Apego e loucura em João Guimarães Rosa
Marco Aurélio
Baggio
“...para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha...”
O burrinho pedrês, Sagarana, p.34.
Em “O burrinho pedrês”, de Sagarana, João Guimarães Rosa aborda, pela primeira vez em sua
obra, o tema do apego. João Manico conta a história dos bois que, com seô Major
Saulino, foram buscar “para trás dos
Goiás...”. Boiada ruim, arisca, saudosa de sua querência. Junto veio menino
pretinho. “E, aquilo, ele chorava, sem
parar, e de um sentir que fazia pena...” E o menino chorava e implorava,
queria voltar ao de onde tinha vindo. “Eu
só queria poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem
lá no rancho de minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que
deve estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!”. Dias de viagem, o
menino chorando, o gado berrando, aquela tristeza. Uma noite o negrinho pegou a
cantar uma cantiga judiada. Extremados, os vaqueiros dormiram. De manhã, o gado
desaparecera. Estourara, pisoteara o Aristides e o Octaviano, vaqueiros
encarregados de tomar conta.
“- E, mas a
pior de todas é a arrancada do gado triste, querendo a querência... boi
apaixonado, que desamana, vira
fera... Saudade em boi, eu acho que ainda dói mais do que na gente...”
E o pretinho sumira.
É com essa história dentro da história de “O burrinho
pedrês”, primeiro conto de seu primeiro livro, que Rosa aborda o tema do
desapego brusco, com a forte carga de tristeza que ocasiona, o desconsolo que
traz e as trágicas conseqüências que acarreta ao destino do sujeito.
Em “Sinhá secada”, de Tutaméia(1), Rosa trata do tema sob o ângulo estritamente humano.
A Senhora que procedera mal fora separada, sob força de lei, a mando do marido,
de seu filho, abaixo de ano, que “requeria
seus afagos”. A dor da separação devastara a Sinhá. Em três dias,
desamparada, soluçante, tornara-se espectro de si mesma: “era a sã clara coisa extraordinária – o contrário da loucura”.
Isolada de todos. Somente a boa preta Quibia abordou-a, gentil, respeitosa – “Sinhá...” – e lhe deu alimento. E lhe
ofereceu rumo e curso. Foram dali, do Curvelo, para a fábrica de tecidos de
Marzagão. Sinhá torna-se diligente operária. Adiara de ser. A ferida da brusca
ruptura, porém, jamais cicatrizava: “Nem
um ingrato minuto da arrancada separação poderiam restituir-lhe!”. Passava
espaços era acarinhado pedaço de pedra, sem graça, áspera, que trouxera para
casa, até que, um dia, apareceu-lhe um moço que caçava “o paradeiro de sua mãe, da qual também malvadamente separado desde
meninozinho”. Não era ela. “Mas, ela,
que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou para aquele,
abençoando-o, pegou a mão do tristinho moço, real, agora assim mesmo um tanto
conformado. Sorria, a Sinhá...”
Sinhá recobra a alegria a adquire novos olhos. Por uns
poucos dias. Morre logo a seguir.
Sua amiga Quibia decide empreender pesquisa sobre o
paradeiro do menino. Morrera, “adoecido
logo no depois do desalmoso dia, dos esforços arrebatados”. “Quibia relanceou – o passado, de repente
movente, sem desperdícios. Se curvou, beijando ali mesmo o chão, e
reconhecendo: ‘ – Sinhá Sarada...”
A maldade da ruptura brusca da relação de apego entre
mãe e filho, motivada por mero aspecto legalista, fora fatal para o rebento,
inerme e infante, e, além disso, secara a seiva da vida de Sinhá. Desistida de
ser, fora acolhida pela bondade singela da preta Quibia. Os anos passam. Um
dia, o acontecimento. O ímpeto da procura do moço moreno quebra o gelo e, de
alguma forma, instila alegria nos olhos até então empanados, encardidos, e
injeta vitalidade no corpo de Sinhá. Pode, então, renascida, após alguns dias,
morrer em boa paz. À amiga e confidente, coube a tarefa de revolver o passado,
reatando os nós da memória dos fatos, consertando, retroativamente, o malfeito.
Quibia recupera e limpa o passado de Sinhá. Satisfeita, constata sua tarefa
concluída. Depois de morta, ela, a Sinhá, podia descansar, sarada...
Belíssimo exemplo de como o acaso machuca a existência
humana por um lado; por outro, de como pode obrar a ascese e a edificação
humanas, possibilitando a recuperação do germe da alegria num corpo minado pela
amargura. Mostra, também, como se dá a recuperação da gã da alegria num corpo
impregnado pela tristeza. Exemplifica, ainda, como a recuperação da trama da
memória pode fazer sarar uma dor profunda, na medida em que muda todo o sentido
inicial da história.
A estupidez e a brutalidade da existência humana só
podem ser amortecidas e amenizadas pela bondade, pela solidariedade e pela
sensibilidade de um ser de alta qualidade, como a preta Quibia. Gente.
Pois é em hora de soberbo desamparo, quando alguém
constata que “o mundo não dá a ninguém
inocência nem garantia” e quando se sente que “a fome começa, necessidades, profundo o corpo mesmo é incômodo, o viver
vem é assim”, que a ajuda do Daça oferece o alívio imediato, para a mera
sobrevivência. Para a precisão de mais longo tempo, o Daça instila nos ouvidos
a imagem forte da solidariedade “porque
um homem havia, que ajudava geral”. Um vislumbre de esperança é introjetado
naquele que, resolvido. “ia me ficar
jazido ali, eu não era para como viver, não sabia.”
Nisso o Daça falou “que
se podia ter amparo e concerto, por um Rebimba, o bom parado em seu lugar,
a-pique alto, no termo de estiradas léguas”. Só disso saber “alegria me conciliou, dito que os olhos ora
me brilhavam. Saí, do frio para o quente, levantado sarado”.
O personagem começa a trabalhar; encontra, por acaso,
seu tio procurado, de nome não Joaquim José mas Aquino Jacques: “Se não me achasse, não me via, se não me
visse não me achava”.
E, assim, a vida é levada: “esqueci,de tudo, muito; conforme o encargo da natureza”.
Casa-se com Cilda, a filha de Daça. Mais adquire uma
ojeriza dele “que esmolara minha desgraça
e baboseara inventando aquilo do Rebimba, o bom, me enganando, nas muitas
imaginações”.
O tio morre, deixa dívidas, quando o personagem
esperava herdar: “a gente ia quebrar
falência, tive de ver o avesso. A verdade me adoeceu”. A surpresa da
realidade decepcionante o torna doente, ao ter que, de novo, bordejar a
miséria. “Me lembrei da miséria,
prostrado.”
Como defesa, acionou o engrama que o Daça lhe havia
bem internalizado, lembrando-se súbito:
“Mas, o bom,
Rebimba! Maiormente, o melhor, em caso qualquer que ele havia de me valer, eu
soubesse, demorando o pensamento. Já valente me levantei, desassustado, achei a
tramontana.”
O Daça, caduco, revela-se incapaz de esclarecer sobre
os ondes, os quês e os quandos de Rebimba. “A
gente quer mas não consegue furtar no peso da vida”. Morre o Daça. Tempos
depois, próspero e idoso, outra perda:
“por primeira vez ela me iludiu, fiquei viúvo. Esse foi o sofrimento. Para o
que assim, nem Rebimba, o bom, tinha socorro: o querido consoante o perdido. Eu
acabei, de certo modo.”
Vivencia o luto por todos seus mortos e, tipicamente,
melancolicamente, sente que está em falta para com eles: “para eles, todos, eu não tinha sido eu, devidamente, não pagara o bem
com o bem, bastante”.
Mas prosseguiu adiante, viajou: “duro o caminho que era obrigação”. Um dia, num arraial, o
Rio-do-Peixe, ouve grave música e “procissão
de gente caminhando”. Procura se inteirar de que se trata: “se enterrava Rebimba, o bom, pessoa
qualificada!”
Então ele existira! O Daça não havia mentido: O tempo
todo Rebimba, o bom exercera, fiel e pesado, seu doce papel de proteção. Ele
vivera sob as asas de um anjo da guarda. Agora, ali a surpresa do mundo, a
feliz coincidência constatação veraz do dito do Daça. “Ele estava público, guardado no caixão. Descobri a cabeça, acompanhei, também,
por tudo solucei, eu, endoençamingas.”
O povo ria e chorava “por aquele homem ter havido e existido”. “Só ele era bom, protetor de
quem e quantos, da melhor sagacidade”. “Porque envelheci, a vida não me puxa
mais a orelha. Com certeza, o mundo hoje está em paz. Repenso em Rebimba, o bom, valedor. O mal não tem
miolo.”
A forte imagem de Rebimba, o bom – estranho
desconhecido nunca visto, funcionou como valioso estímulo para que o anônimo
personagem saísse de seu desvalimento e, mais tarde, após a morte do tio
Quinjoca, despertasse logo suas forças para vencer o falimento.
Uma figura de bondade internalizada e estabilizada é
absolutamente essencial para que não nos desesperemos diante das reviravoltas e
das misérias da vida. Na verdade, trata-se de um objeto do self que funciona como uma extensão dele, um self- objeto. Chama-se assim um objeto, uma alteridade externa ao self, mas com o qual este mantém tal
relação de intimidade e de desfrute que o objeto funciona como uma extensão, um
atributo que amplia a função e poderio egóico. Tais são as características da
relação de apego: um e outro – Self e objeto – se articulam, um
completando e potenciando o outro, dando forte provedoria, amplo amparo e
perfeito valimento, em todo tempo.
John Bowlby mostra como o comportamento de apego
desempenha um papel vital na vida do homem(2).
Quando o mundo das relações objetais se torna muito
decepcionante, como no caso deste conto de Tutaméia,
é natural a reativação do comportamento de apego. Este consiste num forte vínculo
afetivo que se dá entre um ser humano inerme, indefeso ou desamparado, e outro
que se oferece com disponibilidade e bondade, afetivo, dando proteção, cuidados
e valimento. O segundo funcionando como uma figura materna, que protege dos
perigos internos e dos predadores externos. E que, além disso, sustenta a
indefensão do carente ao longo do tempo que for necessário. E que, também,
propicia satisfação de suas necessidades biológicas, afetivas e sobretudo,
imaginárias.
O comportamento de apego propicia uma matriz na qual o
sujeito em derrelicção recupera a esperança no porvir, supera o mal-estar
decorrente do desamparo, até voltar a sentir os fluxos internos das coragens e
das atitudes que o impelem adiante. Confere a quem o usufrui a possibilidade de
aprender com o outro várias atividades necessárias à sobrevivência. A cada
pequeno desempenho feito, a cada tarefa bem realizada, na qual se usou
capacidade de discriminação, em que se fizeram opções e se recortaram caminhos,
tem-se ampliada a capacidade para enfrentar desafios mais complexos, na medida
em que “cada resposta correta for premiada com diversas manifestações de
aprovação social”(3).
O comportamento de apego é um fortíssimo vínculo
primitivo, cuja função consiste em impedir que o aparelho psíquico do sujeito
se desorganize diante do ataque do sabotador interno. A figura de apego traz
suprimentos que calam as necessidades biológicas, ao mesmo tempo que propicia
reforço ao self
e tranquilização. É
dessa forma que o humano ampara e reproduz o humano. Esse é o equipamento
comportamental que protege o ser humano em seus momentos de extremo desamparo
em face dos seus predadores – antes, mais provenientes do mundo externo; hoje,
mais comumente provenientes dos escambos sombrios do mundo interno. Ele é tão
importante quanto o equipamento que leva à nutrição ou à reprodução.
A capacidade
de apego não existe ao nascer. Ela se desenvolve a partir de seis meses de
idade da criança, atinge seu auge por volta dos três anos e permanece como uma
condição humana a ser preservada, de forma cada vez mais sutil e refinada, ao
longo da vida. É ela responsável pela catexia de objeto e pela capacidade de
formar vínculos conjugais, familiares, de amizade e convivênciais.
Nesse conto, vimos a progressiva e constante
destituição do ser so personagem, o que o leva a desistir por completo de si: “ia me ficar jazido ali, eu não era para
como viver, não sabia”.
No entanto, as necessidades biológicas se insurgem,
imperativas. Uma figura de bondade vem dar provimento: o Daça. Temeroso, porém,
não assumiu por inteiro o caso. Lá para o futuro, apelou para a figura de
Rebimba, como um senhor poderoso e valedor em qualquer circunstância. Tão bem o
Daça falou, melhor foi ouvido. Fez-se a junção da carência com o suprimento
imediato dela por parte do Daça e criou-se, no espaço psíquico interno do
sujeito, um Sself-objeto-forte-provedor.
Um Self –objeto dotado de uma “bondade que não piscava”. Inteiramente
confiável. Sarou. Trabalhou. Encontrou o tio. Casou com a filha do Daça. Os
anos passam, ele, “defeito de maldades”
tinha em Cilda aquela que “arredava de
mim o que de nosso canto não fizesse parte, os pontos da inquietação”.
Fez-se homem, cidadão respeitado.
Lentamente, porém, descreu daquilo que o Daça lhe
dissera. Julgou-se enganado.
De novo, a vida dá voltas e lhe aplica um novo golpe,
que o derruba nas fímbrias da miséria. Como tem internalizado o self-objeto protetor bem estabilizado,
ele o aciona: O bom, Rebimba! Imediatamente lhe valeu. “Já valente me levantei, desassustado, achei a tramontana.”
A vida transcorre e, um dia, acontece a bela
coincidência. Essa incrível capacidade de a realidade externa coincidir,
empatar e concluir com a realidade interna, confirmando-a. Houvera Rebimba, o
bom! E agora estava ali, jazido, na mais plena indefensão, recebendo os risos,
os choros e os cuidados de todos. Era hora de o personagem pagar ao bom Rebimba
um pouco daquilo tudo que – imaginariamente – lhe devia. De tudo, concluiu que
o mal, havendo sim, em si, é oco, não tem miolo. Pois um elemento de bondade
humana prevalece, valedor.
O acaso: num lugar, sem nenhuma intensão, se fazia a
procissão de enterro e era de Rebimba, o bom. Ele existira! Não era, pois,
invenção do Daça. Então, todo o tempo, existira, disponível, a figura humana de
bondade e de ajuda. Aquele falecimento assegurava, no paradoxal, a
possibilidade de confiança no gênero humano, diante do desamparo brutal. Sua
elevada figura fora bastante para sustentar o personagem em seu inseguro ser. “Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de
vassalar”(4).
Para João Guimarães Rosa, os seres que dão vida a seus
personagens são seres incompletos. Ele sabia que, raramente, o ser humano se
desenvolve harmonicamente em todas as suas vertentes. Permanecem áreas
sombreadas, potenciais, não evoluídas, partes torvas da alma. À espreita de
condições mais favoráveis para virem à luz. Os humanos constituem-se ao arreveso
do acaso, sob o influxo da sorte ou da desgraça, no trêfego lance das coisas
acontecidas sem nenhum preparo. Rosa erigiu sua obra tratando das crianças, dos
cegos, dos aleijados, dos temulentos, do anão, do leproso, dos loucos, das
prostitutas, dos jagunços – seres marginalizados na sociedade oficial, sem
acesso à plena cidadania.
Seus personagens são pessoas comuns que vão vivendo
seu cerzidinho miúdo até que lhes acontece algo que tem o poder de transformar
seu corriqueiro cotidiano num “causo”,
ou numa estória exemplar. O que acontece inaugura sempre algo da ordem do
espantoso, que se impõe, exigindo mudança em suas vidas e impelindo-os a
desenvolver um repertório que, até então, eles não tinham ativado. A mais
freqüente emoção despertada é o medo. Puro ou misturado. Medo, o nome próprio
do demo. Os dois dão par, são anagramáticos. Medo/demo são, também, a
impaciência, o desconhecimento, a estupidez e, sobretudo, o vazio que acomete
os personagens no instante em que estes são solicitados a estugar as providências
que a vida lhes impõe. Diante do acontecimento, do fato veramente acontecido, o
ser é colocado, à revelia de sua vontade, na encruzilhada que permite só quatro
soluções. Ou se paralisa, de medo congelado, diante do impasse, ou foge
correndo para trás, vencido. Pode, ainda, fazer uma escolha má e seguir uma
senda errada, ou escolher se se ultrapassa, pertrilhando o caminho da expansão
de sua estuância. Não pode, não convém, é permanecer na vacilação da
não-resposta, pois Rosa nos ensinou que: “A
mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói,
mói”(5).
O fato, o evento, abre a perspectiva de o ser
vir-a-ser cada vez mais. Ou, ao contrário, lança-o no inferno maldito do não
bem conformado, reino ctônico dos monstrosmedonhos, lugar onde habitam os
escuros e fechados hermógenes.
A obra rosiana pode ser lida como um inquestionável
cabedal de modos e de prescrições de como se lidar com tantas espécies de medo(6).
Sabe-se que algumas formas formidáveis de medo
(angústia de aniquilação, angústia impensável) são, em certas circunstâncias
especiais de vulnerabilidade do ser, fortes bastantes para desencarrilhar o
curso da trama histórico-vital do sujeito, arremessando-o para o campo da
loucura. Esta é sempre uma possibilidade aberta ao ser humano, impactado diante
da brutalidade com que, eventualmente, o trata a realidade. Diante da dimensão
telúrica, insondável, numinosa, que configura o contato com a desrazão, o homem
enlouquece. A loucura se caracteriza por ser um tipo específico de
desrazoamento, no qual comparecem os sintomas de primeira ordem da
psicotização: pensar em voz alta; ouvir vozes que dialogam entre si ou que
acompanham a própria atividade com comentários, frequentemente
autorecriminativas; vivenciar o estar sofrendo influências estranhas, externas,
sobre o próprio corpo; fuga, roubo ou leitura do próprio pensamento; sentir-se
comandado pelo outro; não reconhecer sua vontade, sua ação, seu sentimento ou
pensamento como sendo próprios. Esses sintomas de primeira ordem que
caracterizam a psicose esquizofrênica, são acompanhados de sutis ou
devastadores fenômenos, tais como a dissolução dos limites entre o eu e o mundo
exterior; a perda do sentimento da unidade do eu (que se estilhaça em múltiplos
eus); a perda da identidade do eu, que chega a se estranhar e a se desconhecer;
a alteração da consciência da atividade do eu, sob a forma de sofrer fenômenos
psíquicos impostos, de possessão por seres ou entidades, e ainda vivências de
despersonalização.
Na psicose, há uma brusca separação das partes
cindidas do eu – parte boa, parte má e parte preservada, pelo menos – numa
esquizose típica. Uma parte do eu fica ligada à realidade consuetundinária,
mas, em grande parte, esvaziada de atenção e de afeto, vindo a se constituir naquela
parte da personalidade do louco que mantém a razoável sociabilidade; outra
parte, aquela que enlouquece, é a que costuma receber os maiores e melhores
influxos pulsionais, que a tornam tesa e prevalecente. A parte que permanece
indene diligencia em tentar, de qualquer forma, manter uma ligação – cada vez
mais esticada, mais distanciada – entre as duas outras partes, navegando
simultaneamente em dois barcos.
Aquilo que enlouquece origina-se de uma percepção
alterada, partícipe de um novo registro que se imiscuiu no aparelho psíquico.
Essa percepção delirante faz uma nova – psicótica – leitura da realidade, que
funciona como o grão e ponto de partida do qual se erige um sistema completo de
crença. O psicótico cria, assim, no seu espaço psíquico, um novo mundo pessoal,
intransferível, que será por ele habitado. É um mundo que traz a chancela do
delírio, da alucinação e da conduta psicótica, fundamente ancorada no
solipsismo narcisista. O louco funciona de maneira típica e específica, frente
à maldade e à desrazão que há no mundo e na vida. Quase sempre, o individuo
psicotiza pelo fato de ter estado exposto – brutal e insuportavelmente – à
sanha da maldade e da falta de lógica da existência. Ela – a loucura – funciona
como um estranho atrator que declara a insuficiência e a falência da cadeia
significante em tentar dar alguma ordem aos diasparagamos estúpidos,
avassaladores, da realidade. O individuo sofre uma inundação de conteúdos
psíquicos pulsionais e representacionais que estouraram o estreito canal da cadeia
significante, extravasada para todos os lados. Para: ao lado. Paranóia. Uma
nova mentação, lateral. O significante descarrilha, “despiroca” e, louco, cria
uma outra máquina de escritura, que tentará dar conta do inundado, da melhor
maneira possível: psicótica embora. Quase sempre a enchente da loucura é
precedida por sinais claros. Há um período de expectativa angustiosa,
crescente, como aquele que sente o ator pouco antes de entrar em cena: trema. Há um humor disfórico, estranho,
esquisito, meio alegre, meio tolo, muito apreensivo, algo abrupto e irritado: esquizoforia. Também chamado de humor delirante. Os três são sinônimos.
Dão conta de expressar a angústia de aniquilação que invade o homem, colocado
diante da situação-limite da derrelicção e da insegurança ôntica.
Por algum motivo ignoto, a loucura é uma possibilidade
aberta e utilizada por apenas 1% da humanidade.
Os bons autores dizem que, na psicose, há um
desgarramento da continuidade histórica significativa da vida do sujeito,
ocorrendo, simultaneamente, uma quebra da ordenação estrutural de sua vida
psíquica e o conseqüente aparecimento de novas formas vivenciais “monstruosas”, “loucas”, psicóticas, impostas de fora ou pelo outro.
Há dois contos em Primeiras Estórias(7) , nos quais
João Guimarães Rosa aborda a loucura.
Em “Darandina”, um cidadão “provisoriamente impoluto” arremessa-se pela praça diante do
Instituto – onde, talvez, o jovem Rosa estava interno, de plantão, rouba uma
caneta de um transeunte e arremete vestido, de sapato, encarapitando-se numa
palmeira-real. Não havia fugido do Instituto; era um louco novo, público. Ele,
lá em cima, tonitroava. “Disse que era
são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais
tresloucar-se inventara a decisão de se internar, voluntário...”
Pressentira a eclosão da loucura, sofrera o trema e arquitetara sua defesa
pessoal; mas, já tresloucado pelo delírio, começa a comportar-se de maneira
inusitada: “assim, quando a coisa se
varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e
defesa, que, à maioria, cá fora, viriam a fazer falta...”
A coerência lógica de seu raciocínio é inacatável.
Mesmo a veracidade de suas afirmações é plenamente aceitável, como metáfora.
Apenas a premissa inicial é falsa, forçada: a humanidade não estava mais
enlouquecida do que sempre foi. O que nela viu não passa da projeção das
cadentes perturbações que estavam em franca erupção dentro de seu aparelho
psíquico. O que ele dizia – “Vocês me
sabem é de mentira!” – é, a um só tempo, verdade verdadeira e pura loucura:
distúrbio da identidade do eu. A grande questão que se coloca a todos –
narrador, povo, autoridades – é “como o
recapturar?”
O que o louco grita é pura verdade, ambígua – “Viver é impossível!...” O talvez
interno João Guimarães Rosa concorda com o louco: “Fato, fato, a vida se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu.
Então, ingente, universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é o
que sempre há, a fundo, de fato.”
Colocado no píncaro da dúvida quanto à existência,
refugiado na insana e insegura folhagem da palmeira, por pura determinação
psicótica e tonicidade catatônica, o tresloucado, identificado como sendo o
Secretário das Finanças Públicas, se recusa a descer de lá. Só um milagre pode
salvá-lo. A turba agitada, antegozando sua queda. Depois de muito rebuliço e de
oficiais providências ineficazes, súbito, o até então inacessível homem gritou:
“Socorro!...” De repente, as
circunvoluções frouxas da lucidez psicótica cederam passagem aos circuitos
entoados da lucidez sadia e o nosso homem, agora nu e indigitado um qualquer,
deparou com a precariedade de sua humana condição.
“A precisão de viver vencia-o.”
Um dos psiquiatras do Instituto é o Dr. Bilôlo, que
concluiu, lapidar, o que se vivera naquele dia – “A vida é constante, progressivo desconhecimento...” Bilôlo tem a
ver com abilolado: amalucado, apaixonado. O outro psiquiatra é o Dr. Dartanhã,
que troca espadas com o Sr. diretor. O louco é chamado de psiquiartista:
totalmente correto. Uma palavra-porta-palavra para dar conta da criatividade da
loucura. “Tem arte...”
“Endemoninhado...”, dele dissera, cheio de admiração, o Capelão do
Instituto.
Não descobri o que significa Darandina. Paulo Dantas,
amigo e correspondente de Rosa, também não o sabe. E, como Rosa nos ensinou,
nome é posse.
“A vida era à
hora...”
Em 28 de março de 2007, no entanto descobri que
Guimarães Rosa cometera uma figura de linguagem que se chama epizeuxe, uma vez
que no final do primeiro parágrafo de Darandina ele revela o sentido da palavra:
chinfrim, afã e lufa-lufa. Tem ainda, o sentido que azáfama, pressa, confusão,
furrupa, rififi, baderna, desordem.
“Sorôco, sua
mãe, sua filha” é um dos
mais pungentes contos de Guimarães Rosa. Convivendo, há anos, com duas loucas –
a mãe, demenciada de psicose senil, esvaziada, e a filha, de esquizofrenia
hebefrênica -, Sorôco chega ao ponto de não mais suportar a situação e busca
ajuda. O carro especial de transportar doidos viera para buscar as duas. Estava
num desvio, na estação. O povo, curioso e condoído, esperava viessem os três.
Chegam à estação. Dali, as duas iriam para Barbacena. “Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais.”
A moça começou a cantar uma cantiga que “não vigorava certa, nem no tom nem no
se-dizer das palavras – o nenhum”. A velha começou a cantar também. Aquela
chirimia (pavana, cantilena, canto monótono) triste, comovente.
O trem partiu. Sorôco foi voltando para casa, sob o
silencioso respeito da comunidade. “De
repente, todos gostavam demais de Sorôco”. “Mas, parou. Em tanto que se
esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser.” “Num rompido-ele
começou a cantar, alterado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga,
mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado.”
Todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram
também a acompanhar aquele canto sem razão.
“A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente,
como ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.”
Essa cena tão comum, do trem de ferro levando os
loucos para os manicômios de Barbacena, onde morriam quase à míngua, aos
milhares, cedo ou tarde: para sempre. A loucura era incurável até 1960/1965.
Isso (quase) acabou com o advento do Haloperidol, bendito seja!
Sorôco tem, no nome, a rouquidão e a aspereza daquele
que está destinado a lidar “no oco sem beiras” da loucura. Tinha cuidado por
demais das duas, “exemploso”. Antes de se desesperar, pedira providências.
Viera o belo carro – “invento de muita distância, sem piedade nenhuma”. A pura
providência fria, estatal, irremissível: sem o calor humano. Cumpriu-se a roda
do destino. Mas as duas, as loucas, que foram para nunca mais, deixaram no
tronco da família – em Sorôco – aquela cantiga. Ameaçado de enlouquecer como
elas, ele entoa o canto delas: deixa-se possuir por aquela parte da loucura das
duas mulheres queridas, num entôo de melancolia em purgação. A solidariedade do
povo ajuda o processo de luto de Sorôco. E todos se deixam possuir pela loucura
das duas, prestando homenagem a elas e a Sorôco. É toda a comunidade que
vivencia a loucura, cantando a chirimia delas junto com Sorôco. A solidariedade
comunitária e a sensibilidade empática participativa são antídotos eficazes
contra o enlouquecimento.
Referências.
BAGGIO,
Marco Aurélio. O processo incessante de
constituição da identidade de Riobaldo.
Belo Horizonte: 1986.
BOWBLY,
John. Apego. São Paulo: Martins
Fontes, 1984.
ROSA,
João Guimarães. Grande sertão: veredas.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
__________.
Primeiras estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
__________.
Tutaméia: terceiras estórias. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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