terça-feira, 26 de março de 2013

CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE RIOBALDO


CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE RIOBALDO


 

Marco Aurélio Baggio[1]


 

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. 8:20

 

Às portas da velhice, já no “range-range”, quase imóvel “barranqueiro”, o fazendeiro Riobaldo rebe um visitante privilegiado, “homem soberano” circunspecto (p. 46) e estabelece com ele uma conversa que dura três dias e que se reveste de tal especificidade que nela reconhecemos, de total direito, uma verdadeira situação psicanalítica:

Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estanho. Mas, talvez por isso mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o mundo se fala? (p. 33)

        

         Riobaldo depara com um interlocutor atento, interessado, que, pelos seu silêncio e estímulo, ajuda o velho a ir enfrentando com gradativo êxito, e cumprir três particulares tarefas.

1)    a de contar:

 

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. (p. 142).

 

        

2)    a de ordenar as lembranças:

 

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (p. 135).

 

 

3)    e, mais importante, a de procurar refazer, mais uma vez, a

travessia desua vida, que representa a procura de si mesmo.

 

É esse extenso diálogo monologado que, à semelhança de um processo psicanalítico, cobre as 385 páginas do volume II da Ficção completa  (Editora Nova Aguilar, 1994) desse monumento literário e artístico que é Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

Riobaldo é um homem rústico do sertão mineiro, que adquiriu tamanha acuidade no trato com as coisas e gentes, que se tornou um homem de grande sabedoria. Ele é um filósofo do ser, na acepção plena. Sua filosofia é extraída, extirpada, dificultosamente, de sua própria vida. Ele trata dos grandes lugares-comuns do Homem: o Bem e o Mal; o Amor e o Ódio; Deus e o Demônio; a Vida e a Morte; o Ser e o Não-Ser; o Prosaico e o Absurdo da existência. Além disso, burila o instrumento racional, ao mesmo tempo que sabe ceder espaço ao paradoxal, que enjambra o suceder da vida.

É essa riqueza que permite, a cada um de nós, seguir na trilha indicada por Antônio Cândido:1:294 “Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício”, refazendo o jogo de conceitos e de ensinamentos que tornam esse livro um dos mais notáveis da literatura mundial, em todas as épocas.

O personagem Riobaldo desenvolve uma expressividade própria, vincada na linguagem oral, profundamente revitalizada, marcada pela palavra ardente, em estado nascente, despida das cinzas e de todas as escórias que o desgaste do uso repetido acarretam.

A questão que, como um fio, obsessiona a vida de Riobaldo é o Demônio: “O diabo existe e não existe” (p. 11); “Arre, ele está misturado em tudo” (p. 12).

A cada momento, em cada etapa percorrida, ou em cada caso inserido na narrativa, o Demônio irrompe, imiscui-se, torna-se presença irrecusável, exigindo de Riobaldo um ingente esforço para perceber suas “mil-caras” e, arduamente, tentar conjurá-lo, negá-lo ou expeli-lo.

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! é o que digo. (p. 11).

 

        

         Tão forte é a presença d’o cujo, que Riobaldo chega a pedir:

 

Olhe: o que devia haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar  por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!

 

Mas, diabolicamente, as mil-artes do Capiroto ressurgem, numa verdadeira compulsão repetitiva, como algo que provém dos mundos ínferos – “Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do céu” – e que persegue, inexoravelmente, o ex-jagunço Riobaldo.

Este, por sua vez, transcende o plano prosaico, atingindo o plano fantástico, onde torna um verdadeiro cavaleiro andande, um paladino,2 que, imbuído dos atributos rituais, não cessa de lhe dar combate. Riobaldo, como todo grande herói, tem nascimento ilegítimo.3 Inicia sua aprendizagem como homem de confiança do Hermógenes; destaca-se por sua pontaria certeira e é ungido cavaleiro no gesto simbólico de Joca Ramiro, que lhe dá um rifle especial. Após o ritual de iniciação nas Veredas-Mortas, onde, em vigília e sob provações diante do medo, sofre um processo de transformação interna, de transmentação, que o habilita a exercer a chefia do bando. Só assim pode executar a tarefa que lhe assomava como sendo maior do que as suas capacidades: vingar a morte de Joca Ramiro, punindo e exterminando seus covardes assassinos, os “Judas” Ricardão e Hermógenes.

Se quisermos uma aproximação mais moderna, no entanto, podemos identificar, no longo relato de Riobaldo, feito diante de um interlocutor discreto e admirado de suas qualidades, um exemplo acabado de um processo psicanalítico, em que o narrador discorre sobre as renhidas escaramuças que se passam no sertão, isto é, no seu mundo intero, entre ele, Riobaldo, pessoa identificada, e seus demônios interiores:

 

Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. (p. 175).

Estou contanto fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. (p. 19).

Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (p. 79).

 

Riobaldo teve um repetido contato com o “Cramulhão”. Como exemplo, no auge da narrativa, no arraial do Paredão, ele viu, impotente, sem dúvida manietado pela “Figura”, do alto do Sobrado, solto: “O diabo na rua, no meio do redemunho” (p. 77).

Trava-se a luta final entre o pactário Hermógenes e o amor de Riobaldo, Diadorim “belo-feroz” (p. 65):

 

Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só. [...] Cortavam toucinh debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. (p. 450)

 

         Esse foi o dia na vida de Riobaldo, dia para o qual tinha nascido e para o qual esteve preparando-se todo o tempo. Dia de vitória e de vingança sobre o pactário Hermógenes e seu bando. Mas o “Galhardo” cobra o seu alto preço. Imobilizado por artes diabólicas, Riobaldo não combate o Judas diretamente e não pode fornecer proteção ao seu amigo Diadorim no momento azado. Falha com Diadorim, uma vez mais. Em toda uma vertente  de sua existência, aquela, muito rica, que representava suas relações com Diadorim fora debalde. Cumpre-se a sina inscrita em seu nome: Rio Baldo, rio, sim, eterno, estuante, perene; mas baldado em todo um aspecto constituitivo de seu ser: exatamente aquela vertente que tinha tudo a ver com seu alter ego, seu “amigor” Diadorim.

         O desejo de vingança tinha sido inoculado em Riobaldo por Diadorim, cujo pai “era um imperador em três alturas” (p. 138), “o par-de-frança” (p. 37), “lord” 9p. 197). Joca Ramiro tinha sido assassinado, à traição, por aqueles que, até então, eram seus suseranos, Hermógenes e Ricardão. Isso ocorrera cerca de dois meses após os bandos de Joca Ramiro haverem vencido as tropas conduzidas por Zé Bebelo. Aprisionado, este exige julgamento, o que se dá na Fazenda Sempre-Verde.

         Acusado por Ricardão e Hermógenes, ávidos de sangue, Zé Bebelo é julgado e absolvido por Joca Ramiro, que o desterra para Goiás. Riobaldo teve intervenção decisiva, defendendo a vida de Zé Bebelo.

         Diadorim, na verdade o jagunço Reinaldo, desmaia ao saber do assassinato do pai. Joca Ramiro era uma figura grandiosa, totêmica, com a qual Diadorim tivera uma total identificação masculina.

         A deslealdade e a traição são os piores crimes no sertão, exigindo vingança:

 

Tá que, mas eu quero que esse dia chegue!, Diradorim dizia – Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados... E ele supeirava de ódio como se fosse por amor... (p. 26)

 

         A conseqüência disso é que:

 

E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim – mas não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. (p. 26)

 

         O processo de identificações projetivas e introjetivas fora tão intenso entre os amigos Reinaldo e Riobaldo, que ambos se misturavam numa matriz simbiótica, na qual um obtinha, por complemento, aquilo de que carecia e que sobrava no outro.

         O Reinaldo tinha coragem, determinação, certezas. Tinha uma enorme capacidade de revelação do mundo exerno: “Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim...” (p. 23). E, mais ainda:

Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza (p. 25).

Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos (p. 46).

        

         Além disso, revelava uma encantadora capacidade de evocação dos afetos mais ternos, personificados nas aves. Lembremos aqui, na voz de Riobaldo, a internalização sofrida, a partir da observação semelhante de Diadorim, no início da narrativa:

 “E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desmpenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...” (p. 445

Reinaldo tinha um pai esplendoroso, figura mítica do sertão. Já Riobaldo carecia de pai reconhecido: na verdade, este era um homem de coragem variável e de iniciaativa parca. Riobaldo, contudo, sabia aprender e aprendera até a ter coragem. Atirava bem e... sabia falar.

Ambos precisavam e gostavam um do outro, admiravam-se e identificavam-se até o entranhamento.4 Já não se diferenciavam mais: o que era de um era do outro. O projeto de Diadorim se torna o de Riobaldo, o objetivo de Riobaldo passa a ser, como cavaleiro andante, paladino do sertão, o de resgatar Diadorim, preso nas teias da vingança do assassinato do pai. Quase sem o saber, um comanda o desejo do outro:

 

Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a boca; mas era um delém queme tirava para ele – o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto (p. 25).

 

         É dessa forma que Riobaldo se liga e se prende a Diadorim, assumindo como sua a tarefa de vingança que era dele, primariamente: “As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim”. (p. 31).

         Depois de muito hesitar, a intenção de se tornar chefe se insinua, e a decisão de ir à noite, à encruzilhada das Veredas-Mortas, convocar o Demônio, com a intenção de com ele fazer um pacto, se estabelece. Venderia sua alma ao Demônio, com a condição de que ele lhe desse forças e capacidade de chefia para enfrentar, vencer e exterminar os “Judas”.

Desafiado a dar sinal de sua presença, o “Maligno” não comparece. Riobaldo cresce no seu sentimento de mesmidade:

 

Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem [...] Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. (p. 317).

 

         É ali, nas Veredas- Mortas, atravessando o rito de iniciação, que Riobaldo, já treinado e preparado sem o saber, tem acrescida a certeza de inteireza de sua pessoa e sente a pujança das capacidades recém-adquiridas, convocadas que foram às fontes mais obscuras de seu ser:

 

Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade (p. 321).

 

         Desafia Zé Bebelo, ao mandar comprar remédio para maleita. Pula no meio dos cavalos inquietos, xingando: – “Barazbú” – e, para sua surpresa, o cavalão se aquietou.

         Sêo Habão lhe oferece o cavalo, sendo o primeiro a reconhecer suas novas qualidades de chefia: “[...] era meu o cavalo grande [...]” (p. 325); “[...] o cavalo Siruiz [...]”. (p. 326).

         O cavalo é o complemento e o instrumento indispensável, no sertão, para ele poder cumprir sua tarefa.

         O longo processo de inciação ritual do cavaleiro Riobaldo estava em vias de se completar. Bastava, apenas, assumir a chefia nominal do bando. A oportunidade surge imediatamente, com a chegada de João Goanhá e seus homens:

(

[...] só disse,

– Ah, agora quem aqui é que é o Chefe?

Nenhum deles. (Zé Bebelo e João Goanhá) E eu – ah – eu era quem menos sabia – porque o Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo!” (p. 330).

 Ali, era a hora. (p. 330).

  Chefe Riobaldo [...] (p. 331).

 

         E Zé Bebelo, reconhecendo: “Mas, você é o outro homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutú branco...” (p. 331).

         Dessa forma, o jagunço Riobado, “Cerzidor”, “Tatarana, lagarta-de-fogo”, tornou-se o chefe “Urutú-Branco”.

         A sucessão de nomes, se nos fala da inconstância e da dubiedade da pessoa Riobado, por outro lado, assinala a evolução psicológica ascendente do personagem.

         Mas quem é Riobaldo?

         É o filho único da Bigri, mulher das Gerais, filho de pai desconhecido. Adoece, e a mãe faz promessa de ele tirar esmola, após sarar: metade para mandar rezar missa e metade para pôr numa cabaça e jogar  no meio do Rio São Franciso, “mode” ir parar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa.

         Cumprindo a promessa, Riobaldo vai tirar esmola no “porto” do Rio-de-Janeiro, pequeno afluente do Rio do Chico. Lá, aos 14 anos, ele conhece o Menino.

         Uma ligação forte, imediata, se estabelece entre os dois. O Menino tem “dinheiro de seu”, compra um quarto de queijo e um pedço de rapadura e, sem pedir licença ao tio, convida Riobaldo a passear de canoa. Com seus esmartes olhos verdes, o Menino mostra os cágados, o mato de beira, as flores e os pássaros na margem do rio. Riobaldo admira tudo e começa a introjetar todo um mundo novo, fluvial, que, até então, lhe escapara. O Menino tranqüliza, com sua atitude, os medos de Riobaldo e ordena ao menino-barranqueiro a travessia do Rio São Francisco:

 

Resolvi ter brio, diz Riobaldo (p. 81).

Eu estava indo a meu esmo (p. 81).

Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo (p. 83).

Aí, o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia (p.83).

E o menino pôs a mão na minha. [...] – “Você também é animoso...?” – me disse. Amanheci minha aurora. (p. 84).

 

         Esse é o primeiro dos muitos elogios provindos do Menino, que, mais tarde, se revela Reinaldo-Diadorim, elogios que nutrem e reforçam o lado corajoso de Riobaldo.

         Na outra margem do grande rio, na intimidade do colóquio entre os dois, enquanto repartem o farnel, surge a maldade sob a forma de um rapaz, mulato debochado: “– Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...” (p. 85). – “Hem, hem? E eu? Também quero!” (p. 85).

         Insinua-se a sexualidade suspeita, suja, através do querer invasivo do outro, inoportuno. O que Riobaldo presencia é a atitude de tranqüila sedução do Menino e o golpe rápido, certeiro, de cobra, da “quicé” (faquinha) perfurando a coxa do mulato. E, diante dos temores de Riobaldo, a advertência que se tornou lema: “– Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem...” – diz o Menino (p. 85).

         Riobaldo quer saber:

         “– Você é valente, sempre?” (p. 85).

         E a resposta:

         “– Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” (p. 86).

         Anos depois, Riobaldo se pergunta, junto ao visitante-ouvinte: “Mais, que coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo?” (p. 86).

         Esse menino entrou na vida de Riobaldo, entranhou a fundo seus interiores. Era um menino bonito, diferente, rico de qualidades, apreciado. O menino que ele-queria-ser: “[...] eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.” (p. 86).

         Bigri morre logo a seguir, e Riobaldo é levado, em viagem de seis dias, para a Fazenda São Gregório, pertencente ao seu padrinho, Sêo Selorico Mendes, que lhe proporciona escola e vida boa, “na lordeza”. (p. 95).

         Em conversas, o  padrinho exibe seu apreço pela vida jagunça: “– Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política.” (p. 87) – e lhe dá as primeiras armas.

         A descoberta do dom da pontaria certeira é uma dádiva que corrobora a tendência para a vida d’armas.

         A descoberta da sexualidade se dá com Rosa’uarda, filha de Sêo Assis Wababa, na vila do Curralinho. É uma sexualidade quente, erótica, principiante.

         O grande acontecimento, ainda na Fazenda, é a chegada do famoso Joca Ramiro, com seus lugares-tenentes, entre eles o Hermógenes, aos quais Riobaldo pode prestar serviços.

         Aos poucos, Padrinho Selorico se revela um homem medroso e muito repetitivo em seus casos: “Meu padrinho era antipático”. (p. 95). De repente, quando dizem claramente a Riobaldo que ele, de fato, era seu pai, ele se desorienta, revolta-se e atua, fugindo: “[...] o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra”. (p. 95). “Eu queria o ferver.” (p. 96).

         Propõe, e logo se arrepende, trabalhar com o Alemão Vupes. Em seguida, procura seu professor, Mestre Lucas, que, por sorte, o encaminha como professor para a Fazenda Nhanva:

 

“O senhor acha que eu posso?” – perguntei; para principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem. – ‘Ei, pode!’ – o Mestre Lucas declarou. (p. 99).

 

         Para sua surpresa, seu aluno único é o fazendeiro Zé Bebelo, então empenhado em campanha de extirpar a jagunçada do sertão.

         O comandante Zé Bebelo era aluno voraz, aprendia rápido: era a própria inteligência e, em um mês, dominava com perfeição todos os conhecimentos que Riobaldo lhe pudera fornecer.

         Sem perceber, Riobaldo começa a aprender como Zé Bebelo aprendia, tirava raciocínios e expedia ordens. A admiração que tem pelo aluno o faz mal perceber que o projeto de Zé Bebelo é exterminar os bandos de jagunços, talvez a serviço do Governo, para poder entrar na política e se fazer deputado. E presencia a ação moderadora de Zé Bebelo, proibindo a  maldade  gratuita  contra  os  prisioneiros: “– Eh, de jeito nenhum, epa! Não consinto covardias de perversidades!” (p. 105).

         Muitas coisas, no entanto, não lhe agradam nas tropelias com o bando de Zé Bebelo. Como aprendiz, adolescente, Riobaldo usa da licença da evasão. Pela segunda vez, foge.

         Os acasos do sertão o levam à cafua de uma mulher casada, onde goza o amor. E, enquanto espera a promessa de mais, vai para a casa do pai da mulher, onde, falando além, para se vangloriar, conta de seu encontro com Joca Ramiro, na fazendo do padrinho e conclui: “[...] porque meu seguimento era por Joca Ramiro, em coração em devoção.” (p. 106).

         Acordado para jantar, topa com os ramiros. E...

 

Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem mesmo? Era o Menino! [...] Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pesanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. (p. 107).

Reinaldo – ele se chamava. Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? (p. 109).

 

         Anos depois, já no período de reflexão, Riobaldo se interroga: “Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe?” (p. 108).

         A teia do destino está traçada: deixara a casa do “padrinho”, por se sentir envergonhado do pai que tivera; esgotara seus ensinamentos ao aluno, que, em um mês, já sabia mais do que ele; deixara de vez as tropelias aprontadas pelos soldados de Zé Bebelo; contara vanglórias sobre a cena com Joca Ramiro, na Fazenda São Gregório; reencontrara o Menino na pessoa de Reinaldo e... havia uma tarefa importante a cumprir: “Aquilo era munição de contos e contos de réis [...]” (p. 110), a fazer chegar às mãos de Joca Ramiro.

         É dessa maneira que Riobaldo se identifica e se torna um ramiro.

         A amizade com Reinaldo se desdobra numa vastidão de afetos plenos, deliciosos, que, com o passar do tempo, vão-se tornando mais intenos e tingidos pela impossibilidade da vazão total:

 

Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. [...] Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... (p. 19)

Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. (p. 114).

 

É por intermédio de Diadorim que, plenamente identificado, Riobaldo descobre as belezas e os nomes das coisas do sertão. O manuelzinho-da-croa, que “é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima...” (p. 11), torna-se o símbolo da amizade e da ternura entre os dois amigos.

Através dos olhos verdes de Diadorim, Riobaldo vê o mundo que é o Sertão: por fora, espaço externo, real, vastidão; por dentro, espaço interno, dos valores e dos afetos: “Os afetos. Docura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então eu vi as cores do mundo.” (p. 115).

A equivalência da amizade de dois rapazes, que se descobrem parceiros iguais, no respeito e na admiração mútua, transparece nessa observação de Diadorim: “– Riobaldo... Reinaldo... [...] Dão par, os nomes de nós dois [...] (p. 112).

Diadorim funciona como o anjo da guarda de Riobaldo nos seus primeiros embates na vida jagunça. Diadorim é a coragem inteirada e a certeza de objetivos personalizada, o que se torna admirável a um Riobaldo: “Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável” (p. 38), mas que termina sendo mortífero para Diadorim.

De toda forma, o que Riobaldo e Diadorim vivem é uma relação plena, que os realimenta constantemente, mantendo-os íntegros, persistentes em seus objetivos, recuperados das andanças e dos  combates e, sobretudo, protegidos do possível embrutecimento natural que sofre um jagunço. Esse embrutecimento se resume, por exemplo, na voz de Alaripe: “– A pois, isto... Homem, sei? Como que já vivi tanto, grossamente, que desgastei a capacidade de querer me entender em coisa nenhuma...” (p. 432).

A amizade desabrocha em fulgurante amor entre dois guerreiros, que, por um lado, usufruem e se alimentam desse amor e, por outro, sentem-se acossados, perseguidos, à medida que têm de manter esse sentimento dentro das reprimidas roupas de couro da vida jagunça. Para Riobaldo, torna-se uma tortura a ilegitimidade do sentimento por um rapaz: “ E eu – mal de não me consentir em nenhum afirmar das docemente coisas que são feitas – eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar.” (p. 25).

Vemos aí que um aspecto constitutivo do complexo de relações afetivas mantidas pelos dois parceiros, aquele atribuível a uma pulsão parcial homossexual, exige ser reprimido, permanecendo como “um-não-dito” e, mais, como “um-não-feito”, que pode atingir intensidades perturbadoras, perfeitamente “diabólicas”.

Talvez essa importante parte da relação de Riobaldo com Diadorim pudesse ser interpretada como sendo uma parte do sistema self (si mesmo) de Riobaldo, que foi internalizada junto com todos os demais aspectos de Diadorim – a coragem, a ternura, a determinação, a beleza, a amizade, a capacidade de ver o mundo com seus particulares “olhos verdes”, a origem derivada de um pai mítico –, mas que, em virtude da necessidade de repressão, não pode ser assimilada ao núcleo desse self, como, certamente, o foram as outras. Essa pulsão parcial homossexual constitui um “objeto orbital”5 do self, excêntrico ao núcleo, e tem dinâmica e gravitação próprias, exigindo, a molde de um introjecto patológico, o estabelecimento de relações do ojbeto interno com o núcleo do self. À medida que essa tendência homossexual se reforça, por não poder escoar-se legitimamente, ela se torna intermitente em sua imperiosidade de expressão: naqueles momentos em que ameaça irromper e assumir o núcleo do sentimento de mesmidade, o self autoriza o sistema Ego a operacionalizar defesas. A projeção é a primeira delas, arremessando, temporariamente, o diabólico perturbador para fora do self, além, para o Não-self, onde impera o “Outro”. É nesse lugar – fora do self – que é identificado o perseguidor. E a função dele, perseguidor projetado, é tentar, por mil modos, mediante mil medos, ser reintrojetado no psiquismo, por uma simples questão de querência: é lá que teve sua origem. O perigo constante, derivado daquilo que, tendo sido, uma vez, internalizado e não assimilado pelo núcelio do self, torna-se um objeto interno orbital. Este, sob certas cirbunstâncias dinâmicas e econômicas, tem de ser expelido, projtetado para fora do self e representa a ameaça perene de reintrojeção invasiva, que pode inundar o self e sobrepujar a capacidade de defesa do Ego.

É dessa desarmonia, derivada da disparidade entre os diferentes graus de legitimidade dos distintos conteúdo afetivos e sexuais, provenientes da relação com o adorado Diadorim, que entendemos que fica um resto inquietante, a clamar por “vir-a-ser”, mesmo depois, muitos anos passados. Esse é um dos móveis principais que acionam e articulam o relato de Riobaldo.

A impossibilidade do amor cheio, entre dois jagunços, é elaborada pelo primeiro dos dois únicos e escassos sonhos que estão presentes na longa narrativa de Riobaldo: “Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...” (p. 41). Passar por baixo de um arco-íris simboliza a possibilidade de mudar, magicamente, de sexo, o que realizaria o desejo de Riobaldo de que seu amigo fosse uma mulher. Mas essa possibilidade desejada é encarada por Riobaldo como uma “sonhice”, palavra inventada com os significantes de “sonho” e “tolice”: palavra-porta-palavras.

Para Diadorim, a realização do amor entre ambos era uma possibilidade quase certa. Ele tinha sido criado sob forte identificação com a figura masculina, valorizada no homem-jagunço. Tivera de reprimir e negar, radicalmente, toda sua doce vertente feminina, que, mesmo assim, ou por isso mesmo, filtrava-se por todo seu ser e era captada pela sensibilidade de seu amigo. A tudo isso se somara, complicando e forçando a inteireza do self de Diadorim, sucessivamente, o amor pelo companheiro, o ódio e a fanática necessidade de vingança contra os “Judas” e o sentimento de culpa por saber estar enganando, ainda que involuntariamente, o “amigor” (amigo+amor). É sob estado de forte tensão que Diadorim esboça uma solução, quando promete a Riobaldo: “– ... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...” (p. 386).

Tais tentativas de reparação são muito pouco eficazes diante da desordem conqusa que é a vida interna de cada um: “A vida é muito discordada. Tem parte. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.” (p. 381). O que termina acontecendo é um desvio na relação entre os dois parceiros. Senão, vejamos...

Diadorim, batizado “Deodorina”, filha única de Joca Ramiro, que a quis varão e, assim, transforma-a, pelas muito boas razões terceiras de

1)    não ter tido um herdeiro;

2)    vir a precisar de um substituto; e, principalmente,

3)    a mulher no sertão valer muito pouco: “– ‘Mulher é gente tão infeliz...’ – me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias.” (p. 133).

Não tendo tido uma figura materna, que cedo desapreceu de sua vida, Diadorim é absorvido pelo desejo da figura paterna magnífica. Sabe que é mulher biológica, mulher em gênero e potencial. Confiado no amor de Riobaldo e porfiado em vingar o assassinato do pai, Diadorim, de alguma forma, espera poder reverter-se de homem-jagunço em moça-mulher para aquele a quem, de fato, se submete: “– Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...” (p. 428).

Por instância de Diadorim, Riobaldo aceita o pacto de não procurar mulher. O reprimido exige que também o outro o seja:

 

Vai, e vem, me intimou a um trato: que, enquanto a gente estivesse em ofício de bando, que nenum de nós dois não botasse mão em nenhuma mulher. Afiançado, falou: “Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos Santos-Evangelhos! Sevengornhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da coragem...Você cruza e jura?! (p. 147).

 

Mas, ao cabo de meses, sua natureza de homem fala mais forte, ele trai a jura feita a Diadorim:

 

Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do corpo, malandragem. (p. 147).

Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra: faceirei. Severgonhei. Estive com o melhor de mulheres. Na Malhada, comprei roupas. O vau do mundo é a alegria! (p. 231).

 

         Diadorim sofre calado:

         Mas é em Riobaldo que  questão do amor sofre uma tríplice dissociação, cindindo, com isso, a figura feminina em, pelo menos, três.

         Há o amor por Nhorinhá e pelas demais mulheres do sertão, presas fáceis dos jagunços, muito embora Riobaldo se mantenha respeitoso com todas elas: “O que eu queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu ser” (p. 133). Nonhrinhá é o gostoso exemplo da mulher “prostitutriz”, “militriz”, que atinge o auge do usufruto carnal: “Renego não, o que me é de doces usos: graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs, a gente preza melhor delas, dessas belas bondades”. (p. 180).

         Do Urucuia, “rio de meu amor” (p. 58), surge Otacília, musa inspiradora de suas façanhas, mulher idealizada, concebida e protegida pura, resguardada da sujeira da vida, a qual evoca o prêmio por todas as andanças e canseiras pelo sertão.

         A terceira figura de amor é a mais forte de todas, aquela que o acompnaha diuturnamente e pela qual os seus sentimentos são mais exigidos e aguçados: Diadorim. É uma figura feminina particularmente insólita, na medida em que está travestida de couro: “Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro.” (p. 42).

         Por duas vezes, a pressão interna sobe a tal ponto, que Riobaldo tenta uma solução já empregada eficazmente por ele: propõe a Diadorim a fuga do bando:

 

A já, que ia m’embora, fugia. (p. 140).

– Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que já é o depois-de-véspera, que os vivos também têm de viver por só si, e vingança não é promessa a Deus, nem sermão de sacramento. (p. 283).

– Vou e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre. Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E trovejo no mundo... (p. 284)

 

         Este o chama pela palavra, impedindo o uso da fuga: “– Ei, retenteia! Coragem faz coragem... “ (p. 284). Pois Diadorim o possuía. Entranhara-o.6 Enquanto Diadorim não recuperasse a liberdade de sua vida, perdida na sede de vingança aos “Judas”, dele Riobaldo não poderia separar-se. Ele também não se vingara do pai, Selorico Mendes, que o gerara filho bastardo? “Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu velho, a curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.” (p. 90).

 

         É assim que o jagunço Riobaldo, primeiro “Cerzidor”, depois “Tatarana, lagarta-de-fogo” (p. 126), admira Diadorim, “belo feroz” (p. 65): “Só tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo...”, reforça Diadorim (p. 140).

         Perdido por Joca Ramiro, por lealdade e mais inteira possessão, Riobaldo, sem perceber, assume ser o instrumento a mais de que Diadorim precisa para se chegarem aos “Judas”.

         Assinalado por Medeiro Vaz, em seu dia de “alta tarefa”, Riobaldo recusa a chefia do bando e impede que Diadorim a assuma, indicando Marcelino Pampa. Logo percebe que Marcelino não tem talento para tanto.

         A sorte os faz deparar com Zé Bebelo, de volta de Goiás, com um exército de cinco urucuianos, querendo vingar a morte de Joca Ramiro, que, poucos meses antes, havia-o vencido e julgado, e além disso, lhe havia perdoado. Felizes, vassalam e entregam a chefia total do bando a Zé Bebelo.

         Zé Bebelo, porém, não tem o calor de sangue nos projetos de vingança e, aos poucos, vai-se perdendo nas andanças pelo sertão. Perdido de rota, descobrem os catrumanos e defrontam com a peste que grassa na aldeia do Sucruiú. Lá topam com a miséria mais total da condição humana: “Nós estávamos em fundos fundos” (p. 289).

         E Zé Bebelo medeia de medo da peste: “Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz oco no ânimo do mais valente qualquer.” (p. 404).

         Aceleradamente, Zé Bebelo é desidealizado por Riobaldo:

 

Zé Bebelo, para mim, tinha gastado as vantagens. Zé Bebelo murchava muda na cor, não existia mais em viço para desatinos, nada que falava era mais de se reproduzir, aqueles exageros bonitos e tamanhos rasgos. (p. 306).

Aquela mente de prosa já me aborrecia. (p. 240).

 

         Riobaldo já havia visto, atuantes, comandantes do porte de Hermógenes, Titão Passos, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Sêo Candelário, João Goanhá e havia percebido a primaz importância da cabeça-de-comando para um bando, após a desairosa indicação de Marcelino Pampa. Muitas coisas, sem querer, mas muito querendo, já havia, certamente, internalizado. Rejeitara a chefia, porém já fora inoculado pelos seus virusinhos:

 

Â, aí observei: como Marcelino Pampa desde o instante expunha outro ar de ser, a sisuda extravagância, soberdo satisfeito! Ser chefe – por fora um pouquinho amarga; mas por dentro, é rosinhas flores. (p. 66).

 

         E, num momento culminante, de mais alta significação em sua vida, do qual participara, jagunço ainda, decisivamente – “O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante.” (p. 216) –, Riobaldo experimenta o fascínio do poder, vendo-o exercido por Joca Ramiro:

 

Ali naquel’horinha-meu-senhor-foi que eu lambi idéia de como às vezes devia de ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente. (p. 207).

 

         E, na fazenda de Sêo Habão, o fruto amadurecera, chegara o tempo...

         Seu projeto era simples. Contra os “podres diabólicos do Hemógenes, ele pediria idênticos poderes ao Cara-de-Cão”, ao preço que fosse. Sua alma, pois não? Venceria os “Judas”, libertando Diadorim da sede que o consumia, e, largando aquela vida, casava-se com a doma do sonho, a prometida Otacília, levando Diadorim para morar perto, lá no Urucuia. Bastava coragem enfrentar o “Canho”. Mas Diadorim havia-lhe fornecido o meio: “– Vau do mundo é a coragem...” (p. 232).

         Ele, Riobaldo, de próprio braço seu, havia-se aumentado, “no interno das coragens” (p. 17). Jagunço, ele havia aprendido: “Bananeira treme de todo lado” (p. 317). E “Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!” (p. 69).

         A suprema prova: o enfrentamento, sozinho, do Diabo, no meio da noite tenebrosa, na encruzilhada das Veredas-Mortas. Isso equivale ao desafio do dragão arquetítpico em seu covil: açulá-lo, afrontá-lo e vencê-lo, ao risco de ser sobrepujado e vencido irreparavelmente por ele.

         Nesse verdadeiro rito de passagem, nessa travessia interior, Riobaldo suplanta uma espécie decisiva de medo, que o impedia, até então, de se apossar de uma vasta parcela de si mesmo. Rompido, por enfrentamento ritual, esse medo fantasmático, Riobaldo pode então, seguramente, concluir: “Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo.” (p. 11). E, a seguir, aufere o estuante sentimento de plenitude de sua mesmidade, numa vivência de locupletação do self, assume, então, o totêmico Cavalo Siruiz e a chefia, para a qual estava sendo preparado e se preparando.

Ser chefe é saber expedir ordens e saber querer. Cheio de si, com vontade própria, sem preparação prévia, arremete por onde Medeiro vaz fracassara. O Liso do Sussuarão.

         O deserto da alma humana, representada pelo topônimo – “raso” infernal do Sussuarão –, dessa vez se oferece a sua transposição em nove dias. É como se a força e o discernimento de todos os grandes chefes, seus predecessores, tivessem sido concentrados em Riobaldo, herdeiro e maior de todos. O chefe mudara, por dentro de seus espessos e avessos; mudava, conseqüentemente, a aspereza da realidade, acomodando-se resiliente.

         Arrasam a fazenda do Hermógenes, além do Carinhanha, no extremo sudoeste da Bahia, e arrebatam sua mulher como refém e como isca.

         Com esse lance, Riobaldo inverte a situação estratégica: o ofendido, agora, é o Hermógenes. É ele quem, furioso, irá procurar o bando chefiado pelo Urutú-Branco, em vez de continuar fugindo.

         O cenário está montado para o desenlace.

         Mas várias peripécias tem de enfrentar Riobaldo, agora com o diabo no corpo, cheio de si, raiando o sadismo e a crueldade, ameaçando matar o viajor, ou quem econtrasse primeiro na estrada. Desabridado, encontra os olhos do leproso entre a vegetação: infecto, repugnante, repelente, tal como, mesmo, um aspecto dele mesmo, espalhante do mal. A custo, havia conseguido evitar matar Sêo Habão. Diadorim é seu moderador, seu anjo da guarda mais uma vez.

         Decepciona-se ao perceber que ninguém conhecia, no grande sertão, o chefe Urutú-Branco. Anseia ver-se cantando, em suas façanhas, pelos trovadores.

         Era tempo de novas proezas.

         No Tamanduá-tão, Riobaldo usa tudo que aprendera com Medeiro Vaz, Zé Bebelo e Joca Ramiro. Dá surpresa e tem vitória total sobre o bando de um dos “Judas”, Ricardão.

         E, por duas vezes, contém Diadorim. Sofreia as rédeas do cavalo deste, quando ele quer arremeter, no início da batalha. E o impede de ir, a faca, sobre Ricardão, instado a sair do casebre onde se refugiara, dando nele um único tiro. Frustra Diadorim, – por que não? –, no intuito de preservá-lo do perigo.

         Para abatalha final, o chefe Urutú-Branco dispõe os drongos de João Goanhá e de João Concliz nos altos, no Cererê-Velho, enquanto distribui a coutra metade dos homens no arraial do Paaredão, distante seis léguas.

         Isso posto, o imprevisto do acaso vem cutucar as coisas dormidas, capazes de transtornar o curso da ação e a mente do Chefe:

 

[...] apreceu o Trigroso. [...]

– No Saz – uma veredinha, três léguas abaixo – Chefe... Vaqueiro que achei, que me disse, remendando mensagem: que é um homem, chamado Abrão, com uma moça bem arrumada... [...]

Ele falou. E foi a coisa mais de repente, na minha vida, Otacília! [...] Inteirei, comigo: – Sêo Habão? Vigia se ele não traz consigo uma donzela formosíssíma, ou se traz em-apenas desilusão... E o Trigoso disse, estava dizendo completo. Ela era! Otacília! Otacília! (p. 427)

        

Riobaldo elabora rápido a dceisão de ir com o Alaripe e o Quipes. Mas, antes, “como naquela hora Diadorim e eu desapartávamos um do outro. [...] Fui, com desejos repartidos.” (p. 429).

         Gastou tempo, campeou no vazio a tal ponto que decidiu voltar para junto de seus homens: “Formamos bons preparos. Minha mãe vivesse  e viesse, ela mesma por nenhum descuido mero não havia de poder me reprovar.” (p. 433).

         Mostrava aos homens, exercia suas artes de chefia, consertava e estimulava seus homens, despertando neles “maior raiva. Raiva para tampar o espaço do medo [...] Dali, o Hermógenes não saía com vida, maneira nenhuma, testamental. Tive ódio dele? Muitos ódios. Só não sabia por quê.” (p. 434).

         Porque o ódio era de Diadorim, inoculado por identificação projetiva e introjetado por Riobaldo de tal forma, que passara a ser objetivo de sua própria vida, condição indispensável de ser cumprida, antes de poder pretender desejar “para a minha vida um remir – da outra banda de um outro sossego...” (p. 432).

         Assim é que Riobaldo constata: “A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes – naquele dia,naquele lugar [...] Aí eu aí desprezava o ofício de jagunço, impostura de chefe.” (p. 434).

         Na justa beirinha da véspera do combate fatal, no fundo do distanciamento de Diadorim, ofuscado pela possibilidade de Otacília e pelos urgentes preparativos de guerra, o amor por Diadorim refulge vigoroso, rompendo repressões. Na noite:

 

Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. [...] Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim e calar qualquer palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer – é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação – por derás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível. Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei:       – Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... –; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando, somente, modo se diz um verso Diadorim se pôs para trás, só assustado. – O senhor não fala sério! – ele rompeu e disse, se desprazendo. [...] Arrepio como recaí em mim, furioso com meu patetear. – Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... – eu disfarcei, afetando que tinha sido brinca de zombaria, recompondo o significado. (p. 436).

 

         Nas bocas da hora decisiva, assoma, em Riobaldo, a fantasia de seu desejo impossível (e, no entanto, tão possível...!) de Diadorim mulher, nos seus braços. Mas, tratando-se de dois guerreiros, o amor é impossível, e a morte é convidada a entrar.

         Diadorim, enciumada, sentia o fantasma de Otacília perto.

         Sem perceberem, a morte fora convocada para “testamental” Hermógenes e se insinuara para outro... O amor confessado de dois homens é demais para seus brios jagunços. A ambigüidade dos amigos que se amam tornava-se insuportável... A morte tocaia as veredas do sertão...

         Então,

 

[...] o inimigo dera de se estourar, todo de-repentemente, da banda outra, lugar donde não devia de vir, nem ali possível de ser esperado. [...] Estarreci. Que, na prema da minha ausência, o muito mundo se acabava. Tudo diferente da cartada. (p. 439).

 

 

         Riobaldo combatera ao lado do Hermógenes e sabia que ele só atacava fazendo surpresa: mas sua concentração fora perturbada pela possibilidade de Otacília estar no meio do perigo, por perto.

         Surpreendido, Riobaldo fica estuporado: “Não chego em tempo... Não adianta... Não chego em tempo nenhum...” (p. 439). E constata que “era tonto e burro, e idiota as mil vezes, porque agora estava perdida irremediavelmente minha ocasião, e a guerra descambava, fora do meu poder...” (p. 439).

         Nessa hora, o Diabo, candidamente, lhe insinua, por uma doçura nojenta de voz: “Tu não não vai lá, tu é doido? Não adianta...” (p. 439).

         Supera-se e vai-se juntar aos seu homens: “Vivo em vida, me ajuntei com os companheiros. Meus homens! Dei ordens. As balas estralejavam.” (p. 439).

         A morte de Marcelino Pampa é sentida.

         Diadorim aconselha Riobaldo, pela excelência de sua pontaria e pela sua altitude de chefia, a ir para o alto do Sobrado:

 

– Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe.  Com teu dever, pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança...

– Eu vou... –; fui [...] Ainda virei, relanceando. Sempre qeuria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse meio de vida. (p. 441-2).

 

Jiribe morre a caminho da torre.

Em plena luta, alvejando  os inimigos do alto,  Riobaldo  imagina:  “– [...] Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia...”

     E o símbolo do vínculo de ternura entre eles: “E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...” (p. 445).

Vivenciou a progressiva derrota, até que “repentemente, o pessoal meu do Cererê-Velho, sequazes de João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os hermógenes pelas costas – davam a toda retaguarda!” (p. 447).

         E sobrevém a certeza:

 

Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrando aquele mommento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava. E conheci: ofício de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive!” (p. 447).

 

         No auge da vitória,alguém riu de Riobaldo: “[...] eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão!  Sujo!...  e  dele  disse somentes    S... – Sertão... Sertão...” (p. 448).

         O resto é “[...] o Diabo na rua, no meio do redumunho...” (p. 450) dedutível.

         Hermógenes, valente, vendo-se  perdido, lança desafio à faca. Diadorim, sedento, coragem inteirada, retidão de certeza, aceita.

         Riobaldo está encastelado nos altos e, pela segunda vez, as forças lhe faltam, e a voz some. Só vê. Ele segurara por demais Diadorim em seus desejos de vingança. Deixara a véspera da batalha para ir campear Otacília. Nos útlimos encontros, Diadorim e Riobaldo se desapartaram de sua simbiose, cada qual assumindo sua identidade própria. Impotente, vitorioso, no alto, ele constata, porém, que a tarefa que se impôs, de matar o Hermógenes, esgotara-se na boa chefia: a vingança voltava ao sangue de quem tinha mais direito.

         O “belo feroz” jagunço Diadorim perdera Joca Ramiro, talvez, quase certo, perdesse Riobaldo. E, se não, teria de atravessar todo um longo e desconhecido processo de feminilização, tendo, por único guia, o encontro do inconstante amor de Riobaldo, fascinado por Nhorinhás e Otacílias. Assanhado, desafiado, Diadorim não perderia o sangue do Hermógenes... E, sempre, restaria Deus a Maria Deodorina.

         Ficasse Riobaldo, como ficou, com sua musa Otacília. Mas ficasse também, como predizia seu nome, um rio baldo, um rio fracassado numa vertente inteira de sua vida, aquela, própria, decorrente da perda de Diadorim... Riobaldo pugna, se faz. Euloa, vence, e... perde: balda. Perdeu o Menino. Perdeu o companheiro-jagunço. Perdeu o “Dia adorado”. E fricou condenado a se assustar pelo “Diá” que causa “dor”:

 

O que existe de ser e amor em Diadorim é representado pela vertente

a) Dia + adora 

O que há de não-ser, pela vertente


b) Diá (diabo) + dor. (Campos, 339). Assim, em dois planos de significado (deus ou o demo, sempre) se bifurca, desde o nome, essa criatura (Campos, 336) que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor [...] (p. 458).

 

         E mais: “Daí que, a nosso ver, oemprego daquele sufixo (im) em Diadorim envolve tal nome próprio numa imprecisão de gênero que está em relação isomórfica com o personagem” (Campos, 458).

         Riobaldo baldou uma parte de si, menino-passarinho: “Dinhdurinh” (p. 429), companheiro de traessia, alter ego, tornado irrecuperável pela falta de cobertura ao amigo, no momento do diabo.

         Morto Diadorim, a Mulher exclama, ao despi-lo:

 “– A Deus dada. Pobrezinha...”    

E a reação de Riobaldo: “[...] Eu conheci! [...] Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...” (p. 453).

 

         Mesmo para um nomeador, um nomenclaturizador, amansador-de-diabos, do porte de Riobado, era coisa demais. Ele adoece de tanto tudo isso: adoida.

 

         “Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheira – aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. [...] Desapoderei.” (p. 455).

 

         Ida às Veredas-Mortas... cobrar, talvez, do Demônio... Mas, perto já, um sitiante explicou “que o trecho [...] se chamava mais certo não Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas...”         O nome é tudo: isso Riobaldo aprendera, no sertão. Mudado o nome, muda o mundo.

         Riobaldo adoece, febril, confuso: a vitória sobre os hermógenes, a vingança do assassinato de Joca Ramiro, a morte e a perda brutal de Diadorim; a revelação de Diadorim moça. Ele é tratado pelo Sêo Josafá Ornelas, na Barbaranha, onde convalesce.

         Otacília aparece.

         Uma última travessia antes ainda tinha de ser feita: “Adonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos”. (p. 457).

         Da matriz de Itacambira, o batistério: “De Maria Deodorina da Fé e Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... (p. 458).

         Uma vez mais, é Zé Bebelo quem lhe dá alento e destino: encaminha-o ao “Compadre meu Quelemém”, místico sábio do sertão, aquele que “quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa” (p. 152). A ele, Riobaldo pode contar por inteiro, em primeira mão, toda a sua história e, ao cabo, confiante, confessar sua maior dúvida: – “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” (p. 460).

         E, aproveitando essa segunda imprevista oportunidade, Riobadlo, após arrevesar daqui-prali, nas primeiras páginas, consegue recuperar sua história, perpassada em seu sertão, e obter, extraídos, os sentidos que só à posteridade se revelam, disponíveis:

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. [...] Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. (p. 78).

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar  um rio a nado, e passa: mas vai dar na outra banda é um ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (p. 30).

A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está emprurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo figuei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só o último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (p. 51).

 

         O que resta é o final do último parágrafo:

 

Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, cirunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (p. 460).

 

         Riobaldo fez a inteira psicanálise de sua vida. Agradece ao discreto e quase mudo ouvinte. Amizade entre homens é o que se firmou. O resto são ninharias. O importante é manter afirmado que o Diabo não existe. Porque, na verdade, existe o homem humano e ele aparece nos muitos pontos da travessia. Essa é toda a possibilidade de transcendência humana, rumo à solidão, em direção ao infinito.

 

A escarmentação do demônio

 

         Guimarães Rosa emprega 83 cognomes do Diabo, evidenciando a obsessão de Riobaldo de tratar dessa vertente humana fundamental. O Diabo é a expressão simbólica extenalizada da força obscura proveniente dos dentros do homem. É a caracterização das complexidades constitutivas do desejo humano, rolando nos escuros, minando na superfície e, por vezes, ameaçando levar de roldão toda a frágil cortiça da consciência e do parco entendimento humanos: “Coração da gente – o escuro, escuros”. (p. 30).

         O “Danador”, o “Tisnado” é tudo aquilo, aglutinado, não diferenciado, que reina, confuso e insólito, dentro do mundo interno da pessoa. O “Temba”, o “Tristonho” é o que tem mil-caras, é o não-dito, o inconvocável. O “Galhardo” é a projeção imaginária de obscuros processos silenciosos, que, súbito, afloram e estalam com imperiosa força, ameaçando o ser de não-ser ou, o que é pior ainda, de ser um “ser incompleto” (criança, aleijado, doente, louco, velho, criminoso, etc.): “O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme sobre um rio?” (p. 222).

 

         Ele, o “Arrenegado”, se imiscui cedo, na vida de Riobaldo, na falta de uma figura paterna legitimada e reconhecida; percorre a sua orfandade precoce, vaga pela miséria das gerais: “Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra”. (p. 23). Surge, de banda, na admiração fortemente idealizada pelo Menino, que passa a ser, por identificação introjetiva maciça, parte operante, constituinde, de Riobaldo. Esse processo não cessa, antes recorre, na necessidade incorporativa do personagem de admirar e incorporar, sucessivamente, artibutos de Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo, Titão Passos, Sêo Candelário e, mesmo, por identificação introjetiva negativa, do Hermógenes.

         Mas não só. O “Mafarro” aparece a cada nova qualidade de medo, que cada dia traz: “Cada hora, de cada dia,a gente aprende uma qualidade nova de medo!” (p. 69).

         O “Coxo” se exibe na precariedade e na transitoriedade de tudo no sertão – “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado... [...] O sertão é confusão em grande demasiado sossego...” (p. 343).

         O “Outro” é, também, o representante do absurdo da existência, com o destino pendente “por clim de clina de cavalo”. (p. 98).

         O “Sujo” é toda a própria insondável e imedível maldade, que jorra de nossos adentros, muitas vezes querendo fazer mal a quem se ama ou, simplesmente, danar aqueles, pobres, desamparados ou lazarados, que nos lembrem aspectos miseráveis de nossa condição: “Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma”. (p. 155).

         Por fim, o “Tisnado” comparece no muito amor que, não podendo vazar no leito dos escoamentos da carne, transforma-se em aguilhão que aferroa o juízo.

         O “Morcegão” é o amedrontador, aquele que desloca o homem de dentro de si mesmo, lesando-o naquilo que lhe é mais precioso: sua inteireza de sentidos e sua integridade de ser: “O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero –: é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!” (p. 298).

         O “Carocho”, o “Tunes”, representa um instrumento iniciatório, que, exigindo o cumprimento do ritual, funciona como outorgador de poderes interiores, que se devem obter, imprescindíveis para a realização da tarefa em que falharam os chefes anteriores. Além disso, o “Debo”, o “Grão-Tinhoso” significa a parte torva da alma.

         Antônio Cândido nos chama a atençaõ para a palavra que o autor inventou para representar aquilo que Riobaldo vivenciou em si, na noite do pacto: “Sobrelégio?” Um sortilégio sobrenatural. (Cândido, 307).

         O drama do homem Riobaldo, sempre acossado de perto por seus demônios interiores, está na maneira como lutou para não se perder. Essa luta, muitas vezes, é identificada

 

àquela confusa e tumultuosa massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longa das Veredas, tênues canais de penetração e comunicação.

 

         Pois dele nos ensina Riobaldo: “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o serão, o sertão maldito vos governa...” (p. 374).

         O romance é a esplêndida história de um homem cujo mecanismo de “renegação” (Verwerfung)7 nunca foi suficiente para afastar o “Coisa-ruim” de sua companhia. O “Rapaz”, o “Canho”, era viajor em sua travessia, do seu lado o tempo todo, o “Façanhudo”: “Será – mal pergunto eu ao senhor – que viajei este sertão com o Outro sendo meu sócio? Vá retro!” (p. 364).

         Pode ser de ajuda exemplar, para nós leitores, inventariar as mil-poucas maneiras que opera Riobaldo, nessa longa e incesante travessia, de domar o “Tal”.

         A primeira delas é a religião. Ainda criança, vai esmolar no porto e pedir ao Grande Rio que leve sua oferenda ao Senhor Bom Jesus da Lapa. Na velhice, Riobaldo apela para todas as religiões.

 

Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas.

Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucrua. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco a ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. (p. 15).

 

 

         Chega mesmo a dizer que, se não tivesse sido chefe jagunço, poderia ter sido “padre-sacerdote” (p. 15).

         Embora profundamente religioso, Riobaldo não é um místico.

         Às vésperas de seu primeiro combate, Diadorim havia-lhe aconselhado: “– ‘Riobaldo?’ – Diadorim me disse – ‘arruma jeito de mudar de lugar, na hora, sempre que puder’.”. (p. 154).

         A vastidão dos Gerais, acrescida da sua inquietude de moço, certamente lhe inspiraram manter sempre a mobilidade. Assim sendo, a segunda ferramenta que utilizou, enquando pôde, foi a “evasão. Sempre que o “Coisa” o apertava, ele percorria o caminho da fuga. Fugiu da Fazenda São Gregório, quando o mundo se lhe desproduziu. Fugiu do bando de Zé Bebelo e, por duas ou três vezes, quis abandonar a vida de jagunço, propondo deserção a Diadorim. É este quem interdita a rota de fuga, com sua determinação fanática.

         “De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga”. (p. 142).

         A grande ferramenta que burilou foi aquela absorvida, porque sobrava, do Menino – a coragem:

– “Carece de ter coragem...” (p. 83).

– “Vau do mundo é a coragem...” (p. 232).

Selorico Mendes reforçou isso, na idade adequada e na condição propícia.

Outro grande recurso deriva do dom de Riobaldo de atirar bem:

“... pelo atirador que eu era, o melhor e mor... (p. 51).

“Sempre disse ao senhor, eu atiro bem.” (p. 124).

“Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem: que vivo ainda por enconrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho.” (p. 125).

 

Um recurso importante para conjugar as artimanhas do “Tinhoso” foi o desenvolvimento do senso de lealdade aos camadradas jagunços dos bandos a que pertenceu. Suas ligações de apreço, de amizade, sob fogo e atravé damorte, constituíram outro fator de consolidação diante do “Tristonho”: “... de todos, todos eram garantia”. (p. 123).

Um fator aleatório, nada desprezível por muita vez ser o mais absolutamente decisório, provém do fato de que Riobaldo contou sempre com a sorte (Fortuna ou Ananké). Ela o ajudou a escapar de perigos e da morte e a saber encontrar o caminho: “Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem assistido, terríveis bons-espíritos me protegem. Ipe! Com gosto...” (p. 14).

 

O sétimo recurso que Riobaldo cunhou foi o permanecer aberto e permeável à percepção da variedade das coisas do sertão, na dupla dimensão em que este se configura: “E, olhe, tudo quanto há, é aviso” (p. 131). Como espaço cênico, real, amplião: “O sertão é sem lugar”. (p. 268); e como espaço interno, reservado, pessoal: “Sertão é o sozinho”. (p. 235); “Sertão é o que eu não sei”; “Sertão: é dentro da gente” (p. 235); ou ainda: “Sertão: estes seus vazios”. (p. 27).

O sertão, em suma, é o vazio, que se permite, apenas, ser urdido e criado mediante a travessia, percurso tecido no risco, uma das litânias de Riobaldo: “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.” (p. 443).

Somente quem se mantém aberto para o trabalhoso processo de identificr-se projetiva e introjetivamente, dentro de um interjogo criativo e incessante, pode enriquecer-se o suficiente para fazer identificações mais elaboradas. No dizer do próprio Guimarães Rosa: “No serão, cada homem pode se encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e sua capacidade. Nada mais.” (4:24).

Foi Diadorim quem abriu os olhos de Riobaldo para as coisas do mundo, que, depois, passaram a pertencer a sua interioridade. Também se devem a Diadorim estarem os olhos de Riobaldo atentos e espertos, ainda nas portas da velhice.

Mas a mais admirável arma que Riobaldo utilizou, para lidar com o “Cão”, foram os afetos. São exatamente estes que embaralham sua narrativa, fazendo-a ir e vir, cada afeto ligado à lembrança ou à coisa, exigindo, forçando expressão e pedindo quase para ser resignificado e reinscrito dentro da cadeia de significações: “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.” (p. 77).

Ao falar de seu primeiro encontro com Otacília, diz: “Agora não é que tudo está me subindo mais forte na lembrança?” (p. 122).

E, já em seu período reflexivo, afirma:

 

Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de decorrido formoso. (p. 260).

Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. (p. 65)

 

         Cada lugar, paisagem e aragem; cada pássaro, bicho ou planta; cada rio e cada vereda; toda pessoa e toda situação deixam marca nesse rio pujante que a todos molha, embebe e empapa de uma marca afetiva específica. Este rio Rioblado descobriu que, mesmo nos mais áridos sertões da existência humana, os afetos podem ser estuantes e perenes como as veredas; insistentes, sinuosos e variados como elas. E que a vida só palpita no sinuoso oásis das veredas afetivas.

         O carinho com que caracteriza dezenas de companheiros, a descrição que faz de Alaripe, Fafafa, Quipes, Jiribibe, Garanço, Felisberto, Sesfredo e tantos outros mais, revelam a capacidade de investimento afetivo de Riobaldo. Ele é um homem que tem apego ao convívio com outros seres humanos. A prova disso, ele nos dá quando diz de sua vizinhança: “E sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente. Olhe o senhor: aqui pegado, vereda abaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. (p. 21).

         E segeuem o Acauã, o Compadre Ciril, o Alaripe, oJoão Nonato, o Quipes, o Pacamã-de Presas, o Fafafa, o Sesfredo, oJesualdo, o Nélson e o João Concliz. (p. 21).

 

Somente que me valessem, indas que só em breves e poucos, na idéia do sentir, uns lembrares e sustâncias. Os que, por exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigri – minha mãe me ralhando; os buritis dos buritis – assim aos cachos; o existir de Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o manuelzinho-da-croa; a imagem de minha Nossa Senhora da Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar água na praia do rio São Francisco, com bilhas nas rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tistezas; e a minha Otacília. (p. 391).

 

         Por fim, a definição assoprada de afetos possíveis de ser colhidos ao longo da história é algo de excepcional brilho e qualidade. Não se pode deixar de citar algumas:

 

Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina... (p. 21).

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. (p. 49).

Se amor? Era aquele latifúndio. (p. 148).

Amor é assim – o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão! (p. 323).

Coração cresce de todo lado. (p. 145).

Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa. (p. 45).

A liberdade é assim, movimentação. (p. 243).

Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro das grandes prisões. Ao senhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo – que a assoprada na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e mais a ar. (p. 114).

A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restante...” (p. 326).

Aversão que revém de locas profundas. (p. 144).

Quase tudo que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição? (p. 139).

Ingratidão é o defeito que a gente menos reconhece em si. (p. 412).

E amor é isso: o que bem-quer e mal faz? (p. 416).

Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações. (p. 316).

[...] o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-croa. (p. 111).

E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor? (p. 445).

A gente – o que a vida é –: é para se envergonhar [...] (p. 155).

Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. (p. 233).

O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? (p. 24).

Moço: toda saudade é uma espécie de velhice. (p. 34).

Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que o outro cozinhou quente demais. (p. 74).

Quanto maior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. (p. 142).

Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para a tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. Seja? (p. 143).

O perigo saca toda tristeza. (p. 165).

Cansaço faz tristeza, em quem ela carece. (p. 166).

O que é de paz, cresce por si. (p. 218).

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (p. 236).

 

         Em Grande sertão: veredas, temos um verdadeiro estudo, como talvez os psicanalistas e os psiquiatras ainda não o tenham feito, acerca dos afetos, do medo e da coragem.

         O medo é um tema que interessou a Riobaldo durante toda sua vida:

 

Homem? É coisa que treme. (p. 118).

Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a gente estava salva. (p. 142).

Medo? Bananeira treme de todo lado. (p. 317.

Eu tinha medo de homem humano. (p. 307).

Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz oco no ânimo do mais valente qualquer...” (p. 404).

Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero sobrequero –: é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim! (p. 298).

Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com um grande cansaço. [...] Medo do que pode haver sempre e ainda não há. (p. 118).

Medo agarra a gente é pelo enraizado. (p. 119).

O que o medo é: um produzido dentro da gente, um depositado: e que às horas se mexe, sacoleja, a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só está é fornecendo espelho. A vida é para esse sarro de medo se destruir; jagunço sabe. Outros contam de outra maneira. (p. 278).

        

A preocupação de Riobaldo com a coragem também é uma constante:

 

O Senhor acha que eu posso? Perguntei, para principiar qualquer tarefa,quase que eu sozinho nunca tive coragem. (p. 99).

– “Carece de ter coragem... (p. 99).

– Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem... (p. 85)

– Vau do mundo é a coragem... eu disse. (p. 232).

        Ei, retentei! Coragem faz coragem... (p. 284).

 

O nono recurso – talvez o mais importante de todos – que Riobaldo empregou foi a palavra.

Todos os meios anteriores não seriam suficientes – quem sabe? – para enfrentar o “Mil-Caras”, se Riobaldo não tivesse desenvolvido a enorme, pujante e contundente capacidade de nomear o sertão.

Foi por meio da palavra, específica, clara, certeira, articulada, a serviço da tentativa de expressão do indizível, que ele pôde conjurar as mais perigosas investidas do “Não-sei-que-diga”, Do-que-não-fala”. Pois o próprio “Cara-de-cão” é a negativa da palavra. O “Coisa-ruim” reina, soberano, naquilo obscuro, que ainda não foi iluminado por ela:

 

[...] eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome. (p. 86)

Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. (p. 35).

O que é pra ser – são as palavras! (p. 39).

 

É a palavra que exorciza o “Belzebu, o “Xu”. A palavra cheia, palavra-brasa-assoprada, candente, dita na presença do outro, de cuja atenção precisa e pela qual agradece. Pela palavra se redime Riobaldo em uma dupla dimensão:

1)    diante do compadre meu Quelemém, sob o aspecto místico-religioso;

2)    diante do interlocutor silencioso, sob o aspecto psicanalítico.

 

Visto assim, Grande sertão: veredas é o “diálogo monologado” de um homem que soube enfrentar o “Danado” e que porfia continuar enfrentando-o nas barrancas da velhice. Tarefa de toda vida.

Por fim, o décimo, enorme recurso de que lança mão Riobaldo é a sabedoria:

 

Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. (p. 15).

Quem desconfia, fica sábio... (p. 107).

A colheita é comum, mas o capinar é sozinho... (p. 47).

 

         E avisa: “– Vocês têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado...”         Tendo sido um homem de ação, ele conseguiu fazer a passagem a uma etapa reflexiva de sua vida, da qual extrai conclusões filosóficas da mais alta qualidade: “Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.” (p. 137).

         A reflexão surge do ócio e do cabedal afetivo: “Do jeito é que retorço meus dias: repensando. (p. 234). “Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar.” (p. 276).

         Aquilo que Riobaldo sabe é sempre o sinal de perigo – o Demo vige perto: “Ah, o que eu não entendo isso é que é capaz de me matar...” (p. 249).

Logo, no entanto, recorre a um paradoxo: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.” (p. 121). “A gente só sabe bem aquilo que não entende.” (p. 286). “Tudo é e não é...” (p. 12).

Ou, ainda, esse outro paradoxo, colocado na boca de Zé Bebelo: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...” (p. 212).  O grande objetivo de Riobaldo, no entanto, despertado em sua pulsão epistemofílica, pode ser dito com suas próprias palavras:

 

Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente, queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso por direito, e não sabe, não sabe! (p. 79).

 

E ainda:

 

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. (p. 236).

        

Esta é a colossal luta de Riobaldo. E Riobaldo é cada um de nós.

Ele aprendeu o paradoxo, na travessia, de que o diabo não há... havendo.

O que existe, o ele teme, é homem humano.

O mais? Mesquinharia... Nonada...

 

 

 

Referências bibliográficas


 

1.    BAGGIO, Marco Aurélio. “O ego e seus mecanismos de operação psíquicas .Belo Horizonte: ?, 1982CAMPOS, Augusto de. Um lance de “Dês” do Grande sertão. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 321-349.

2.    CÂNDIDO, Antônio. O homem dos avessos. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 294-309.

3.    LORENZ. Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 62-97.

4.    PRADO, Mário P. de A.  Narcisismo e estados de entranhamento. Rio de Janeiro1978.

5.    PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Don Riobaldo do Urucuia. Cavaleiro dos Campos Gerais. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 310-320.

6.    RANK, Otto. El mito del nacimiento del heroi. Barcelona: Paidós, 1981.

7.    ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Obra completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

8.    WISDOM, J. O. A methodological approach to the problem of hystery. Int. J. Psycho-Anal., XLII, 3, 1961



[1] Psiquiatra. Psicanalista. Presidente Emerito do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.