terça-feira, 26 de março de 2013

Dão - Dalalão


Dão - Dalalão

(O pagante)
 

Marco Aurélio Baggio

 
 
 
       A novela de minha predileção em Corpo de Baile tem esse sonoro e atávico som de sino repicado. 1
       É uma história de amor, cuja tessitura se passa, quase toda, nos meandros da subjetividade do Mundo Interno de Soropita. O ouvires da Língua Portuguesa, João Guimarães Rosa, descreve, com acuidade e exatidão notáveis, o desenvolvimento de um delírio celótípico (delírio de ciúme), sua eclosão, seu desenlace e sua cura.
       Soropita, a bem dizer, vinha montando em seus cavalos: tocava de leve o cavalão Caboclim e no aproveito do trajeto de Andrequicé para o Ão, ia cambono de si mesmo, mesmeado. Pepensando, avaliando de manso suas certezas: a paisagem, os lugares, as possíveis espreitas. Gostava de sentir fiéis, justas ao corpo, parte dele, a pistola automática de nove tiros, o revólver oxidado de cano curto e no coldre, o niquelado, cano longo de seis balas no tambor.
       Montado, assegurado, ia floreando para Doralda, sua mulher. A doce lembrança dela:
 Bem, por que tu não me trata igual minha mãe me chamava, de Dola ?  A voz,o perfume, o corpo – Dadã.
       A flor, Sucena introduz o passado – um passado que, se a gente auxiliar, até deus mesmo esquece. Soropita chegava no brejo de barro preto, de onde o ansiava o cheiro estragado de folhas se esfiapando, de água podre, choca, com bichos gosmentos, filhotes de sapos, frias coisas vivas mas sem sangue nenhum, agarradas umas nas outras, que deve de haver, nas locas, entre lama, por esconsos.
       Ele vinha sozinho ao Andrequicé, escutar novela de rádio. Doralda dizia que não, só se fosse para cidade grande, Pirapora, Belorizonte, Corinto. Ralhava que ele tomasse cuidado. Soropita brincava feliz com o ciuminho dela:
 - Tomo não, bem. Um dia sucuriú me come...
       Doralda, sua mulher... Repensava.
       Nome formoso, bom apelativo. Sertaneja de perto da Bahia, que o encarava e falava rasgado, sem os muxoxos e os manejos de acanhamento comuns às mulheres de daqui. Seu cheiro, o pescoço que cheirava a menino novo. Doralda nunca o contrariava e falava, mansa, o bom falar:
-        Sou sua mulher, Bem, sua mulherzinha sozinha...
       Comida gostosa, temperos fortes. Encontrasse fio de cabelo? Asco nenhum. O cuspe dela, no beijar, tinha pepêgo, regôsto bom, meio salôbre, cheiro de focinho de bezerro, de horta,
       A estrada de areia, enjoosa.
       Cicatriz no queixo: as balas que lhe rasgaram e lhe machucavam, ainda hoje...
       Mas Doralda era corajosa. E repassava as mãos nas grossas costuras, uma por uma, uma mão fácil, surpresas de macia, passava a mão em todo corpo, a gente se estremecia, de cócega não: de ser bom, de ânsia!  Mel nas mãos, nem era possível se ter um mimo de dedos com tanto meigo.
       E dizia, numa expressão de suprema entrega:
- Um dia eu deixar de gostar de você, Bem, tu me mata?, pedia.
       Ah! Doralda... Adorada. A dourada. Dora. Adora. Dor. Diadorim.
       Não como essas mulheres dos outros.
 Uma mulher emburrada, que suspira, era coisa desgraçavel: tinha visto, as de outros, quase todas; sina sem sorte, um se casar com mulher assim.
       - Tu põe a mão em mim, eu arrupeio toda. Eu viro água...
       Um dia, falou no pozinho alvo:
       - Cocaína, meu bem. Dá vontades emendadas, não acaba...
       e fugia de Soropita a coragem de perguntar quem a ela tinha ensinado.
       Ela sabia como se ser para a ele não ofender.
-        Ainda não é nada não, Caboclim. Vamos.
Ainda não fora daquela vez.
Guimarães Rosa, o meigo cavaleiro combatente (Weihs  Mahr) (germânico arcaico –> Wimara   (Suevo) –> Guimara –> Guimaranes (português arcaico) –> Guimarães) vem pela  estrada, viajando no trote dos contrapontos entre as asperezas, as estupidezes e a podridão da vida, com as belezas do cenário do sertão, as doçuras e a meiguice da mulher adorada. Pataapata.  Pata-a-pata.
       Passo a passo, etapa a etapa, Soropita se capacita para entrar em fundo contato consigo mesmo.
       - Ainda é nada não, prenuncia a vez que está para chegar.
       Na construção do texto, Guimarães bascula entre o Mundo Externo, suas ocorrências e insurgências, representado por esse privilegiado espaço cênico universal, criado poeticamente pelo autor, que é o Sertão Mineiro, e a descrição cuidadosa do Mundo Interno do personagem, com seu objeto privilegiado de relação, que é Doralda. Nesse trote de quatro patas, o cavalo e as armas são os objetos que permitem a livre transição  entre os espaços internos e externos.
   Mundo Externo - Sertão = Caminho- o percebido fora.
Objetos de transição = Cavalo
                                      Armas- partes do corpo do cavaleiro (Weihs Mahr).
       Mundo interno – lembranças – o percebido dentro. O evocado        Objeto de Relação – Doralda – O amor.
 
       Ora um, ora outro e outro, os temas se insinuam, brotam mansamente, ocupam a cena da consciência e se afastam, dando passagem a outro tema que já adquiriu força e consistência para se expressar. Soropita está indo de volta para casa, vindo para o Ão, em direção ao Eu. Em arrevezada associação livre. Um à esquerda, outro á direita, um bom, outro ruim: a caminho do abissal, perdido em seu passado. Camada por camada, fundo mais fundo, em direção à interioridade mais profunda ainda.
       O risco:
Num formo de mato como aquele, no  estôrvo, sempre podia haver alguém emboscado, gente maligna, inveja do mundo é muita. Sujeitos que mamaram ruindade, escorpeiam, desgraçam – por via desses, viajar era sempre arriscado e enganoso.
       Mas Doralda perto dela, tudo resultava num final de estar bem arrumado.
       E Soropita não perde a chance de se comparar:
 Diversa de tantas mulheres, as outras viviam contando de doenças e remendando fastios.
       Havia mais de três anos Soropita deixara a lida de boiadeiro; e se casara com Doralda -.
-        Ninguém me tira do meu caminho. No eu começando, eu quero ir até na orelha...
-         Ela: – Eu também, bem... – e se pegando com abraço, brincando de morder. Sabia sumir um, nisso.
       Senhor Zózimo propusera trocar seus alqueires no Âo por terra cinco vezes maiores, em Goiás, lá no Campo Frio.
Doralda dizia que era bonito a gente ver passar o trem de ferro, ficar olhando. Dali do Ão, algum dia, só para cidade grande, em sonho que fosse.
       Soropita antecipava o daqui a pouco:
       Chegava a casa, abria a cancela, desapeava do cavalo, chegava em casa. A felicidade é o cheio de um copo de se beber meio-por-meio; Doralda o esperava.
       Momento então de sobressonhar com
 o doce da vida – aquelas casas. Montes Claros!: Um paraíso de Deus, o pasto e aguada do boiadeiro -.
       Espaço calmo de estrada. Muitas articulações  já feitas: Cabeça limpa dos mais superficiais entulhos. Consciência preparada para receber evocações mais profundas, deliciosamente excitantes, perigosamente pecaminosas.
       Montes Claros! Rua dos Patos. Mulheres, meninas até!:
       aquelas mulheres regiam ali, no forte delas, sua segura querência, não tinha temor nenhum, legítimas num amontôo de poder, ele se apequenava: mulheres sensatas, terríveis.
       Mas um certo receio Soropita devia também ás mulheres, um respeito esquisito, em lei de acanhamento.
       Negaceava, venha sujo, parecia desinteressado mas se deixava capturar nos braços daquelas.
De fim, ia ficando avontadinho, sem vexame nenhum de pressa, tomando tento miúdo em tudo, apreciando de olhos abertos o fino da vida, poupando o bom para durar bem, se consentia.
       Um dia, afracara.  Saiu desguardado, labasco, lá demorara menos que passarinho em árvore seca.
       Mal a mal, com Doralda, uma vez, também tinha acontecido –. Doralda boazinha, dizia que as vezes era mesmo assim, não tinha importância, que nenhum homem não estava livre de padecer um dissabor desse momentão.
        A já na outra noite, ele se prezava de tudo, são de aço, aquela felicidade.
       Se não, porque e para que vivia um? Tudo no diário disformava aborrecido e espalhado, sujo, triste, trabalhos e cuidados, desgraceiras, e medo de tanta surpresa má, tudo virava um cansaço. Até que homem se recomeçava junto com mulher, força de fogo a reunir seus pedaços, o em-deus.
-        Mais ligeiro Caboclim, vamos.
Em seu escondido cada um reina: prazer de sombra.
–: agora o mundo de fora lhe vinha filtrado sorrateiro, furtivo, tinha havido, principal, uma rapariga bonita, clara, com os olhos que riam sozinhos.
Aquilo era seu segredo. Seu secreto deleite, surgindo naquelas viagens entre o Âo e o Andrequicé e o Aõ. Todo o anterior, preparativos para o deleite supremo:
Soropita estava numa casa de mulheres.

Uma rapariga inventada

      Bem, tu é sério casado? Com quem?
       E ele ia respondendo.
- Sucena? A Sucena? Mas, essa?! Ah, pois conheço, Bem. Conheço inteira: é da gandaia! A pois, vou te contar...  Relatava da vida de Doralda, contava de Doralda, devagar, coisinhas, coisas, orgias e proezas.
Soropita pausava. Soerguia a fantasia vibrada, demorava-a próprio uma má-saudade, um resvício. Sua delícia.
 Agora, ali naquela casa de luxo, estava era com Doralda.
       E então: De diante, vinha um torpel de barulho, o trupe de vários cavalos.
Era Dalberto.
Até aqui, Guimarães Rosa constrói, delicadamente, o processo de elaboração interna que percorre Soropita para chegar nos fundos de sua intimidade e imaginar-se conversando sobre a vida pregressa de Doralda com a rapariga clara. Ele quer se deliciar de remorder aquilo, o passado de Doralda como Sucena, mulher na casa da Clema, em Montes Claros, O “antes” dela que, inevitável, iria futucar as feridas de balas alvejadas em seus brios de macho. E que fariam doer as cicatrizes angariadas no passado dele, Jagunço Soropita.
Quando ele está no auge do desfrute de sua intimidade, o Mundo Externo o invade sob a forma de tropel de cavalos e o aparecimento do amigo Dalberto.
Soropita acabava de aceitar receber em sua consciência a outra, a moça clara, no lugar do supremo gozo e com ela se permitia excitar com as proezas da Sucena. Para um homem, supremo sacrário, a ser evitado e revestido e despistado e negado e reprimido. Pois junto com as delicias, junto corre os demônios do ciúme e ninguém sabe qual será mais forte, qual vale mais a pena. Soropita mal acabara de se permitir penetrar nas fantasias de uma sexualidade extrapolada da relação dual com Doralda, convocando sua colega de profissão e muitos de seus fregueses, quando a Realidade rudemente o invade.
       Encontrara o Dalberto.
 Amigo é: poucos, e com fé e escolha, um parente se encontrava.

Com os outros companheiros dele, havia

O preto, com espingarda e capanga, remexia: tinha ali uma codorna, sapecada de pólvora, preta e sangrenta; Soropita  desviou olhar.
É constrangido a convidar o amigo à sua casa. Os outros atrás, reverentes, recuperam a história do jagunço Surupita, o que matou Antônio Riachão e o Dedengo... O que matou João Carcará. Matou o Mamaluco, também.
As mortes, os duelos a bala, os ferimentos, os júris em  mais de  três  comarcas. E os   lugares por donde os amigos haviam tangido gado. O presente, o revólver 41 que Dalberto lhe deu. Pela voz, Soropita reconhecera Dalberto. Pela voz, o cego reconhecera há mais de dois anos o Dalberto.
Aquela voz devia de se mexer, lá dentro, em muitas trevas, como muitas cobras brilhantes.
A conversa vai para Montes Claros e as mulheres...
Pasto bom e mulher – e o mais se tiver...
E a esperança iludida do macho vaqueiro homem:
 Só quando se está com mulher é que a gente sente mesmo que está lorde, com todos os perdões... Que é que se está vivendo, mesmo.
E continua, em boa filosofia.
Afora isso, tudo é poeira e palha, casca miúda. A gente vai indo, caçoando e questionando, agenciando, bazofiando, tendo medo, compra isso, vende aquilo... como que na gente deram corda. Homem não se pertence.
Com Dalberto podia se abrir às meias, talvez até expor o vivido escondido.
Mas não: Ele Soropita não fiava esse assôlto de se descobrir com ninguém”
E Dalberto fala nas solturas do Major Brão. E a estima dele pela Analma.
E, rédea solta no devaneio, Soropita arranjava nome para aquela rapariguinha. Izilda...
-        Izilda. Chamava-a, ela atendia.
Agora é que o inconsciente se manifestava, sujo, perigoso.
 Mas era o ferrôo de um pensamento que gelava, que queimava, garroso como um carrapicho: o preto... Izilda entregue à natureza bronca desse negro! Tinha de a ela perguntar. Ela respondia:
 - Bem, esse já me dormiu e me acordou... Foi ruim não. Tudo é água bebível...
Mas a nova traição do inconsciente, inconsequente em suas tramóias.
Mas – não era Izilda, que estava com o preto vespuço, com Iládio... – voz era outra: Doralda! Doralda, transtornados os olhos, arrepiada de prazeres...
Soropita antegoza e se arrepia, justiceiro: em revólver: corjo de um assim, o sertão deixa muito viver não.
       E o Dalberto contando, contando: Analma o despachando do bordel: - Tem dó de tua noivinha, que vai passar por coisas tão feias...
 Dalberto via o prazer que ela tirava daquilo e filosofava que talvez pelo quindim dessas meias-doidices, mesmo, Surupita, que ela são sai da cabeça minha, que é mais um sabor...
       Guimarães coloca na boca de Dalberto aquilo que Soropita tentara conseguir experimentar sozinho e agora experimentara sem querer, através do caso do amigo: o delicioso do mais um sabor da sexualidade extrapolada por mais um, na díade. E o quanto isso fisga, gruda, amarra, gosma, numa vinculação de Detalhes Críticos excitantes e específicos, que são a base do vínculo de amor. Por que Doralda não cobrara daquele rústico e sujo vaqueiro, suprema distinção para ele? Por que ele lhe propusera vida em comum e ela aceitara no ato? De onde a certeza de ambos em se vincularem, senão pelo borrásco pressentimento de que ela seria, alem da prostituta, a mulher adorada que veio a ser, e que ele, vaqueiro bronco comum, era homem de façanhas e firmezas?
       Como se escolheram e como se engancharam, de primeira, assim, numa sorte momenteira infernal?
       O que não podia era se lembrar daquele negro.
       Era o próprio tremedal diante deles.
       Doralda era um consolo. Uma água de serra – que brota, canta e cai partida: bela, boa e oferecida.
       Rastro de cobra.
       Se esbarrou
       A idéia assomada agora era pior, mais perto. E se o Dalberto conhecia Doralda, de Montes Claros, com ela tivesse até ficado?
       Era demais, ele psicossomatizou: endureceu de câimbras. E entrou em paranóia.
       Quem sabe até já estava informado, tinha ouvido de alguém por ali o nome dela – como a mulher de Soropita – e se lembrava, talvez mesmo por isso agora queria vir, ver os olhos, reconhecer... E então a maior parte da conversa dele, na estrada, só podia ter sido de propósito, por regalo de malicia, para tornar o ponto a ele Soropita, devia de ter sido uma traição! Talvez, até, os dois já haviam pandegado juntos, um conhecia o outro de bons lazeres... Sendo Sucena, Doralda espalhava fama, mulher muito procurada... O Dalberto, moço femeeiro... Ai, sofrer era isso, pelo mundo pagava!.
       Soropita se vê mergulhado em pleno inferno dominado pelo demônio verde do ciúme. Um inferno que esquenta e aferroa suas idéias e que está todo dentro de sua cabeça. A Paranóia surge de se querer gozar com os outros. É tão bom, tão deliciosamente excitante que, no recesso mais intimo da fantasia ou na inocência descompromissada do sonho, um tal se permite. Mas para o acordado desfrute, é necessário o sujeito estar muito estribado na identidade de si mesmo. Um homem, macho como Soropita, tímido e reverencial ao poderio das mulheres, um tal que já tinha falhado duas vezes, ainda não estava preparado para fazer essa passagem do duplo ao múltiplo, sem ser acossado pelos quatro cavaleiros do Apocalipse. Matava, pois matava. Matava o Dalberto. E a besta daquele negro Iládio.
       A Suspeita, corroendo o estuque frágil da repressão, vinagrando a inveja que, temperando tudo, desperta o Ciúme: os três gerando o Ódio. O que era Bom, Amor, Amizade, Posse possuída na certeza, vira Ruim, Traição,Traição, Traição. A única reação possível é a Vingança de quem ou daquilo que lhe privou do Bem.
       Lá, no intimo, na caixinha de segredos, está a coisa brilhante, excitante, deliciosa. Junto dela, também, pode estar, quase sempre, o menino temor de se ter sido traído. O Mel e o Veneno: Inferno. Soropita tem que purgar a pena de ter obtido Doralda. Durante anos, eles não comentaram sobre o passado deles.       Agora, aquele passado voltava por própria convocação dele e pelo acaso da vida.
       Certa vez, jantando, fora acuado por demônios raivosos, Fora mais rápido que eles, disparou suas armas e se salvou, rasgado, embora.
       Para não mais isso, tinha
 vindo para ali, quase escondido, fora de rotas, começando nova lei de vida.
       Sim, evitara os encontros com os valentões mas agora, como? O demônio vinha na pessoa de um amigo, seu melhor amigo? E logo assim, quebrado em seu respeito.
       Tudo fugia da regra.
       O encontro de Dalberto com Doralda transcorre entre suspeitas instigantes e apaziguamentos confortadores: Soropita sofre até que Dalberto pergunta se ele acha que acertava casar com a Analma.
       Se ele se manifestava assim, tudo o que Soropita vinha pensando estava errado, tudo de falso, chegavam os anjos com suas varinhas de ouro,
       Soropita se sentia de um bom calor repentino no corpo, a animação, um espertamento de querer, seus olhos procuravam Doralda.
       Enquanto Dalberto falava, mais uma fantasia infernal:
 E se Doralda, por mando dele, Soropita, se oferecesse para obsequiar Dalberto?
       Doralda acabara de arrumar o quarto para Dalberto:
       O que era e que não era?
       Soropita continua evocando...
       Por fim, aconselha o amigo e se dá conta
       E que tinha ele, Soropita, com essas contas se não que somente devia era desejar ao Dalberto o desejo dele, e, em casos, funcionar em toda ajuda, o amigo carecendo?
-        Mano irmão...
Soropita se inteirava, congraçado, retranquilo,
Doralda era sua fome perdida, sem os salteios do dia, de fadiga, pareciam deixar rastro, a vida era um vibrar de coisa, uma capacidade.
       Será que ele desconfiou, a ver, de tu na Clema, o Dal? -, e não sorriu, que dordoiam nele os prazeres finíssimos; trasteava quase vergonhoso.
 – Notou nem não, Bem. Que ele está longe de saber...
       Nessa noite ele quer, pela primeira vez, vê-la nua..
Doralda – a mais bela – mimosa sem candura.
       E ambos tocam no até então interditado:
       -Todo mundo gostava de você... Tu é a bebida do vinho... Ah, então você gostou de mim por quê? Só se no estúrdio da primeira vez que me olhou?
-        Tanto fui te vendo, Bem, deduzi: este é o meu, que é, sem a gente se saber... Eu gostei na certeza.
-         A pois, foi? Soropita recostado, refrescado, como um capim de campo.
-        Tu é bela!  Cântico dos Cânticos.
E a inundação montante, quente e gostosa da desrepressão: poder jorrar fora aquilo, coisas contidas de gosmentas:
-Tu conheceu os homens, mesmo muitos?
 – Aos muitos, Bem. Tu agora está com ciúme?
Delícia colher da boca de Doralda os quais, Dalberto não. Com o preto Iládio? Com ele não mas com o preto Sabarás.
Ele a descobre  menina. Que topa ir com ele para o Campo Frio. - Vou, demais.
Agora iria dormir e ao entrar em pequena paz para a pedreira da noite uma porção de assuntos iriam se arrumar em sua cabeça. Então pensou a última angústia persecutória do dia, nada, porque tudo na vida era sem se saber e perigoso, como se pudessem vir pessoas, de repente, pessoas armadas, insultando, acusando de crimes, transtornando. Dormir, mesmo, era perigoso, um poço – dentro  dele um se sujeitava.
E se regozijava de lembrar aquilo que Doralda tinha falado, mais uma vez, muito falava:
- Bem, eu acho que só ficava sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse estar grudada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos... Isso, ele gostava.
Redormia.
Simbiose. Gostosa refusão. Vivência de absoluta entrega e completude.
Soropita não estava bem, o principio daquele dia mareava-o mal num dramar. Os assuntos, tantos;
Ah, o estrupício da cavalhada. Aí – quem eram?
Gente do Dalberto.
O preto Iládio, logo ele.
E o preto Iládio, o negralhaz, avultado, em cima de uma besta escura.
-Eh, Surrupita! E falou uma coisa... que seriam umas injúrias.
De repente, no da besta negra, Soropita concentra todo o destilado melancólico de fel proveniente dos enxofres de seu inferno e o deposita no negro: o negro Iládio o ofendera, apontara-o com o dedo, e ele não refilando...
Uma raiva, um ranço de ojeriza. E o sofrimento no espírito, descido um funil estava nas profundas do demo, o menos, o diabo rangendo dentes enrolava e repassava, duas voltas, o rabo na cintura?
Não adiantou a ponderação de Doralda.
- Mas, bem, o preto não fez nada, não destratou, não disse nada: o preto só saudou...
O azougue certeiro da paranóia supitava mais.
 O preto bebia e voltava e vinha mais. Capaz de descompor. Ah, esse sabia de Doralda, arreito, conhecia: bem que viu, logo reconheceu!
Naquele sofrimento, chorar não sabia, deixar como estava, era tormento certo para sempre: adeus ao autorespeito.
 Tinha suas armas, mas não voltavam a ele os rios da coragem.
 Doralda cantava, e ele?
 Medonho, aquele preto feito um pensamento mau.
A decisão vai se elaborando, devagarinho, depressazinha, ajudada pela contraposição do amor de Doralda.
 Bem, eu estou adoecida de amor...
Homem ele era, tinha Doralda e os prazeres por defender, e seu brio mesmo, ia, ia em cima daquele negro, mesmo sabendo que podia ser pra morrer! Tinha suas armas. Nem que não tivesse. Ia no preto. – Bronzes!
Teso, duro, se levantou, tirado a si vivamente.
  Já vou, já volto...
-        Mas, aonde, Bem, que tu vai?
-         – Bronzes!
-        Monta seu cavalo de apouco, apocalipse.
Invade o povoado, conclamando as gentes, encontrou o grupo de vaqueiros armados, o preto no meio deles.
-Tu preto, atrás de pobre de mulher, cheiro de macaco..., declarou – Apeia negro, se tu não tem caráter! Eu te soflagro!...
- Tou morto, tou morto, patrão Surrupita, mas peço não me mate, pelo ventre de deus, anjo de deus, não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada! Tomo benção... Tomo benção...
-        Tu é besta, seo! Losna! Trepa em tua mula e desenvolve daqui.
 Soropita comandava aquele grande escravo aos pés de seu cavalo. Igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos. Urubus do ar comiam a fama do preto.
Daí, Soropita mirou a arma que ainda empunhava – aquele dado de presente pelo Dalberto e sinalou uma cruz na capelada:
 Dão –Lalalão, vibrou o bronze.
 Epifania.
Numa paz poderosa, vinha para casa, para Doralda.
 

Dão-Dalalão

        
       Dão-dalalão, senhor Capitão
        Espada na cinta
        Sinete na mão”
 
        João Guimarães Rosa tece, com as mãos de mestre, nessa novela tão pouco comentada pelos estudiosos de sua obra, as argúcias e as sutilezas do vivido íntimo de Soropita, em seu processo de pagar um dívida que tinha para consigo mesmo:
       Dela, dele, da vida que separados tinham levado, nisso não tocavam, nem a solto fio – o sapo na muda, come a pele velha. Era como se não houvesse havido um principio, ou se em comum para sempre tivessem combinado de o esquecer.
       De seu passado ele sabia e dele tinha marcas e cicatrizes vivas, no corpo. Do passado de Doralda, Garanhã, Sucena... era muito perigoso saber. Precisava se muito preparar. A Moça Clara, Izilda... poderia lhe ajudar a sentir aquelas finíssimas delícias. Mas aí, junto, na caixa de segredos da mente, caixa de Pandora, o leite, o vinho, o mel e seus perfumes, estão ao lado das quatro bestas negras da Revelação (Apocalipse). A besta branca do Desejo, de experimentar novos sabores.
       A besta vermelha da Suspeita, da Inveja e do ciúme que corrói os limites entre as coisas.
       A besta negra do Sofrimento que torna tudo muito caro e penoso.
       E a besta amarela da Peste, com e legião de Mortes a lhe impelir.
       Estar preparado para lidar com todas essas variedades de coisas juntas, exige uma iniciação nos mistérios dos meandros psíquicos, que, pouco a pouco, Soropita granjeara.
 Como se ocupar cabeça, duma vez, com tantas diversidades?
       Ele queria curtir seus devaneios pluralistas de homem de várias mulheres, gozar aquele privilégio que vira as mulheres usufrutando nas casas da alegria, em Montes Claros. Elas, passarinhos soltos, de muitos, de todos os homens. Sua Dada... Garanhã.
       Entrar nesse lugar de luxo... ainda que em segredo.
       Assunto verdadeiro, cada um guarda para si consigo.
       Soropita se atreveu. Mexia com cobras, do Aõ ao Andrequicé e ao Aõ. Perturbado pelo torpel e pelo amigo, Soropita continua, contrafeito a principio, desguardado depois, a sonhar. Com as Delícias do Rei Salomão.
       Ele, com Izilda, depois as delicias dela dizendo coisinhas coisas de Sucena.
       Sua delícia. Soropita reinava no quarto, com a rapariga, mais-viviam, de si variavam. Soropita sabia não-ser: intimava o escabro de outras figuras, o desenho do entremeado se enriquecia de absurdas liberdades. E seu corpo respondia ao violento instigo, subia aquele espumar grosso de pensamentos. Agora, ali naquela casa de luxo, estava era com Doralda. Ela era dele, só dele.
       Soropita vive a fantasia de reencontrar a Outra, na imagem de Izilda e delibar com ela, segredos excitantes de Sucena. E logo se imagina no meio todo de outras figuras, em absurdas liberdades. O suprassumo. E já era Doralda e as delícias da posse com exclusividade.
       Dentro de si, cada um pode usufruir todas as delicias da corte do Rei Salomão. A Realidade, sempre ela, essa quarta dimensão de  nosso psiquismo, é que teima, em sua dureza, em não colaborar e em não corroborar.
       Mas dela, Realidade, aprendemos a fazer uso, como não? As bestas reveladas do Apocalipse são concentradas no negro Iládio e no Dalberto e acabam se concentrando, melancolicamente, na figura do negralhaz. Ele se torna o depositário de toda a traição e de todo o desrespeito à pessoa que muito se preza, diversos daqueles do Aõ, amigos seus, sempre moles, todos num desvalor de si suas presenças.
       A suprema fantasia escabrosa era a do bronco do negro Iládio com Izilda, que se transformava em Doralda. E ela regalando...
 O preto, indecente, senhor de tudo, a babar-se, fazendo xetas.
 Esse e o outro, Dalberto conhecia Doralda, eram os aguilhões ardentes do inferno que Soropita tem que sustentar e atravessar.
       Já na saída do inferno interno, há duas novas fantasias terríveis, porém, já amortecidas preparatoriamente por estas duas anteriores:
       Doralda entendendo dele Soropita querer obsequiar o amigo Dalberto, oferecendo-se a este (à maneira dos esquimós).
       E dela ter recebido negros, lá na casa da Clema.
       E nesse tormento, chorar não podia; ir para o Campo Frio era se desmerecer; calar era perder o autorespeito.
       Seus aliados foram a alegria fresca e a ingenuidade do Dalberto ; a tranquilidade boa do amor de Doralda... e seus brios.
       Tão de repente quando aflorava o inferno, voltava a ele de repente os rios da coragem. Só melhorou um espaço, revia as estrelas da claridade. Soropita começava a sair de seu inferno subjetivo.
-        Bronzes!.
Em três momentos exclama: o que há de mais duro, mais forte, mais integro e mais sonoro, no sertão?
Ele também se torna um cavaleiro do apocalipse, montado em seu  cavalo Apouco.
Morria, que morria; mas matava.
       De si ninguém ia fazer pouco...       Vai furioso no negro. Iládio se humilha. Ele, Soropita, vivo, publico, desforrado.
Livre dos pensamentos maus. Expelido de suas piores cobras e bestas. Expulsara de si seus objetos maus, pagos adequada e penosamente.
Tisca uma cruz, à bala, no sino da capela do Ao.
 Dão-Lalalão!...
Soropita atirara. Não fora preciso com o negro. Comemorava as balas no bronze do sino, diante de todos.
Tão bom, tudo, que a vida podia recomeçar, igualzinha, do principio e dali, quantas vezes quisesse.
 
Dão-Lalalão é a descrição belíssima do inferno interior de alguém vivenciando e elaborando suas mais fundas angustias paranoides. Nessa novela, temos a pureza de um documento literário com uma riqueza que a literatura psicanalítica jamais alcançou. Se formos pensar em Metapsicologia, é só para aprendermos que o Excitante (mais um sabor) está junto, ao lado do Mortífero (a inveja, a desconfiança em si, e no outro, o ciúme e a traição). E que ambos, nossos constituintes, aprendemos a reprimir e a recalcar, quando não a negar, de uma das muitas formas possíveis.
Dão-Lalalão  ou como permite Guimarães Rosa Lão-Dalalão, é história de como Soropita começou Devente e saiu Pagante e capaz de pagar vezes quantas necessárias. Os meandros desse processo subjetivo de elaboração da dívida para com a vertente Excitante, que renova e dá gosto à vida, só se faz indissoluvelmente articulada à vertente Mortífera, que nos exige atravessar o nosso pessoal e intransferível inferno.
Para isso, além da habilidade de fazer  condensações (metáforas), simbolizações e sobretudo, deslocamentos  (metonímias), o sujeito tem que contar com os acasos da Realidade.
Esta se posiciona como uma quarta instancia metapsicologica  que tem, na imprevisão e no acaso, suas leis próprias, fluindo soberana, impávida, colosso, na maior indiferença às nossas vontades e convivências. A Realidade do amor de A Dora(l)da cumpriu seu forte desempenho, na medida que dessa fonte de relação, tão pouca incerteza surgiu e muita firmeza houve, reasseguradora.
A amizade com Dalberto foi outro ponto de apoio significativo, surgindo da Realidade.
O encontro na estrada serviu de Repressão Externa, intrusiva, fazendo com que o mexido ( o inconsciente) permanecesse ali, a flor, a mão , Enquanto o Dalberto falava, Soropita reconvocou a Moça Clara, nomeou-a e deu-lhe uma função: avançou seu processo interno Excitante até os muitos homens da Garanhã, até chegar as bordas do Aversivo: o preto.
Foi da Realidade que Soropita teve a sorte de encontrar, junto no bando, com o Dalberto, o preto Iládio
Sua figura serviu, a pleno contento, para receber as identificações projetivas, de tudo aquilo de resíduo, de fel, de veneno, e de nojento, que resulta do trabalho com a inveja, com o ciúme e com o temor de ser traído. E foi depositando nele todo seu ódio e todas suas suspeitas, que Soropita criou um objeto demoníaco a ser escarmentado.
Na medida que o acaso tornou desnecessárias balas em carne humana, essas balas foram exultoriamente dirigidas ao marcador por excelência da vida da comunidade: o bronze do sino Aõ. O bode exultório de todo processo de crescimento pessoal. A vida assim, limpa, paga, podia recomeçar, quantas vezes preciso fosse.
Pensar em outras mulheres, ou, em Doralda com outros homens, era um secreto deleite a ser desfrutado, quantas vezes quisessem, sem as suspeitas e os venenos primitivos.
O Campo Frio estava fora de cogitação; a amizade com o Dalberto se firmava; o amor de Doralda crescera, sobranceiro.
E amor é  sede  depois  de  se  ter bem bebido...  pairando por cima de tudo. E ele, nele crescera, recuperara, o respeito próprio, avantajado por cima do preto e irradiado por alto e bom som, para que não pairasse dúvidas de quem ele era: Soropita.
Soropita é um Otelo que consegue elaborar e suplantar seu delírio de ciúme a tempo e a contento.
 
Umberto Eco afirma que:
 os livros falam sempre de outros livros e toda história conta uma história já contada.
 
Na correspondência de Guimarães Rosa com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, encontramos indicações do autor dos livros onde se inspirou: O Cântico dos Cânticos; o Apocalipse de  João e a Divina Comédia, de Dante. Temas universais da humanidade, similares, reaparecem com a insuperável beleza de Rosa, no nosso Sertão.

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