletos, seres de exceção, organizando
um roteiro de personagens empenhados na diligência de vir a dar conta de
melhorar / iluminar parcelas crescentes de suas vidas. Compôs assim uma
literatura de comiseração autêntica, não devocional e não evangélica –
escritural.
“Só o epitáfio é fórmula lapidar.”
Cada conto seu é exemplar.
Guimarães Rosa pôs em prática sua
convicção de que a ação arguta, obtida pelo aperfeiçoamento da consciência
egóica do personagem, era quase sempre a chave, a solução resultante de boa
qualidade para a superação da inicial inferioridade. Coragem. Alegria. Façanha.
Lucidez e discernimento: eis os atributos componentes do bornal para a
travessia da vida.
“No sertão, cada homem pode se
encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem
apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar.” Fortuna Crítica: p. 94.
O instrumento que esgrimiu com tanto
esmero, foi a palavra, palavra candente, brasa-assoprada, alimpada e renovada.
Viver é perceber-se e aceitar-se
incompleto e mal constituído, obrigando-se a desenvolver expedientes para
estabelecer relações fecundas e satisfatórias, em um processo de edificação de
sua pessoalidade. O objetivo final é poder comparecer na terceira margem do rio
como um conviva que se retira satisfeito do banquete da vida, em seu dia de
alta tarefa.
Auroras! Absolutas estrelas!
Aragem do em si - En-soph
- consagrado.
Pequena Casuística
Os marginalizados extrapolam a razão
e a lógica, postando-se no registro da desrazão e da poiesis.
Mula – Marmela em A benfazeja é
essa lupina mulher que mata o marido malfeitor e, depois, o filho cego Retrupé,
por puro amor e compaixão para com eles e para com a sociedade. Malquista,
desprezada, encarna o bode expiatório da maldade de uma comunidade. A ela só
sobra a carcaça de um apodrecido cão morto como mortalha.
Maria Mutema é a própria maldade gratuita se descobrindo em gozo de
perversidade pura. Assassina sem motivo, por puro gosto de auferir prazer na
maldade praticada. Um dia, confessa-se culpada. Arroja-se no chão da igreja e
implora perdão. Presa, torna-se beata, a tal ponto que “o povo andava dizendo
que Maria Mutema ia virar santa”...
Jimirulino percebe na cadeia que agiu
sobre indução e influência do Dr. Mimoso. Pagava por um crime que cometera mas
que não era seu. Na prisão, reflete e acha o erro: “de querer aprender demais
depressa, no sofreguido. Inda hei porém de ser inteligente, bom e justo: meu
patrão por cópia de imagem.”
Zé Boné,
escorraçado e desprezado pelos colegas como papalvo, basbaque ou beócio, diante
do possível fracasso da representação da peça, súbito, avulta-se, representando
o verdadeiro viver no que se ouvia dos outros e em seu próprio falar. Vivencia
de si o ser e o parecer ser, encarnando e sendo, a um só tempo, aluno / pessoa
e personagem / ator. Zé Boné induzira
a todos: “ cada um de nós esquecera do seu mesmo e estávamos transvivendo,
sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o
milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras no que se ouvia dos
outros e no nosso próprio falar”.
Nessa epifania
extática do ser Zé Boné deixara de ser considerado beócio. O personagem que representava o papel
principal apura-se, ao ter que dar um fim àquela representação que brotara do
fundo de todos no palco. Aproxima-se da borda do palco, dá uma cambalhota e cai
sobre a platéia: pirlimpsiquice. Este foi o expediente para dar fim àquela
maravilhosa patuscada.
Cuidou também
das mulheres velhas, bruxas da senil feminilidade: Ana Duzuza, Rosalina. Esta
constatando: “Estou na desflor.” É a mulher mais velha, Lina, que, exaltando a
virilidade, faz Lélio revelar-se a si mesmo.
Tinha
particular apreço pelas prostitutas, sobressaindo a prostitutriz Nhorinhá, e
ainda, Maria-da-Luz, a nhazinha – moura que “não era siguilgaita simples” e
Hortência – meã muito dindinha.
Meninos são
Miguelim e Dito, em Campo Geral ou Mutum e, também, o próprio Rosa em As Margens da alegria e Os cimos.
Meninas são
Nhinhinha, de A menina de lá e Brejeirinha A partida do audaz navegante.
Cegos são
Retrupé, bramoso e vituperento com o impoder da cegueira e Borromeu, posto da
banda direita de Riobaldo ladeado a esquerda pelo menino pretinho Guirigó.
Flausina, “Maria Miss”, em Esses Lopes, é a menina mulher velha que se livra, por expedientes, de
cinco Lopes que a quiseram e dela abusaram. Torna-se fintosa: “Saquei, com
malinas lábias”. Contudo, conserva ainda, no âmago de seu ser: “Ainda achei o
fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem”. Livre dos Lopes, enriquecida,
possui um novo amor. “Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível.”
“Eu, um dia, já
fui muito menininha...
Todo o mundo vive para ter alguma
serventia”. Tutaméia, p. 58.
Se em “Rebimba,
o bom” vemos o personagem em pleno amadurecimento por efeito de saber-se
respaldado por existir “Rebimba, o bom”, em “Meu tio o Iauaretê” deparamos com
uma regressão do personagem para longe dos foros da civilização, regredindo ao
nível animal de homem-fera, homem-onça.
“Eh, onça é meu
tio, o Jaguaretê, todas”
Num ultimo
recurso para tentar escapar do tiro de revólver do visitante, o homem-onça se
diz preto: Macuncozo, remuaci: amigo, quase parente de você
que me quer matar.
Araaã... uhm...
Ui... Ui... Uh... Uh... êeêê... êê... ê... ê...
Regride à
linguagem gutural, animal em falecimento...
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