Dão - Dalalão
(O pagante)
Marco Aurélio Baggio
A novela de
minha predileção em Corpo de Baile tem esse sonoro e atávico som de sino
repicado. 1
É
uma história de amor, cuja tessitura se passa, quase toda, nos meandros da
subjetividade do Mundo Interno de Soropita. O ouvires da Língua Portuguesa,
João Guimarães Rosa, descreve, com acuidade e exatidão notáveis, o
desenvolvimento de um delírio celótípico (delírio de ciúme), sua eclosão, seu
desenlace e sua cura.
Soropita,
a bem dizer, vinha montando em seus cavalos: tocava de leve o cavalão
Caboclim e no aproveito do trajeto de Andrequicé para o Ão, ia cambono de si
mesmo, mesmeado. Pepensando, avaliando de manso suas certezas: a paisagem, os
lugares, as possíveis espreitas. Gostava de sentir fiéis, justas ao corpo,
parte dele, a pistola automática de nove tiros, o revólver oxidado de cano
curto e no coldre, o niquelado, cano longo de seis balas no tambor.
Montado,
assegurado, ia floreando para Doralda, sua mulher. A doce lembrança dela:
– Bem, por que tu não me trata igual minha mãe me chamava, de
Dola ? A voz,o perfume, o corpo – Dadã.
A
flor, Sucena introduz o passado – um passado que, se a gente auxiliar, até
deus mesmo esquece. Soropita chegava no brejo de barro preto, de onde o
ansiava o cheiro estragado de folhas se esfiapando, de água podre, choca, com
bichos gosmentos, filhotes de sapos, frias coisas vivas mas sem sangue nenhum,
agarradas umas nas outras, que deve de haver, nas locas, entre lama, por
esconsos.
Ele
vinha sozinho ao Andrequicé, escutar novela de rádio. Doralda dizia que não, só
se fosse para cidade grande, Pirapora, Belorizonte, Corinto. Ralhava que ele
tomasse cuidado. Soropita brincava feliz com o ciuminho dela:
- Tomo não, bem. Um dia sucuriú me come...
Doralda,
sua mulher... Repensava.
Nome
formoso, bom apelativo. Sertaneja de perto da Bahia, que o encarava e
falava rasgado, sem os muxoxos e os manejos de acanhamento comuns às mulheres
de daqui. Seu cheiro, o pescoço que cheirava a menino novo.
Doralda nunca o contrariava e falava, mansa, o bom falar:
-
Sou sua mulher, Bem, sua mulherzinha sozinha...
Comida
gostosa, temperos fortes. Encontrasse fio de cabelo? Asco nenhum. O cuspe
dela, no beijar, tinha pepêgo, regôsto bom, meio salôbre, cheiro de focinho de
bezerro, de horta,
A
estrada de areia, enjoosa.
Cicatriz
no queixo: as balas que lhe rasgaram e lhe machucavam, ainda hoje...
Mas
Doralda era corajosa. E repassava as mãos nas grossas costuras, uma
por uma, uma mão fácil, surpresas de macia, passava a mão em todo corpo, a
gente se estremecia, de cócega não: de ser bom, de ânsia! Mel nas mãos, nem era possível se ter um
mimo de dedos com tanto meigo.
E
dizia, numa expressão de suprema entrega:
- Um dia eu deixar de gostar de
você, Bem, tu me mata?, pedia.
Ah!
Doralda... Adorada. A dourada. Dora. Adora. Dor. Diadorim.
Não
como essas mulheres dos outros.
Uma mulher emburrada, que suspira, era coisa desgraçavel: tinha
visto, as de outros, quase todas; sina sem sorte, um se casar com mulher assim.
- Tu põe a
mão em mim, eu arrupeio toda. Eu viro água...
Um
dia, falou no pozinho alvo:
- Cocaína,
meu bem. Dá vontades emendadas, não acaba...
e fugia de
Soropita a coragem de perguntar quem a ela tinha ensinado.
Ela
sabia como se ser para a ele não ofender.
-
Ainda não é nada não, Caboclim. Vamos.
Ainda não
fora daquela vez.
Guimarães
Rosa, o meigo cavaleiro combatente (Weihs
Mahr) (germânico arcaico –> Wimara (Suevo) –> Guimara –> Guimaranes (português arcaico)
–> Guimarães) vem pela estrada,
viajando no trote dos contrapontos entre as asperezas, as estupidezes e a
podridão da vida, com as belezas do cenário do sertão, as doçuras e a meiguice
da mulher adorada. Pataapata.
Pata-a-pata.
Passo
a passo, etapa a etapa, Soropita se capacita para entrar em fundo contato
consigo mesmo.
-
Ainda é nada não, prenuncia a vez que está para chegar.
Na construção
do texto, Guimarães bascula entre o Mundo Externo, suas ocorrências e
insurgências, representado por esse privilegiado espaço cênico universal,
criado poeticamente pelo autor, que é o Sertão Mineiro, e a descrição cuidadosa
do Mundo Interno do personagem, com seu objeto privilegiado de relação, que é
Doralda. Nesse trote de quatro patas, o cavalo e as armas são os objetos que
permitem a livre transição entre os
espaços internos e externos.
Mundo Externo -
Sertão = Caminho- o percebido fora.
Objetos de transição = Cavalo
Armas- partes do corpo do
cavaleiro (Weihs Mahr).
Mundo interno
– lembranças – o percebido dentro. O evocado Objeto
de Relação – Doralda – O amor.
Ora
um, ora outro e outro, os temas se insinuam, brotam mansamente, ocupam a cena
da consciência e se afastam, dando passagem a outro tema que já adquiriu força
e consistência para se expressar. Soropita está indo de volta para casa, vindo
para o Ão, em direção ao Eu. Em arrevezada associação livre. Um à esquerda,
outro á direita, um bom, outro ruim: a caminho do abissal, perdido em seu passado.
Camada por camada, fundo mais fundo, em direção à interioridade mais profunda
ainda.
O
risco:
Num formo de mato como aquele, no estôrvo, sempre podia haver alguém
emboscado, gente maligna, inveja do mundo é muita. Sujeitos que mamaram
ruindade, escorpeiam, desgraçam – por via desses, viajar era sempre arriscado e
enganoso.
Mas
Doralda perto dela, tudo resultava num final de estar bem arrumado.
E
Soropita não perde a chance de se comparar:
Diversa de tantas mulheres, as outras viviam contando de doenças
e remendando fastios.
Havia
mais de três anos Soropita deixara a lida de boiadeiro; e se casara com
Doralda -.
-
Ninguém me tira do meu caminho. No eu começando, eu
quero ir até na orelha...
-
Ela: – Eu também,
bem... – e se pegando com abraço, brincando de morder. Sabia sumir um,
nisso.
Senhor
Zózimo propusera trocar seus alqueires no Âo por terra cinco vezes maiores, em
Goiás, lá no Campo Frio.
Doralda dizia que era bonito a gente ver passar o
trem de ferro, ficar olhando. Dali do Ão, algum dia, só para cidade grande, em
sonho que fosse.
Soropita
antecipava o daqui a pouco:
Chegava
a casa, abria a cancela, desapeava do cavalo, chegava em casa. A felicidade é o
cheio de um copo de se beber meio-por-meio; Doralda o esperava.
Momento
então de sobressonhar com
o doce da vida – aquelas casas. Montes Claros!: Um paraíso de
Deus, o pasto e aguada do boiadeiro -.
Espaço
calmo de estrada. Muitas articulações
já feitas: Cabeça limpa dos mais superficiais entulhos. Consciência
preparada para receber evocações mais profundas, deliciosamente excitantes,
perigosamente pecaminosas.
Montes
Claros! Rua dos Patos. Mulheres, meninas até!:
aquelas
mulheres regiam ali, no forte delas, sua segura querência, não tinha temor
nenhum, legítimas num amontôo de poder, ele se apequenava: mulheres sensatas,
terríveis.
Mas
um certo receio Soropita devia também ás mulheres, um respeito esquisito, em
lei de acanhamento.
Negaceava,
venha sujo, parecia desinteressado mas se deixava capturar nos braços daquelas.
De fim, ia ficando avontadinho, sem vexame nenhum
de pressa, tomando tento miúdo em tudo, apreciando de olhos abertos o fino da
vida, poupando o bom para durar bem, se consentia.
Um
dia, afracara. Saiu desguardado,
labasco, lá demorara menos que passarinho em árvore seca.
Mal
a mal, com Doralda, uma vez, também tinha acontecido –. Doralda boazinha, dizia
que as vezes era mesmo assim, não tinha importância, que nenhum homem não
estava livre de padecer um dissabor desse momentão.
A já na outra noite, ele se prezava de
tudo, são de aço, aquela felicidade.
Se
não, porque e para que vivia um? Tudo no diário disformava aborrecido e
espalhado, sujo, triste, trabalhos e cuidados, desgraceiras, e medo de
tanta surpresa má, tudo virava um cansaço. Até que homem se recomeçava junto
com mulher, força de fogo a reunir seus pedaços, o em-deus.
-
Mais ligeiro Caboclim, vamos.
Em seu
escondido cada um reina: prazer de sombra.
–: agora
o mundo de fora lhe vinha filtrado sorrateiro, furtivo, tinha havido,
principal, uma rapariga bonita, clara, com os olhos que riam sozinhos.
Aquilo era
seu segredo. Seu secreto deleite, surgindo naquelas viagens entre o Âo e o
Andrequicé e o Aõ. Todo o anterior, preparativos para o deleite supremo:
Soropita
estava numa casa de mulheres.
Uma rapariga inventada
– Bem, tu é
sério casado? Com quem?
–
E ele ia
respondendo.
- Sucena?
A Sucena? Mas, essa?! Ah, pois conheço, Bem. Conheço inteira: é da gandaia! A
pois, vou te contar... Relatava da vida
de Doralda, contava de Doralda, devagar, coisinhas, coisas, orgias e proezas.
Soropita
pausava. Soerguia a fantasia vibrada, demorava-a próprio uma má-saudade, um
resvício. Sua delícia.
Agora, ali naquela casa de luxo, estava
era com Doralda.
E então: De diante, vinha um torpel de
barulho, o trupe de vários cavalos.
Era Dalberto.
Até aqui,
Guimarães Rosa constrói, delicadamente, o processo de elaboração interna que
percorre Soropita para chegar nos fundos de sua intimidade e imaginar-se
conversando sobre a vida pregressa de Doralda com a rapariga clara. Ele quer se
deliciar de remorder aquilo, o passado de Doralda como Sucena, mulher na casa
da Clema, em Montes Claros, O “antes” dela que, inevitável, iria futucar
as feridas de balas alvejadas em seus brios de macho. E que fariam doer as
cicatrizes angariadas no passado dele, Jagunço Soropita.
Quando ele
está no auge do desfrute de sua intimidade, o Mundo Externo o invade sob a
forma de tropel de cavalos e o aparecimento do amigo Dalberto.
Soropita
acabava de aceitar receber em sua consciência a outra, a moça clara, no lugar do
supremo gozo e com ela se permitia excitar com as proezas da Sucena. Para um
homem, supremo sacrário, a ser evitado e revestido e despistado e negado e
reprimido. Pois junto com as delicias, junto corre os demônios do ciúme e
ninguém sabe qual será mais forte, qual vale mais a pena. Soropita mal acabara
de se permitir penetrar nas fantasias de uma sexualidade extrapolada da relação
dual com Doralda, convocando sua colega de profissão e muitos de seus
fregueses, quando a Realidade rudemente o invade.
Encontrara o Dalberto.
Amigo é: poucos, e com fé e escolha, um
parente se encontrava.
Com os outros companheiros dele, havia
O preto,
com espingarda e capanga, remexia: tinha ali uma codorna, sapecada de pólvora,
preta e sangrenta; Soropita desviou
olhar.
É
constrangido a convidar o amigo à sua casa. Os outros atrás, reverentes,
recuperam a história do jagunço Surupita, o que matou Antônio Riachão e o
Dedengo... O que matou João Carcará. Matou o Mamaluco, também.
As mortes,
os duelos a bala, os ferimentos, os júris em
mais de três comarcas. E os lugares por donde os amigos haviam tangido gado. O presente, o
revólver 41 que Dalberto lhe deu. Pela voz, Soropita reconhecera Dalberto. Pela
voz, o cego reconhecera há mais de dois anos o Dalberto.
Aquela voz devia de se mexer, lá dentro, em muitas
trevas, como muitas cobras brilhantes.
A conversa
vai para Montes Claros e as mulheres...
Pasto bom e mulher – e o mais se tiver...
E a
esperança iludida do macho vaqueiro homem:
Só quando se está com mulher é que a gente
sente mesmo que está lorde, com todos os perdões... Que é que se está vivendo,
mesmo.
E
continua, em boa filosofia.
Afora isso, tudo é poeira e palha, casca miúda. A
gente vai indo, caçoando e questionando, agenciando, bazofiando, tendo medo,
compra isso, vende aquilo... como que na gente deram corda. Homem não se
pertence.
Com
Dalberto podia se abrir às meias, talvez até expor o vivido escondido.
Mas não: Ele
Soropita não fiava esse assôlto de se descobrir com ninguém”
E Dalberto
fala nas solturas do Major Brão. E a estima dele pela Analma.
E, rédea
solta no devaneio, Soropita arranjava nome para aquela rapariguinha. Izilda...
-
Izilda. Chamava-a, ela atendia.
Agora é
que o inconsciente se manifestava, sujo, perigoso.
Mas era o ferrôo de um pensamento que
gelava, que queimava, garroso como um carrapicho: o preto... Izilda entregue à
natureza bronca desse negro! Tinha de a ela perguntar. Ela respondia:
- Bem, esse já me dormiu e me acordou... Foi
ruim não. Tudo é água bebível...
Mas a nova
traição do inconsciente, inconsequente em suas tramóias.
Mas – não
era Izilda, que estava com o preto vespuço, com Iládio... – voz era
outra: Doralda! Doralda, transtornados os olhos, arrepiada de prazeres...
Soropita
antegoza e se arrepia, justiceiro: em revólver: corjo de um assim, o sertão
deixa muito viver não.
E o Dalberto
contando, contando: Analma o despachando do bordel: - Tem dó de tua
noivinha, que vai passar por coisas tão feias...
Dalberto via o prazer que ela
tirava daquilo e filosofava que talvez pelo quindim dessas meias-doidices,
mesmo, Surupita, que ela são sai da cabeça minha, que é mais um sabor...
Guimarães
coloca na boca de Dalberto aquilo que Soropita tentara conseguir experimentar
sozinho e agora experimentara sem querer, através do caso do amigo: o delicioso
do mais um sabor da sexualidade extrapolada por mais um, na díade. E o
quanto isso fisga, gruda, amarra, gosma, numa vinculação de Detalhes Críticos
excitantes e específicos, que são a base do vínculo de amor. Por que Doralda
não cobrara daquele rústico e sujo vaqueiro, suprema distinção para ele? Por
que ele lhe propusera vida em comum e ela aceitara no ato? De onde a certeza de
ambos em se vincularem, senão pelo borrásco pressentimento de que ela seria,
alem da prostituta, a mulher adorada que veio a ser, e que ele, vaqueiro bronco
comum, era homem de façanhas e firmezas?
Como
se escolheram e como se engancharam, de primeira, assim, numa sorte momenteira
infernal?
O
que não podia era se lembrar daquele negro.
Era
o próprio tremedal diante deles.
Doralda
era um consolo. Uma água de serra – que brota, canta e cai partida:
bela, boa e oferecida.
Rastro
de cobra.
Se
esbarrou
A
idéia assomada agora era pior, mais perto. E se o Dalberto conhecia Doralda, de
Montes Claros, com ela tivesse até ficado?
Era
demais, ele psicossomatizou: endureceu de câimbras. E entrou em paranóia.
Quem
sabe até já estava informado, tinha ouvido de alguém por ali o nome dela – como
a mulher de Soropita – e se lembrava, talvez mesmo por isso agora queria vir, ver
os olhos, reconhecer... E então a maior parte da conversa dele, na estrada, só
podia ter sido de propósito, por regalo de malicia, para tornar o ponto a ele
Soropita, devia de ter sido uma traição! Talvez, até, os dois já haviam
pandegado juntos, um conhecia o outro de bons lazeres... Sendo Sucena,
Doralda espalhava fama, mulher muito procurada... O Dalberto, moço femeeiro...
Ai, sofrer era isso, pelo mundo pagava!.
Soropita
se vê mergulhado em pleno inferno dominado pelo demônio verde do ciúme. Um inferno
que esquenta e aferroa suas idéias e que está todo dentro de sua cabeça. A
Paranóia surge de se querer gozar com os outros. É tão bom, tão deliciosamente
excitante que, no recesso mais intimo da fantasia ou na inocência
descompromissada do sonho, um tal se permite. Mas para o acordado desfrute, é
necessário o sujeito estar muito estribado na identidade de si mesmo. Um homem,
macho como Soropita, tímido e reverencial ao poderio das mulheres, um tal que
já tinha falhado duas vezes, ainda não estava preparado para fazer essa
passagem do duplo ao múltiplo, sem ser acossado pelos quatro cavaleiros do
Apocalipse. Matava, pois matava. Matava o Dalberto. E a besta daquele
negro Iládio.
A Suspeita,
corroendo o estuque frágil da repressão, vinagrando a inveja que, temperando
tudo, desperta o Ciúme: os três gerando o Ódio. O que era Bom, Amor, Amizade,
Posse possuída na certeza, vira Ruim, Traição,Traição, Traição. A única reação
possível é a Vingança de quem ou daquilo que lhe privou do Bem.
Lá,
no intimo, na caixinha de segredos, está a coisa brilhante, excitante,
deliciosa. Junto dela, também, pode estar, quase sempre, o menino temor de se
ter sido traído. O Mel e o Veneno: Inferno. Soropita tem que purgar a pena de
ter obtido Doralda. Durante anos, eles não comentaram sobre o passado deles. Agora, aquele passado voltava por própria
convocação dele e pelo acaso da vida.
Certa vez,
jantando, fora acuado por demônios raivosos, Fora mais rápido que eles,
disparou suas armas e se salvou, rasgado, embora.
Para não mais isso, tinha
vindo para ali, quase escondido, fora de rotas, começando nova
lei de vida.
Sim, evitara os
encontros com os valentões mas agora, como? O demônio vinha na pessoa de um
amigo, seu melhor amigo? E logo assim, quebrado em seu respeito.
Tudo
fugia da regra.
O encontro de
Dalberto com Doralda transcorre entre suspeitas instigantes e apaziguamentos
confortadores: Soropita sofre até que Dalberto pergunta se ele acha que
acertava casar com a Analma.
Se
ele se manifestava assim, tudo o que Soropita vinha pensando estava errado,
tudo de falso, chegavam os anjos com suas varinhas de ouro,
Soropita
se sentia de um bom calor repentino no corpo, a animação, um espertamento de
querer, seus olhos procuravam Doralda.
Enquanto
Dalberto falava, mais uma fantasia infernal:
E se Doralda, por mando dele, Soropita, se oferecesse para
obsequiar Dalberto?
Doralda
acabara de arrumar o quarto para Dalberto:
O que era e que não
era?
Soropita
continua evocando...
Por
fim, aconselha o amigo e se dá conta
E
que tinha ele, Soropita, com essas contas se não que somente devia era desejar
ao Dalberto o desejo dele, e, em casos, funcionar em toda ajuda, o amigo
carecendo?
-
Mano irmão...
Soropita
se inteirava, congraçado, retranquilo,
Doralda era sua fome perdida, sem os salteios do dia,
de fadiga, pareciam deixar rastro, a vida era um vibrar de coisa, uma
capacidade.
Será
que ele desconfiou, a ver, de tu na Clema, o Dal? -, e não sorriu, que dordoiam
nele os prazeres finíssimos; trasteava quase vergonhoso.
– Notou nem não, Bem. Que ele está longe de saber...
Nessa
noite ele quer, pela primeira vez, vê-la nua..
Doralda – a mais bela – mimosa sem
candura.
E
ambos tocam no até então interditado:
-Todo
mundo gostava de você... Tu é a bebida do vinho... Ah, então você gostou de mim
por quê? Só se no estúrdio da primeira vez que me olhou?
-
Tanto fui te vendo, Bem, deduzi: este é o meu, que é,
sem a gente se saber... Eu gostei na certeza.
-
A pois, foi? Soropita
recostado, refrescado, como um capim de campo.
-
Tu é bela!
Cântico dos Cânticos.
E a
inundação montante, quente e gostosa da desrepressão: poder jorrar fora aquilo,
coisas contidas de gosmentas:
-Tu
conheceu os homens, mesmo muitos?
– Aos muitos, Bem. Tu agora está com ciúme?
Delícia
colher da boca de Doralda os quais, Dalberto não. Com o preto Iládio? Com ele
não mas com o preto Sabarás.
Ele a
descobre menina. Que topa ir com ele
para o Campo Frio. - Vou, demais.
Agora iria
dormir e ao entrar em pequena paz para a pedreira da noite uma
porção de assuntos iriam se arrumar em sua cabeça. Então pensou a última
angústia persecutória do dia, nada, porque tudo na vida era sem se saber e
perigoso, como se pudessem vir pessoas, de repente, pessoas armadas,
insultando, acusando de crimes, transtornando. Dormir, mesmo, era perigoso, um
poço – dentro dele um se sujeitava.
E se
regozijava de lembrar aquilo que Doralda tinha falado, mais uma vez, muito
falava:
- Bem, eu acho que só ficava sossegada de tu nunca
me deixar, era se eu pudesse estar grudada em você, de carne, calor e sangue,
costurados nós dois juntos... Isso, ele gostava.
Redormia.
Simbiose.
Gostosa refusão. Vivência de absoluta entrega e completude.
Soropita
não estava bem, o principio daquele dia mareava-o mal num dramar. Os assuntos,
tantos;
Ah, o
estrupício da cavalhada. Aí – quem eram?
Gente do
Dalberto.
O preto
Iládio, logo ele.
E o preto
Iládio, o negralhaz, avultado, em cima de uma besta escura.
-Eh,
Surrupita! E falou uma coisa... que seriam umas injúrias.
De
repente, no da besta negra, Soropita concentra todo o destilado melancólico de
fel proveniente dos enxofres de seu inferno e o deposita no negro: o negro
Iládio o ofendera, apontara-o com o dedo, e ele não refilando...
Uma raiva,
um ranço de ojeriza. E o sofrimento no espírito, descido um funil
estava nas profundas do demo, o menos, o diabo rangendo dentes enrolava e
repassava, duas voltas, o rabo na cintura?
Não
adiantou a ponderação de Doralda.
- Mas, bem, o preto não fez nada, não destratou,
não disse nada: o preto só saudou...
O azougue
certeiro da paranóia supitava mais.
O preto
bebia e voltava e vinha mais. Capaz de descompor. Ah, esse sabia de Doralda,
arreito, conhecia: bem que viu, logo reconheceu!
Naquele
sofrimento, chorar não sabia, deixar como estava, era tormento certo para
sempre: adeus ao autorespeito.
Tinha suas armas, mas não voltavam a ele
os rios da coragem.
Doralda cantava, e ele?
Medonho, aquele preto feito um pensamento
mau.
A decisão
vai se elaborando, devagarinho, depressazinha, ajudada pela contraposição do
amor de Doralda.
– Bem, eu estou adoecida de amor...
Homem ele
era, tinha Doralda e os prazeres por defender, e seu brio mesmo, ia, ia em cima
daquele negro, mesmo sabendo que podia ser pra morrer! Tinha suas armas. Nem
que não tivesse. Ia no preto. – Bronzes!
Teso, duro,
se levantou, tirado a si vivamente.
Já
vou, já volto...
-
Mas, aonde, Bem, que tu vai?
-
– Bronzes!
-
Monta seu cavalo de apouco, apocalipse.
Invade o
povoado, conclamando as gentes, encontrou o grupo de vaqueiros armados, o preto
no meio deles.
-Tu preto, atrás de pobre de mulher, cheiro de
macaco..., declarou – Apeia negro, se tu não tem caráter! Eu te soflagro!...
- Tou
morto, tou morto, patrão Surrupita, mas peço não me mate, pelo ventre de deus,
anjo de deus, não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada! Tomo benção... Tomo
benção...
-
Tu é besta, seo! Losna! Trepa em tua mula e
desenvolve daqui.
Soropita comandava aquele grande escravo aos
pés de seu cavalo. Igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos.
Urubus do ar comiam a fama do preto.
Daí,
Soropita mirou a arma que ainda empunhava – aquele dado de presente pelo
Dalberto e sinalou uma cruz na capelada:
Dão –Lalalão, vibrou o bronze.
Epifania.
Numa paz poderosa, vinha para casa, para Doralda.
Dão-Dalalão
Dão-dalalão,
senhor Capitão
Espada
na cinta
Sinete
na mão”
João
Guimarães Rosa tece, com as mãos de mestre, nessa novela tão pouco comentada
pelos estudiosos de sua obra, as argúcias e as sutilezas do vivido íntimo de
Soropita, em seu processo de pagar um dívida que tinha para consigo mesmo:
Dela,
dele, da vida que separados tinham levado, nisso não tocavam, nem a solto fio –
o sapo na muda, come a pele velha. Era como se não houvesse havido um
principio, ou se em comum para sempre tivessem combinado de o esquecer.
De
seu passado ele sabia e dele tinha marcas e cicatrizes vivas, no corpo. Do
passado de Doralda, Garanhã, Sucena... era muito perigoso saber.
Precisava se muito preparar. A Moça Clara, Izilda... poderia lhe ajudar a
sentir aquelas finíssimas delícias. Mas aí, junto, na caixa de segredos da
mente, caixa de Pandora, o leite, o vinho, o mel e seus perfumes, estão ao lado
das quatro bestas negras da Revelação (Apocalipse). A besta branca do Desejo,
de experimentar novos sabores.
A
besta vermelha da Suspeita, da Inveja e do ciúme que corrói os limites entre as
coisas.
A
besta negra do Sofrimento que torna tudo muito caro e penoso.
E
a besta amarela da Peste, com e legião de Mortes a lhe impelir.
Estar
preparado para lidar com todas essas variedades de coisas juntas, exige uma
iniciação nos mistérios dos meandros psíquicos, que, pouco a pouco, Soropita
granjeara.
Como se
ocupar cabeça, duma vez, com tantas diversidades?
Ele
queria curtir seus devaneios pluralistas de homem de várias mulheres, gozar
aquele privilégio que vira as mulheres usufrutando nas casas da alegria, em
Montes Claros. Elas, passarinhos soltos, de muitos, de todos os homens. Sua
Dada... Garanhã.
Entrar
nesse lugar de luxo... ainda que em segredo.
Assunto
verdadeiro, cada um guarda para si consigo.
Soropita
se atreveu. Mexia com cobras, do Aõ ao Andrequicé e ao Aõ. Perturbado pelo
torpel e pelo amigo, Soropita continua, contrafeito a principio, desguardado
depois, a sonhar. Com as Delícias do Rei Salomão.
Ele,
com Izilda, depois as delicias dela dizendo coisinhas coisas de Sucena.
Sua
delícia. Soropita reinava no quarto, com a rapariga, mais-viviam, de si
variavam. Soropita sabia não-ser: intimava o escabro de outras figuras, o
desenho do entremeado se enriquecia de absurdas liberdades. E seu corpo
respondia ao violento instigo, subia aquele espumar grosso de pensamentos.
Agora, ali naquela casa de luxo, estava era com Doralda. Ela era dele, só dele.
Soropita
vive a fantasia de reencontrar a Outra, na imagem de Izilda e delibar com ela,
segredos excitantes de Sucena. E logo se imagina no meio todo de outras
figuras, em absurdas liberdades. O suprassumo. E já era Doralda e as delícias
da posse com exclusividade.
Dentro
de si, cada um pode usufruir todas as delicias da corte do Rei Salomão. A Realidade,
sempre ela, essa quarta dimensão de
nosso psiquismo, é que teima, em sua dureza, em não colaborar e em não
corroborar.
Mas
dela, Realidade, aprendemos a fazer uso, como não? As bestas reveladas do
Apocalipse são concentradas no negro Iládio e no Dalberto e acabam se
concentrando, melancolicamente, na figura do negralhaz. Ele se torna o
depositário de toda a traição e de todo o desrespeito à pessoa que muito se
preza, diversos daqueles do Aõ, amigos seus, sempre moles, todos num
desvalor de si suas presenças.
A
suprema fantasia escabrosa era a do bronco do negro Iládio com Izilda, que se
transformava em Doralda. E ela regalando...
O preto, indecente, senhor de tudo, a
babar-se, fazendo xetas.
Esse e o outro, Dalberto conhecia Doralda,
eram os aguilhões ardentes do inferno que Soropita tem que sustentar e
atravessar.
Já
na saída do inferno interno, há duas novas fantasias terríveis, porém, já
amortecidas preparatoriamente por estas duas anteriores:
Doralda
entendendo dele Soropita querer obsequiar o amigo Dalberto, oferecendo-se a
este (à maneira dos esquimós).
E
dela ter recebido negros, lá na casa da Clema.
E
nesse tormento, chorar não podia; ir para o Campo Frio era se desmerecer; calar
era perder o autorespeito.
Seus
aliados foram a alegria fresca e a ingenuidade do Dalberto ; a tranquilidade
boa do amor de Doralda... e seus brios.
Tão
de repente quando aflorava o inferno, voltava a ele de repente os rios da
coragem. Só melhorou um espaço, revia as estrelas da claridade. Soropita
começava a sair de seu inferno subjetivo.
-
Bronzes!.
Em três
momentos exclama: o que há de mais duro, mais forte, mais integro e mais
sonoro, no sertão?
Ele também
se torna um cavaleiro do apocalipse, montado em seu cavalo Apouco.
Morria, que morria; mas matava.
De si ninguém ia fazer pouco... Vai furioso no negro. Iládio se humilha.
Ele, Soropita, vivo, publico, desforrado.
Livre dos
pensamentos maus. Expelido de suas piores cobras e bestas. Expulsara de si seus
objetos maus, pagos adequada e penosamente.
Tisca uma
cruz, à bala, no sino da capela do Ao.
Dão-Lalalão!...
Soropita
atirara. Não fora preciso com o negro. Comemorava as balas no bronze do sino,
diante de todos.
Tão bom,
tudo, que a vida podia recomeçar, igualzinha, do principio e dali, quantas
vezes quisesse.
Dão-Lalalão
é a descrição belíssima do inferno interior de alguém vivenciando e elaborando
suas mais fundas angustias paranoides. Nessa novela, temos a pureza de um
documento literário com uma riqueza que a literatura psicanalítica jamais
alcançou. Se formos pensar em Metapsicologia, é só para aprendermos que o Excitante
(mais um sabor) está junto, ao lado do Mortífero (a inveja, a
desconfiança em si, e no outro, o ciúme e a traição). E que ambos, nossos
constituintes, aprendemos a reprimir e a recalcar, quando não a negar, de uma
das muitas formas possíveis.
Dão-Lalalão ou como permite Guimarães Rosa Lão-Dalalão,
é história de como Soropita começou Devente e saiu Pagante e
capaz de pagar vezes quantas necessárias. Os meandros desse processo subjetivo
de elaboração da dívida para com a vertente Excitante, que renova e dá
gosto à vida, só se faz indissoluvelmente articulada à vertente Mortífera,
que nos exige atravessar o nosso pessoal e intransferível inferno.
Para
isso, além da habilidade de fazer condensações
(metáforas), simbolizações e sobretudo, deslocamentos (metonímias), o sujeito tem que contar com os acasos da
Realidade.
Esta se
posiciona como uma quarta instancia metapsicologica que tem, na imprevisão e no acaso, suas leis próprias, fluindo
soberana, impávida, colosso, na maior indiferença às nossas vontades e
convivências. A Realidade do amor de A Dora(l)da cumpriu seu forte
desempenho, na medida que dessa fonte de relação, tão pouca incerteza surgiu e
muita firmeza houve, reasseguradora.
A amizade
com Dalberto foi outro ponto de apoio significativo, surgindo da Realidade.
O encontro
na estrada serviu de Repressão Externa, intrusiva, fazendo com que o mexido ( o
inconsciente) permanecesse ali, a flor, a mão , Enquanto o Dalberto falava,
Soropita reconvocou a Moça Clara, nomeou-a e deu-lhe uma função: avançou seu
processo interno Excitante até os muitos homens da Garanhã, até chegar
as bordas do Aversivo: o preto.
Foi da
Realidade que Soropita teve a sorte de encontrar, junto no bando, com o Dalberto,
o preto Iládio
Sua figura serviu, a pleno contento, para receber as identificações
projetivas, de tudo aquilo de resíduo, de fel, de veneno, e de nojento, que
resulta do trabalho com a inveja, com o ciúme e com o temor de ser traído. E
foi depositando nele todo seu ódio e todas suas suspeitas, que Soropita criou
um objeto demoníaco a ser escarmentado.
Na
medida que o acaso tornou desnecessárias balas em carne humana, essas balas
foram exultoriamente dirigidas ao marcador por excelência da vida da comunidade:
o bronze do sino Aõ. O bode exultório de todo processo de crescimento pessoal.
A vida assim, limpa, paga, podia recomeçar, quantas vezes preciso fosse.
Pensar em outras mulheres, ou, em Doralda com outros homens, era um
secreto deleite a ser desfrutado, quantas vezes quisessem, sem as suspeitas e
os venenos primitivos.
O Campo
Frio estava fora de cogitação; a amizade com o Dalberto se firmava; o amor de
Doralda crescera, sobranceiro.
E amor é sede depois
de se ter bem bebido... pairando por cima de tudo. E ele, nele crescera, recuperara, o
respeito próprio, avantajado por cima do preto e irradiado por alto e bom som,
para que não pairasse dúvidas de quem ele era: Soropita.
Soropita é um Otelo que consegue elaborar e suplantar seu delírio
de ciúme a tempo e a contento.
Umberto Eco afirma que:
os livros falam sempre de
outros livros e toda história conta uma história já contada.
Na correspondência de Guimarães Rosa com seu tradutor italiano Edoardo
Bizzarri, encontramos indicações do autor dos livros onde se inspirou: O
Cântico dos Cânticos; o Apocalipse de João e a Divina Comédia, de Dante. Temas universais da
humanidade, similares, reaparecem com a insuperável beleza de Rosa, no nosso
Sertão.
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