terça-feira, 26 de março de 2013

Apego e loucura em João Guimarães Rosa


Apego e loucura em João Guimarães Rosa

                                                                 

                                                                           Marco Aurélio Baggio

 

         “...para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha...”

                                                      O burrinho pedrês, Sagarana, p.34.

 

 

Em “O burrinho pedrês”, de Sagarana, João Guimarães Rosa aborda, pela primeira vez em sua obra, o tema do apego. João Manico conta a história dos bois que, com seô Major Saulino, foram buscar “para trás dos Goiás...”. Boiada ruim, arisca, saudosa de sua querência. Junto veio menino pretinho. “E, aquilo, ele chorava, sem parar, e de um sentir que fazia pena...” E o menino chorava e implorava, queria voltar ao de onde tinha vindo. “Eu só queria poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no rancho de minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!”. Dias de viagem, o menino chorando, o gado berrando, aquela tristeza. Uma noite o negrinho pegou a cantar uma cantiga judiada. Extremados, os vaqueiros dormiram. De manhã, o gado desaparecera. Estourara, pisoteara o Aristides e o Octaviano, vaqueiros encarregados de tomar conta.

“- E, mas a pior de todas é a arrancada do gado triste, querendo a querência... boi apaixonado, que desamana, vira fera... Saudade em boi, eu acho que ainda dói mais do que na gente...”

E o pretinho sumira.

É com essa história dentro da história de “O burrinho pedrês”, primeiro conto de seu primeiro livro, que Rosa aborda o tema do desapego brusco, com a forte carga de tristeza que ocasiona, o desconsolo que traz e as trágicas conseqüências que acarreta ao destino do sujeito.

Em “Sinhá secada”, de Tutaméia(1), Rosa trata do tema sob o ângulo estritamente humano. A Senhora que procedera mal fora separada, sob força de lei, a mando do marido, de seu filho, abaixo de ano, que “requeria seus afagos”. A dor da separação devastara a Sinhá. Em três dias, desamparada, soluçante, tornara-se espectro de si mesma: “era a sã clara coisa extraordinária – o contrário da loucura”. Isolada de todos. Somente a boa preta Quibia abordou-a, gentil, respeitosa – “Sinhá...” – e lhe deu alimento. E lhe ofereceu rumo e curso. Foram dali, do Curvelo, para a fábrica de tecidos de Marzagão. Sinhá torna-se diligente operária. Adiara de ser. A ferida da brusca ruptura, porém, jamais cicatrizava: “Nem um ingrato minuto da arrancada separação poderiam restituir-lhe!”. Passava espaços era acarinhado pedaço de pedra, sem graça, áspera, que trouxera para casa, até que, um dia, apareceu-lhe um moço que caçava “o paradeiro de sua mãe, da qual também malvadamente separado desde meninozinho”. Não era ela. “Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou para aquele, abençoando-o, pegou a mão do tristinho moço, real, agora assim mesmo um tanto conformado. Sorria, a Sinhá...”

Sinhá recobra a alegria a adquire novos olhos. Por uns poucos dias. Morre logo a seguir.

Sua amiga Quibia decide empreender pesquisa sobre o paradeiro do menino. Morrera, “adoecido logo no depois do desalmoso dia, dos esforços arrebatados”. “Quibia relanceou – o passado, de repente movente, sem desperdícios. Se curvou, beijando ali mesmo o chão, e reconhecendo: ‘ – Sinhá Sarada...”

A maldade da ruptura brusca da relação de apego entre mãe e filho, motivada por mero aspecto legalista, fora fatal para o rebento, inerme e infante, e, além disso, secara a seiva da vida de Sinhá. Desistida de ser, fora acolhida pela bondade singela da preta Quibia. Os anos passam. Um dia, o acontecimento. O ímpeto da procura do moço moreno quebra o gelo e, de alguma forma, instila alegria nos olhos até então empanados, encardidos, e injeta vitalidade no corpo de Sinhá. Pode, então, renascida, após alguns dias, morrer em boa paz. À amiga e confidente, coube a tarefa de revolver o passado, reatando os nós da memória dos fatos, consertando, retroativamente, o malfeito. Quibia recupera e limpa o passado de Sinhá. Satisfeita, constata sua tarefa concluída. Depois de morta, ela, a Sinhá, podia  descansar, sarada...

Belíssimo exemplo de como o acaso machuca a existência humana por um lado; por outro, de como pode obrar a ascese e a edificação humanas, possibilitando a recuperação do germe da alegria num corpo minado pela amargura. Mostra, também, como se dá a recuperação da gã da alegria num corpo impregnado pela tristeza. Exemplifica, ainda, como a recuperação da trama da memória pode fazer sarar uma dor profunda, na medida em que muda todo o sentido inicial da história.

A estupidez e a brutalidade da existência humana só podem ser amortecidas e amenizadas pela bondade, pela solidariedade e pela sensibilidade de um ser de alta qualidade, como a preta Quibia. Gente.

 

Pois é em hora de soberbo desamparo, quando alguém constata que “o mundo não dá a ninguém inocência nem garantia” e quando se sente que “a fome começa, necessidades, profundo o corpo mesmo é incômodo, o viver vem é assim”, que a ajuda do Daça oferece o alívio imediato, para a mera sobrevivência. Para a precisão de mais longo tempo, o Daça instila nos ouvidos a imagem forte da solidariedade “porque um homem havia, que ajudava geral”. Um vislumbre de esperança é introjetado naquele que, resolvido. “ia me ficar jazido ali, eu não era para como viver, não sabia.”

Nisso o Daça falou “que se podia ter amparo e concerto, por um Rebimba, o bom parado em seu lugar, a-pique alto, no termo de estiradas léguas”. Só disso saber “alegria me conciliou, dito que os olhos ora me brilhavam. Saí, do frio para o quente, levantado sarado”.

O personagem começa a trabalhar; encontra, por acaso, seu tio procurado, de nome não Joaquim José mas Aquino Jacques: “Se não me achasse, não me via, se não me visse não me achava”.

E, assim, a vida é levada: “esqueci,de tudo, muito; conforme o encargo da natureza”.

Casa-se com Cilda, a filha de Daça. Mais adquire uma ojeriza dele “que esmolara minha desgraça e baboseara inventando aquilo do Rebimba, o bom, me enganando, nas muitas imaginações”.

O tio morre, deixa dívidas, quando o personagem esperava herdar: “a gente ia quebrar falência, tive de ver o avesso. A verdade me adoeceu”. A surpresa da realidade decepcionante o torna doente, ao ter que, de novo, bordejar a miséria. “Me lembrei da miséria, prostrado.”

Como defesa, acionou o engrama que o Daça lhe havia bem internalizado, lembrando-se súbito:

“Mas, o bom, Rebimba! Maiormente, o melhor, em caso qualquer que ele havia de me valer, eu soubesse, demorando o pensamento. Já valente me levantei, desassustado, achei a tramontana.”

O Daça, caduco, revela-se incapaz de esclarecer sobre os ondes, os quês e os quandos de Rebimba. “A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida”. Morre o Daça. Tempos depois, próspero e idoso, outra perda: “por primeira vez ela me iludiu, fiquei viúvo. Esse foi o sofrimento. Para o que assim, nem Rebimba, o bom, tinha socorro: o querido consoante o perdido. Eu acabei, de certo modo.”

Vivencia o luto por todos seus mortos e, tipicamente, melancolicamente, sente que está em falta para com eles: “para eles, todos, eu não tinha sido eu, devidamente, não pagara o bem com o bem, bastante”.

Mas prosseguiu adiante, viajou: “duro o caminho que era obrigação”. Um dia, num arraial, o Rio-do-Peixe, ouve grave música e “procissão de gente caminhando”. Procura se inteirar de que se trata: “se enterrava Rebimba, o bom, pessoa qualificada!

Então ele existira! O Daça não havia mentido: O tempo todo Rebimba, o bom exercera, fiel e pesado, seu doce papel de proteção. Ele vivera sob as asas de um anjo da guarda. Agora, ali a surpresa do mundo, a feliz coincidência constatação veraz do dito do Daça. “Ele estava público, guardado no caixão. Descobri a cabeça, acompanhei, também, por tudo solucei, eu, endoençamingas.”

O povo ria e chorava “por aquele homem ter havido e existido”. “Só ele era bom, protetor de quem e quantos, da melhor sagacidade”. “Porque envelheci, a vida não me puxa mais a orelha. Com certeza, o mundo hoje está em paz. Repenso em  Rebimba, o bom, valedor. O mal não tem miolo.”

A forte imagem de Rebimba, o bom – estranho desconhecido nunca visto, funcionou como valioso estímulo para que o anônimo personagem saísse de seu desvalimento e, mais tarde, após a morte do tio Quinjoca, despertasse logo suas forças para vencer o falimento.

Uma figura de bondade internalizada e estabilizada é absolutamente essencial para que não nos desesperemos diante das reviravoltas e das misérias da vida. Na verdade, trata-se de um objeto do self que funciona como uma extensão dele, um self- objeto. Chama-se assim um objeto, uma alteridade externa ao self, mas com o qual este mantém tal relação de intimidade e de desfrute que o objeto funciona como uma extensão, um atributo que amplia a função e poderio egóico. Tais são as características da relação de apego: um e outro – Self e objeto – se articulam, um completando e potenciando o outro, dando forte provedoria, amplo amparo e perfeito valimento, em todo tempo.

John Bowlby mostra como o comportamento de apego desempenha um papel vital na vida do homem(2).

Quando o mundo das relações objetais se torna muito decepcionante, como no caso deste conto de Tutaméia, é natural a reativação do comportamento de apego. Este consiste num forte vínculo afetivo que se dá entre um ser humano inerme, indefeso ou desamparado, e outro que se oferece com disponibilidade e bondade, afetivo, dando proteção, cuidados e valimento. O segundo funcionando como uma figura materna, que protege dos perigos internos e dos predadores externos. E que, além disso, sustenta a indefensão do carente ao longo do tempo que for necessário. E que, também, propicia satisfação de suas necessidades biológicas, afetivas e sobretudo, imaginárias.

O comportamento de apego propicia uma matriz na qual o sujeito em derrelicção recupera a esperança no porvir, supera o mal-estar decorrente do desamparo, até voltar a sentir os fluxos internos das coragens e das atitudes que o impelem adiante. Confere a quem o usufrui a possibilidade de aprender com o outro várias atividades necessárias à sobrevivência. A cada pequeno desempenho feito, a cada tarefa bem realizada, na qual se usou capacidade de discriminação, em que se fizeram opções e se recortaram caminhos, tem-se ampliada a capacidade para enfrentar desafios mais complexos, na medida em que “cada resposta correta for premiada com diversas manifestações de aprovação social”(3).

 

O comportamento de apego é um fortíssimo vínculo primitivo, cuja função consiste em impedir que o aparelho psíquico do sujeito se desorganize diante do ataque do sabotador interno. A figura de apego traz suprimentos que calam as necessidades biológicas, ao mesmo tempo que propicia reforço ao self e bondade, afetivo, dando proteçefeso ou desamparado, e outro que se oferece com disponabilidade valimento, em todo tempo.

 a p e tranquilização. É dessa forma que o humano ampara e reproduz o humano. Esse é o equipamento comportamental que protege o ser humano em seus momentos de extremo desamparo em face dos seus predadores – antes, mais provenientes do mundo externo; hoje, mais comumente provenientes dos escambos sombrios do mundo interno. Ele é tão importante quanto o equipamento que leva à nutrição ou à reprodução.

 A capacidade de apego não existe ao nascer. Ela se desenvolve a partir de seis meses de idade da criança, atinge seu auge por volta dos três anos e permanece como uma condição humana a ser preservada, de forma cada vez mais sutil e refinada, ao longo da vida. É ela responsável pela catexia de objeto e pela capacidade de formar vínculos conjugais, familiares, de amizade e convivênciais.

Nesse conto, vimos a progressiva e constante destituição do ser so personagem, o que o leva a desistir por completo de si: “ia me ficar jazido ali, eu não era para como viver, não sabia”.  

No entanto, as necessidades biológicas se insurgem, imperativas. Uma figura de bondade vem dar provimento: o Daça. Temeroso, porém, não assumiu por inteiro o caso. Lá para o futuro, apelou para a figura de Rebimba, como um senhor poderoso e valedor em qualquer circunstância. Tão bem o Daça falou, melhor foi ouvido. Fez-se a junção da carência com o suprimento imediato dela por parte do Daça e criou-se, no espaço psíquico interno do sujeito, um Sself-objeto-forte-provedor. Um Self –objeto dotado de uma “bondade que não piscava”. Inteiramente confiável. Sarou. Trabalhou. Encontrou o tio. Casou com a filha do Daça. Os anos passam, ele, “defeito de maldades” tinha em Cilda aquela que “arredava de mim o que de nosso canto não fizesse parte, os pontos da inquietação”. Fez-se homem, cidadão respeitado.

Lentamente, porém, descreu daquilo que o Daça lhe dissera. Julgou-se enganado.

De novo, a vida dá voltas e lhe aplica um novo golpe, que o derruba nas fímbrias da miséria. Como tem internalizado o self-objeto protetor bem estabilizado, ele o aciona: O bom, Rebimba! Imediatamente lhe valeu. “Já valente me levantei, desassustado, achei a tramontana.”

A vida transcorre e, um dia, acontece a bela coincidência. Essa incrível capacidade de a realidade externa coincidir, empatar e concluir com a realidade interna, confirmando-a. Houvera Rebimba, o bom! E agora estava ali, jazido, na mais plena indefensão, recebendo os risos, os choros e os cuidados de todos. Era hora de o personagem pagar ao bom Rebimba um pouco daquilo tudo que – imaginariamente – lhe devia. De tudo, concluiu que o mal, havendo sim, em si, é oco, não tem miolo. Pois um elemento de bondade humana prevalece, valedor.

O acaso: num lugar, sem nenhuma intensão, se fazia a procissão de enterro e era de Rebimba, o bom. Ele existira! Não era, pois, invenção do Daça. Então, todo o tempo, existira, disponível, a figura humana de bondade e de ajuda. Aquele falecimento assegurava, no paradoxal, a possibilidade de confiança no gênero humano, diante do desamparo brutal. Sua elevada figura fora bastante para sustentar o personagem em seu inseguro ser. “Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar”(4).

 

Para João Guimarães Rosa, os seres que dão vida a seus personagens são seres incompletos. Ele sabia que, raramente, o ser humano se desenvolve harmonicamente em todas as suas vertentes. Permanecem áreas sombreadas, potenciais, não evoluídas, partes torvas da alma. À espreita de condições mais favoráveis para virem à luz. Os humanos constituem-se ao arreveso do acaso, sob o influxo da sorte ou da desgraça, no trêfego lance das coisas acontecidas sem nenhum preparo. Rosa erigiu sua obra tratando das crianças, dos cegos, dos aleijados, dos temulentos, do anão, do leproso, dos loucos, das prostitutas, dos jagunços – seres marginalizados na sociedade oficial, sem acesso à plena cidadania.

Seus personagens são pessoas comuns que vão vivendo seu cerzidinho miúdo até que lhes acontece algo que tem o poder de transformar seu corriqueiro cotidiano num “causo”, ou numa estória exemplar. O que acontece inaugura sempre algo da ordem do espantoso, que se impõe, exigindo mudança em suas vidas e impelindo-os a desenvolver um repertório que, até então, eles não tinham ativado. A mais freqüente emoção despertada é o medo. Puro ou misturado. Medo, o nome próprio do demo. Os dois dão par, são anagramáticos. Medo/demo são, também, a impaciência, o desconhecimento, a estupidez e, sobretudo, o vazio que acomete os personagens no instante em que estes são solicitados a estugar as providências que a vida lhes impõe. Diante do acontecimento, do fato veramente acontecido, o ser é colocado, à revelia de sua vontade, na encruzilhada que permite só quatro soluções. Ou se paralisa, de medo congelado, diante do impasse, ou foge correndo para trás, vencido. Pode, ainda, fazer uma escolha má e seguir uma senda errada, ou escolher se se ultrapassa, pertrilhando o caminho da expansão de sua estuância. Não pode, não convém, é permanecer na vacilação da não-resposta, pois Rosa nos ensinou que: “A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói”(5).

O fato, o evento, abre a perspectiva de o ser vir-a-ser cada vez mais. Ou, ao contrário, lança-o no inferno maldito do não bem conformado, reino ctônico dos monstrosmedonhos, lugar onde habitam os escuros e fechados hermógenes.

A obra rosiana pode ser lida como um inquestionável cabedal de modos e de prescrições de como se lidar com tantas espécies de medo(6).

Sabe-se que algumas formas formidáveis de medo (angústia de aniquilação, angústia impensável) são, em certas circunstâncias especiais de vulnerabilidade do ser, fortes bastantes para desencarrilhar o curso da trama histórico-vital do sujeito, arremessando-o para o campo da loucura. Esta é sempre uma possibilidade aberta ao ser humano, impactado diante da brutalidade com que, eventualmente, o trata a realidade. Diante da dimensão telúrica, insondável, numinosa, que configura o contato com a desrazão, o homem enlouquece. A loucura se caracteriza por ser um tipo específico de desrazoamento, no qual comparecem os sintomas de primeira ordem da psicotização: pensar em voz alta; ouvir vozes que dialogam entre si ou que acompanham a própria atividade com comentários, frequentemente autorecriminativas; vivenciar o estar sofrendo influências estranhas, externas, sobre o próprio corpo; fuga, roubo ou leitura do próprio pensamento; sentir-se comandado pelo outro; não reconhecer sua vontade, sua ação, seu sentimento ou pensamento como sendo próprios. Esses sintomas de primeira ordem que caracterizam a psicose esquizofrênica, são acompanhados de sutis ou devastadores fenômenos, tais como a dissolução dos limites entre o eu e o mundo exterior; a perda do sentimento da unidade do eu (que se estilhaça em múltiplos eus); a perda da identidade do eu, que chega a se estranhar e a se desconhecer; a alteração da consciência da atividade do eu, sob a forma de sofrer fenômenos psíquicos impostos, de possessão por seres ou entidades, e ainda vivências de despersonalização.

Na psicose, há uma brusca separação das partes cindidas do eu – parte boa, parte má e parte preservada, pelo menos – numa esquizose típica. Uma parte do eu fica ligada à realidade consuetundinária, mas, em grande parte, esvaziada de atenção e de afeto, vindo a se constituir naquela parte da personalidade do louco que mantém a razoável sociabilidade; outra parte, aquela que enlouquece, é a que costuma receber os maiores e melhores influxos pulsionais, que a tornam tesa e prevalecente. A parte que permanece indene diligencia em tentar, de qualquer forma, manter uma ligação – cada vez mais esticada, mais distanciada – entre as duas outras partes, navegando simultaneamente em dois barcos.

Aquilo que enlouquece origina-se de uma percepção alterada, partícipe de um novo registro que se imiscuiu no aparelho psíquico. Essa percepção delirante faz uma nova – psicótica – leitura da realidade, que funciona como o grão e ponto de partida do qual se erige um sistema completo de crença. O psicótico cria, assim, no seu espaço psíquico, um novo mundo pessoal, intransferível, que será por ele habitado. É um mundo que traz a chancela do delírio, da alucinação e da conduta psicótica, fundamente ancorada no solipsismo narcisista. O louco funciona de maneira típica e específica, frente à maldade e à desrazão que há no mundo e na vida. Quase sempre, o individuo psicotiza pelo fato de ter estado exposto – brutal e insuportavelmente – à sanha da maldade e da falta de lógica da existência. Ela – a loucura – funciona como um estranho atrator que declara a insuficiência e a falência da cadeia significante em tentar dar alguma ordem aos diasparagamos estúpidos, avassaladores, da realidade. O individuo sofre uma inundação de conteúdos psíquicos pulsionais e representacionais que estouraram o estreito canal da cadeia significante, extravasada para todos os lados. Para: ao lado. Paranóia. Uma nova mentação, lateral. O significante descarrilha, “despiroca” e, louco, cria uma outra máquina de escritura, que tentará dar conta do inundado, da melhor maneira possível: psicótica embora. Quase sempre a enchente da loucura é precedida por sinais claros. Há um período de expectativa angustiosa, crescente, como aquele que sente o ator pouco antes de entrar em cena: trema. Há um humor disfórico, estranho, esquisito, meio alegre, meio tolo, muito apreensivo, algo abrupto e irritado: esquizoforia. Também chamado de humor delirante. Os três são sinônimos. Dão conta de expressar a angústia de aniquilação que invade o homem, colocado diante da situação-limite da derrelicção e da insegurança ôntica.

Por algum motivo ignoto, a loucura é uma possibilidade aberta e utilizada por apenas 1% da humanidade.

Os bons autores dizem que, na psicose, há um desgarramento da continuidade histórica significativa da vida do sujeito, ocorrendo, simultaneamente, uma quebra da ordenação estrutural de sua vida psíquica e o conseqüente aparecimento de novas formas vivenciais “monstruosas”, “loucas”, psicóticas, impostas de fora ou pelo outro.

Há dois contos em Primeiras Estórias(7) , nos quais João Guimarães Rosa aborda a loucura.

Em “Darandina”, um cidadão “provisoriamente impoluto” arremessa-se pela praça diante do Instituto – onde, talvez, o jovem Rosa estava interno, de plantão, rouba uma caneta de um transeunte e arremete vestido, de sapato, encarapitando-se numa palmeira-real. Não havia fugido do Instituto; era um louco novo, público. Ele, lá em cima, tonitroava. “Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se inventara a decisão de se internar, voluntário...” Pressentira a eclosão da loucura, sofrera o trema e arquitetara sua defesa pessoal; mas, já tresloucado pelo delírio, começa a comportar-se de maneira inusitada: “assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que, à maioria, cá fora, viriam a fazer falta...”

A coerência lógica de seu raciocínio é inacatável. Mesmo a veracidade de suas afirmações é plenamente aceitável, como metáfora. Apenas a premissa inicial é falsa, forçada: a humanidade não estava mais enlouquecida do que sempre foi. O que nela viu não passa da projeção das cadentes perturbações que estavam em franca erupção dentro de seu aparelho psíquico. O que ele dizia – “Vocês me sabem é de mentira!” – é, a um só tempo, verdade verdadeira e pura loucura: distúrbio da identidade do eu. A grande questão que se coloca a todos – narrador, povo, autoridades – é “como o recapturar?”

O que o louco grita é pura verdade, ambígua – “Viver é impossível!...” O talvez interno João Guimarães Rosa concorda com o louco: “Fato, fato, a vida se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente, universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é o que sempre há, a fundo, de fato.” 

Colocado no píncaro da dúvida quanto à existência, refugiado na insana e insegura folhagem da palmeira, por pura determinação psicótica e tonicidade catatônica, o tresloucado, identificado como sendo o Secretário das Finanças Públicas, se recusa a descer de lá. Só um milagre pode salvá-lo. A turba agitada, antegozando sua queda. Depois de muito rebuliço e de oficiais providências ineficazes, súbito, o até então inacessível homem gritou: “Socorro!...” De repente, as circunvoluções frouxas da lucidez psicótica cederam passagem aos circuitos entoados da lucidez sadia e o nosso homem, agora nu e indigitado um qualquer, deparou com a precariedade de sua humana condição.

“A precisão de viver vencia-o.”

Um dos psiquiatras do Instituto é o Dr. Bilôlo, que concluiu, lapidar, o que se vivera naquele dia – “A vida é constante, progressivo desconhecimento...” Bilôlo tem a ver com abilolado: amalucado, apaixonado. O outro psiquiatra é o Dr. Dartanhã, que troca espadas com o Sr. diretor. O louco é chamado de psiquiartista: totalmente correto. Uma palavra-porta-palavra para dar conta da criatividade da loucura. “Tem arte...” “Endemoninhado...”, dele dissera, cheio de admiração, o Capelão do Instituto.

Não descobri o que significa Darandina. Paulo Dantas, amigo e correspondente de Rosa, também não o sabe. E, como Rosa nos ensinou, nome é posse.

“A vida era à hora...”

Em 28 de março de 2007, no entanto descobri que Guimarães Rosa cometera uma figura de linguagem que se chama epizeuxe, uma vez que no final do primeiro parágrafo de Darandina ele revela o sentido da palavra: chinfrim, afã e lufa-lufa. Tem ainda, o sentido que azáfama, pressa, confusão, furrupa, rififi, baderna, desordem.     

 

“Sorôco, sua mãe, sua filha é um dos mais pungentes contos de Guimarães Rosa. Convivendo, há anos, com duas loucas – a mãe, demenciada de psicose senil, esvaziada, e a filha, de esquizofrenia hebefrênica -, Sorôco chega ao ponto de não mais suportar a situação e busca ajuda. O carro especial de transportar doidos viera para buscar as duas. Estava num desvio, na estação. O povo, curioso e condoído, esperava viessem os três. Chegam à estação. Dali, as duas iriam para Barbacena. “Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais.”

A moça começou a cantar uma cantiga que “não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum”. A velha começou a cantar também. Aquela chirimia (pavana, cantilena, canto monótono) triste, comovente.

O trem partiu. Sorôco foi voltando para casa, sob o silencioso respeito da comunidade. “De repente, todos gostavam demais de Sorôco”. “Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser.” “Num rompido-ele começou a cantar, alterado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado.”

 

Todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, como ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.”

Essa cena tão comum, do trem de ferro levando os loucos para os manicômios de Barbacena, onde morriam quase à míngua, aos milhares, cedo ou tarde: para sempre. A loucura era incurável até 1960/1965. Isso (quase) acabou com o advento do Haloperidol, bendito seja!

Sorôco tem, no nome, a rouquidão e a aspereza daquele que está destinado a lidar “no oco sem beiras” da loucura. Tinha cuidado por demais das duas, “exemploso”. Antes de se desesperar, pedira providências. Viera o belo carro – “invento de muita distância, sem piedade nenhuma”. A pura providência fria, estatal, irremissível: sem o calor humano. Cumpriu-se a roda do destino. Mas as duas, as loucas, que foram para nunca mais, deixaram no tronco da família – em Sorôco – aquela cantiga. Ameaçado de enlouquecer como elas, ele entoa o canto delas: deixa-se possuir por aquela parte da loucura das duas mulheres queridas, num entôo de melancolia em purgação. A solidariedade do povo ajuda o processo de luto de Sorôco. E todos se deixam possuir pela loucura das duas, prestando homenagem a elas e a Sorôco. É toda a comunidade que vivencia a loucura, cantando a chirimia delas junto com Sorôco. A solidariedade comunitária e a sensibilidade empática participativa são antídotos eficazes contra o enlouquecimento.

 

 

 

 

Referências.

 

BAGGIO, Marco Aurélio. O processo incessante de constituição da identidade de Riobaldo. Belo Horizonte: 1986.

BOWBLY, John. Apego. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

__________. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

__________. Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

 

 

 

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