CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DE
RIOBALDO
Marco Aurélio Baggio[1]
O senhor... Mire veja: o mais importante e
bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. 8:20
Às portas da velhice, já no “range-range”, quase
imóvel “barranqueiro”, o fazendeiro Riobaldo rebe um visitante privilegiado,
“homem soberano” circunspecto (p. 46) e estabelece com ele uma conversa que
dura três dias e que se reveste de tal especificidade que nela reconhecemos, de
total direito, uma verdadeira situação psicanalítica:
Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando
isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor
é de fora, meu amigo mas meu estanho. Mas, talvez por isso mesmo. Falar com o
estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito:
faz do jeito que falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da
gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o mundo
se fala? (p. 33)
Riobaldo
depara com um interlocutor atento, interessado, que, pelos seu silêncio e
estímulo, ajuda o velho a ir enfrentando com gradativo êxito, e cumprir três
particulares tarefas.
1) a de
contar:
Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que
já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer
balancê, de se remexerem dos lugares. (p. 142).
2) a de
ordenar as lembranças:
O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou
remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de
feito, meu coração, naquelas lembranças Ou quero enfiar a idéia, achar o
rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes
não é fácil. Fé que não é. (p. 135).
3) e, mais
importante, a de procurar refazer, mais uma vez, a
travessia desua vida, que representa a procura de si
mesmo.
É esse extenso diálogo
monologado que, à semelhança de um processo psicanalítico, cobre as 385 páginas
do volume II da Ficção completa
(Editora Nova Aguilar, 1994) desse monumento literário e artístico que é
Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.
Riobaldo é um homem rústico do
sertão mineiro, que adquiriu tamanha acuidade no trato com as coisas e gentes,
que se tornou um homem de grande sabedoria. Ele é um filósofo do ser, na
acepção plena. Sua filosofia é extraída, extirpada, dificultosamente, de sua
própria vida. Ele trata dos grandes lugares-comuns do Homem: o Bem e o Mal; o
Amor e o Ódio; Deus e o Demônio; a Vida e a Morte; o Ser e o Não-Ser; o
Prosaico e o Absurdo da existência. Além disso, burila o instrumento racional,
ao mesmo tempo que sabe ceder espaço ao paradoxal, que enjambra o
suceder da vida.
É essa riqueza que permite, a
cada um de nós, seguir na trilha indicada por Antônio Cândido:1:294
“Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício”, refazendo o jogo
de conceitos e de ensinamentos que tornam esse livro um dos mais notáveis da
literatura mundial, em todas as épocas.
O personagem Riobaldo
desenvolve uma expressividade própria, vincada na linguagem oral, profundamente
revitalizada, marcada pela palavra ardente, em estado nascente, despida das
cinzas e de todas as escórias que o desgaste do uso repetido acarretam.
A questão que, como um fio,
obsessiona a vida de Riobaldo é o Demônio: “O diabo existe e não existe” (p.
11); “Arre, ele está misturado em tudo” (p. 12).
A cada momento, em cada etapa
percorrida, ou em cada caso inserido na narrativa, o Demônio irrompe,
imiscui-se, torna-se presença irrecusável, exigindo de Riobaldo um ingente
esforço para perceber suas “mil-caras” e, arduamente, tentar conjurá-lo,
negá-lo ou expeli-lo.
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os
crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por
si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! é o que digo. (p. 11).
Tão forte é
a presença d’o cujo, que Riobaldo chega a pedir:
Olhe:
o que devia haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições
gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não
existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por
que o Governo não cuida?!
Mas, diabolicamente, as
mil-artes do Capiroto ressurgem, numa verdadeira compulsão repetitiva, como
algo que provém dos mundos ínferos – “Tudo sai é mesmo de escuros buracos,
tirante o que vem do céu” – e que persegue, inexoravelmente, o ex-jagunço
Riobaldo.
Este, por sua vez, transcende o
plano prosaico, atingindo o plano fantástico, onde torna um verdadeiro
cavaleiro andande, um paladino,2 que, imbuído dos atributos rituais,
não cessa de lhe dar combate. Riobaldo, como todo grande herói, tem nascimento
ilegítimo.3 Inicia sua aprendizagem como homem de confiança do
Hermógenes; destaca-se por sua pontaria certeira e é ungido cavaleiro no gesto
simbólico de Joca Ramiro, que lhe dá um rifle especial. Após o ritual de
iniciação nas Veredas-Mortas, onde, em vigília e sob provações diante do medo,
sofre um processo de transformação interna, de transmentação, que o habilita a
exercer a chefia do bando. Só assim pode executar a tarefa que lhe assomava
como sendo maior do que as suas capacidades: vingar a morte de Joca Ramiro,
punindo e exterminando seus covardes assassinos, os “Judas” Ricardão e
Hermógenes.
Se quisermos uma aproximação
mais moderna, no entanto, podemos identificar, no longo relato de Riobaldo,
feito diante de um interlocutor discreto e admirado de suas qualidades, um
exemplo acabado de um processo psicanalítico, em que o narrador discorre sobre
as renhidas escaramuças que se passam no sertão, isto é, no seu mundo intero,
entre ele, Riobaldo, pessoa identificada, e seus demônios interiores:
Conto
ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que
eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. (p. 175).
Estou
contanto fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. (p. 19).
Vou
lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei.
Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas,
veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (p. 79).
Riobaldo
teve um repetido contato com o “Cramulhão”. Como exemplo, no auge da narrativa,
no arraial do Paredão, ele viu, impotente, sem dúvida manietado pela “Figura”,
do alto do Sobrado, solto: “O diabo na rua, no meio do redemunho” (p. 77).
Trava-se a
luta final entre o pactário Hermógenes e o amor de Riobaldo, Diadorim
“belo-feroz” (p. 65):
Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de
corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só.
[...] Cortavam toucinh debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. (p. 450)
Esse
foi o dia na vida de Riobaldo, dia para o qual tinha nascido e para o qual
esteve preparando-se todo o tempo. Dia de vitória e de vingança sobre o
pactário Hermógenes e seu bando. Mas o “Galhardo” cobra o seu alto preço.
Imobilizado por artes diabólicas, Riobaldo não combate o Judas diretamente e
não pode fornecer proteção ao seu amigo Diadorim no momento azado. Falha com
Diadorim, uma vez mais. Em toda uma vertente
de sua existência, aquela, muito rica, que representava suas relações
com Diadorim fora debalde. Cumpre-se a sina inscrita em seu nome: Rio Baldo,
rio, sim, eterno, estuante, perene; mas baldado em todo um aspecto
constituitivo de seu ser: exatamente aquela vertente que tinha tudo a ver com
seu alter ego, seu “amigor” Diadorim.
O
desejo de vingança tinha sido inoculado em Riobaldo por Diadorim, cujo pai “era
um imperador em três alturas” (p. 138), “o par-de-frança” (p. 37), “lord” 9p.
197). Joca Ramiro tinha sido assassinado, à traição, por aqueles que, até
então, eram seus suseranos, Hermógenes e Ricardão. Isso ocorrera cerca de dois
meses após os bandos de Joca Ramiro haverem vencido as tropas conduzidas por Zé
Bebelo. Aprisionado, este exige julgamento, o que se dá na Fazenda
Sempre-Verde.
Acusado
por Ricardão e Hermógenes, ávidos de sangue, Zé Bebelo é julgado e absolvido
por Joca Ramiro, que o desterra para Goiás. Riobaldo teve intervenção decisiva,
defendendo a vida de Zé Bebelo.
Diadorim,
na verdade o jagunço Reinaldo, desmaia ao saber do assassinato do pai. Joca
Ramiro era uma figura grandiosa, totêmica, com a qual Diadorim tivera uma total
identificação masculina.
A
deslealdade e a traição são os piores crimes no sertão, exigindo vingança:
Tá que, mas eu quero que esse dia chegue!, Diradorim
dizia – Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto
aqueles dois monstros não forem bem acabados... E ele supeirava de ódio como se
fosse por amor... (p. 26)
A
conseqüência disso é que:
E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim
– mas não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois monstros
vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. (p. 26)
O
processo de identificações projetivas e introjetivas fora tão intenso entre os
amigos Reinaldo e Riobaldo, que ambos se misturavam numa matriz simbiótica, na
qual um obtinha, por complemento, aquilo de que carecia e que sobrava no outro.
O
Reinaldo tinha coragem, determinação, certezas. Tinha uma enorme capacidade de
revelação do mundo exerno: “Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono
foi Diadorim...” (p. 23). E, mais ainda:
Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas
essas quisquilhas da natureza (p. 25).
Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes
gerais são formosos (p. 46).
Além
disso, revelava uma encantadora capacidade de evocação dos afetos mais ternos,
personificados nas aves. Lembremos aqui, na voz de Riobaldo, a internalização
sofrida, a partir da observação semelhante de Diadorim, no início da narrativa:
“E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desmpenha tão catita – o
manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...” (p. 445
Reinaldo
tinha um pai esplendoroso, figura mítica do sertão. Já Riobaldo carecia de pai
reconhecido: na verdade, este era um homem de coragem variável e de iniciaativa
parca. Riobaldo, contudo, sabia aprender e aprendera até a ter coragem. Atirava
bem e... sabia falar.
Ambos
precisavam e gostavam um do outro, admiravam-se e identificavam-se até o
entranhamento.4 Já não se diferenciavam mais: o que era de um era do
outro. O projeto de Diadorim se torna o de Riobaldo, o objetivo de Riobaldo
passa a ser, como cavaleiro andante, paladino do sertão, o de resgatar
Diadorim, preso nas teias da vingança do assassinato do pai. Quase sem o saber,
um comanda o desejo do outro:
Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das
brasas. Quase que a gente não abria a boca; mas era um delém queme tirava para
ele – o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de vexame,
com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto (p. 25).
É dessa
forma que Riobaldo se liga e se prende a Diadorim, assumindo como sua a tarefa
de vingança que era dele, primariamente: “As vontades de minha pessoa estavam
entregues a Diadorim”. (p. 31).
Depois
de muito hesitar, a intenção de se tornar chefe se insinua, e a decisão de ir à
noite, à encruzilhada das Veredas-Mortas, convocar o Demônio, com a intenção de
com ele fazer um pacto, se estabelece. Venderia sua alma ao Demônio, com a
condição de que ele lhe desse forças e capacidade de chefia para enfrentar,
vencer e exterminar os “Judas”.
Desafiado
a dar sinal de sua presença, o “Maligno” não comparece. Riobaldo cresce no seu
sentimento de mesmidade:
Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu
era que dava a ordem [...] Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali,
querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. (p. 317).
É
ali, nas Veredas- Mortas, atravessando o rito de iniciação, que Riobaldo, já
treinado e preparado sem o saber, tem acrescida a certeza de inteireza de sua
pessoa e sente a pujança das capacidades recém-adquiridas, convocadas que foram
às fontes mais obscuras de seu ser:
Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas
idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos
esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por
minha própria vontade (p. 321).
Desafia Zé
Bebelo, ao mandar comprar remédio para maleita. Pula no meio dos cavalos
inquietos, xingando: – “Barazbú” – e, para sua surpresa, o cavalão se aquietou.
Sêo
Habão lhe oferece o cavalo, sendo o primeiro a reconhecer suas novas qualidades
de chefia: “[...] era meu o cavalo grande [...]” (p. 325); “[...] o cavalo
Siruiz [...]”. (p. 326).
O
cavalo é o complemento e o instrumento indispensável, no sertão, para ele poder
cumprir sua tarefa.
O
longo processo de inciação ritual do cavaleiro Riobaldo estava em vias de se
completar. Bastava, apenas, assumir a chefia nominal do bando. A oportunidade
surge imediatamente, com a chegada de João Goanhá e seus homens:
(
[...] só disse,
– Ah, agora quem aqui é que é o Chefe?
Nenhum deles. (Zé Bebelo e João Goanhá) E eu – ah –
eu era quem menos sabia – porque o Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo!” (p.
330).
Ali, era a
hora. (p. 330).
Chefe
Riobaldo [...] (p. 331).
E Zé Bebelo,
reconhecendo: “Mas, você é o outro homem, você revira o sertão... Tu é terrível,
que nem um urutú branco...” (p. 331).
Dessa forma,
o jagunço Riobado, “Cerzidor”, “Tatarana, lagarta-de-fogo”, tornou-se o chefe
“Urutú-Branco”.
A sucessão
de nomes, se nos fala da inconstância e da dubiedade da pessoa Riobado, por
outro lado, assinala a evolução psicológica ascendente do personagem.
Mas quem é
Riobaldo?
É o filho
único da Bigri, mulher das Gerais, filho de pai desconhecido. Adoece, e a mãe
faz promessa de ele tirar esmola, após sarar: metade para mandar rezar missa e
metade para pôr numa cabaça e jogar no
meio do Rio São Franciso, “mode” ir parar no Santuário do Santo Senhor
Bom-Jesus da Lapa.
Cumprindo a
promessa, Riobaldo vai tirar esmola no “porto” do Rio-de-Janeiro, pequeno
afluente do Rio do Chico. Lá, aos 14 anos, ele conhece o Menino.
Uma ligação
forte, imediata, se estabelece entre os dois. O Menino tem “dinheiro de seu”,
compra um quarto de queijo e um pedço de rapadura e, sem pedir licença ao tio,
convida Riobaldo a passear de canoa. Com seus esmartes olhos verdes, o Menino
mostra os cágados, o mato de beira, as flores e os pássaros na margem do rio.
Riobaldo admira tudo e começa a introjetar todo um mundo novo, fluvial, que,
até então, lhe escapara. O Menino tranqüliza, com sua atitude, os medos de
Riobaldo e ordena ao menino-barranqueiro a travessia do Rio São Francisco:
Resolvi
ter brio, diz Riobaldo (p. 81).
Eu
estava indo a meu esmo (p. 81).
Tive
medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo (p. 83).
Aí,
o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha
vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia (p.83).
E
o menino pôs a mão na minha. [...] – “Você também é animoso...?” – me disse.
Amanheci minha aurora. (p. 84).
Esse é o
primeiro dos muitos elogios provindos do Menino, que, mais tarde, se revela
Reinaldo-Diadorim, elogios que nutrem e reforçam o lado corajoso de Riobaldo.
Na outra
margem do grande rio, na intimidade do colóquio entre os dois, enquanto
repartem o farnel, surge a maldade sob a forma de um rapaz, mulato debochado: “–
Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...” (p. 85). – “Hem, hem? E eu? Também
quero!” (p. 85).
Insinua-se a
sexualidade suspeita, suja, através do querer invasivo do outro, inoportuno. O
que Riobaldo presencia é a atitude de tranqüila sedução do Menino e o golpe
rápido, certeiro, de cobra, da “quicé” (faquinha) perfurando a coxa do mulato.
E, diante dos temores de Riobaldo, a advertência que se tornou lema: “– Carece
de ter coragem. Carece de ter muita coragem...” – diz o Menino (p. 85).
Riobaldo
quer saber:
“– Você é
valente, sempre?” (p. 85).
E a
resposta:
“– Sou
diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito
diferente...” (p. 86).
Anos depois,
Riobaldo se pergunta, junto ao visitante-ouvinte: “Mais, que coragem inteirada
em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo?” (p. 86).
Esse menino
entrou na vida de Riobaldo, entranhou a fundo seus interiores. Era um menino
bonito, diferente, rico de qualidades, apreciado. O menino que ele-queria-ser:
“[...] eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa
importante falta nome.” (p. 86).
Bigri morre
logo a seguir, e Riobaldo é levado, em viagem de seis dias, para a Fazenda São
Gregório, pertencente ao seu padrinho, Sêo Selorico Mendes, que lhe proporciona
escola e vida boa, “na lordeza”. (p. 95).
Em
conversas, o padrinho exibe seu apreço
pela vida jagunça: “– Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política.”
(p. 87) – e lhe dá as primeiras armas.
A descoberta
do dom da pontaria certeira é uma dádiva que corrobora a tendência para a vida
d’armas.
A descoberta
da sexualidade se dá com Rosa’uarda, filha de Sêo Assis Wababa, na vila do
Curralinho. É uma sexualidade quente, erótica, principiante.
O grande
acontecimento, ainda na Fazenda, é a chegada do famoso Joca Ramiro, com seus
lugares-tenentes, entre eles o Hermógenes, aos quais Riobaldo pode prestar
serviços.
Aos poucos,
Padrinho Selorico se revela um homem medroso e muito repetitivo em seus casos:
“Meu padrinho era antipático”. (p. 95). De repente, quando dizem claramente a
Riobaldo que ele, de fato, era seu pai, ele se desorienta, revolta-se e atua,
fugindo: “[...] o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra”. (p. 95). “Eu
queria o ferver.” (p. 96).
Propõe, e
logo se arrepende, trabalhar com o Alemão Vupes. Em seguida, procura seu
professor, Mestre Lucas, que, por sorte, o encaminha como professor para a
Fazenda Nhanva:
“O
senhor acha que eu posso?” – perguntei; para principiar qualquer tarefa, quase
que eu sozinho nunca tive coragem. – ‘Ei, pode!’ – o Mestre Lucas declarou. (p.
99).
Para
sua surpresa, seu aluno único é o fazendeiro Zé Bebelo, então empenhado em
campanha de extirpar a jagunçada do sertão.
O
comandante Zé Bebelo era aluno voraz, aprendia rápido: era a própria
inteligência e, em um mês, dominava com perfeição todos os conhecimentos que
Riobaldo lhe pudera fornecer.
Sem
perceber, Riobaldo começa a aprender como Zé Bebelo aprendia, tirava
raciocínios e expedia ordens. A admiração que tem pelo aluno o faz mal perceber
que o projeto de Zé Bebelo é exterminar os bandos de jagunços, talvez a serviço
do Governo, para poder entrar na política e se fazer deputado. E presencia a
ação moderadora de Zé Bebelo, proibindo a
maldade gratuita contra
os prisioneiros: “– Eh, de jeito
nenhum, epa! Não consinto covardias de perversidades!” (p. 105).
Muitas
coisas, no entanto, não lhe agradam nas tropelias com o bando de Zé Bebelo.
Como aprendiz, adolescente, Riobaldo usa da licença da evasão. Pela segunda
vez, foge.
Os
acasos do sertão o levam à cafua de uma mulher casada, onde goza o amor. E,
enquanto espera a promessa de mais, vai para a casa do pai da mulher, onde,
falando além, para se vangloriar, conta de seu encontro com Joca Ramiro, na
fazendo do padrinho e conclui: “[...] porque meu seguimento era por Joca
Ramiro, em coração em devoção.” (p. 106).
Acordado
para jantar, topa com os ramiros. E...
Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso,
era, pois sabe o senhor quem, mas quem mesmo? Era o Menino! [...] Os olhos
verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pesanas, a boca melhor
bonita, o nariz fino, afiladinho. (p. 107).
Reinaldo – ele se chamava. Era o Menino do Porto, já
expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta eu não
podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei
nenhuma; podia? (p. 109).
Anos depois,
já no período de reflexão, Riobaldo se interroga: “Então, o senhor me responda:
o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe?” (p.
108).
A
teia do destino está traçada: deixara a casa do “padrinho”, por se sentir
envergonhado do pai que tivera; esgotara seus ensinamentos ao aluno, que, em um
mês, já sabia mais do que ele; deixara de vez as tropelias aprontadas pelos
soldados de Zé Bebelo; contara vanglórias sobre a cena com Joca Ramiro, na
Fazenda São Gregório; reencontrara o Menino na pessoa de Reinaldo e... havia
uma tarefa importante a cumprir: “Aquilo era munição de contos e contos de réis
[...]” (p. 110), a fazer chegar às mãos de Joca Ramiro.
É
dessa maneira que Riobaldo se identifica e se torna um ramiro.
A
amizade com Reinaldo se desdobra numa vastidão de afetos plenos, deliciosos,
que, com o passar do tempo, vão-se tornando mais intenos e tingidos pela
impossibilidade da vazão total:
Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele.
[...] Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para
ele... (p. 19)
Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga
o senhor: como um feitiço? Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e
nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu
sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. (p. 114).
É por intermédio de Diadorim que, plenamente
identificado, Riobaldo descobre as belezas e os nomes das coisas do sertão. O
manuelzinho-da-croa, que “é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo
e rio-acima...” (p. 11), torna-se o símbolo da amizade e da ternura entre os
dois amigos.
Através
dos olhos verdes de Diadorim, Riobaldo vê o mundo que é o Sertão: por fora,
espaço externo, real, vastidão; por dentro, espaço interno, dos valores e dos
afetos: “Os afetos. Docura do olhar dele me transformou para os olhos de
velhice da minha mãe. Então eu vi as cores do mundo.” (p. 115).
A equivalência
da amizade de dois rapazes, que se descobrem parceiros iguais, no respeito e na
admiração mútua, transparece nessa observação de Diadorim: “– Riobaldo...
Reinaldo... [...] Dão par, os nomes de nós dois [...] (p. 112).
Diadorim
funciona como o anjo da guarda de Riobaldo nos seus primeiros embates na vida
jagunça. Diadorim é a coragem inteirada e a certeza de objetivos personalizada,
o que se torna admirável a um Riobaldo: “Confesso. Eu cá não madruguei em ser
corajoso; isto é: coragem em mim era variável” (p. 38), mas que termina sendo
mortífero para Diadorim.
De toda
forma, o que Riobaldo e Diadorim vivem é uma relação plena, que os realimenta
constantemente, mantendo-os íntegros, persistentes em seus objetivos,
recuperados das andanças e dos combates
e, sobretudo, protegidos do possível embrutecimento natural que sofre um
jagunço. Esse embrutecimento se resume, por exemplo, na voz de Alaripe: “– A
pois, isto... Homem, sei? Como que já vivi tanto, grossamente, que desgastei a
capacidade de querer me entender em coisa nenhuma...” (p. 432).
A amizade
desabrocha em fulgurante amor entre dois guerreiros, que, por um lado, usufruem
e se alimentam desse amor e, por outro, sentem-se acossados, perseguidos, à
medida que têm de manter esse sentimento dentro das reprimidas roupas de couro
da vida jagunça. Para Riobaldo, torna-se uma tortura a ilegitimidade do
sentimento por um rapaz: “ E eu – mal de não me consentir em nenhum afirmar das
docemente coisas que são feitas – eu me esquecia de tudo, num espairecer de
contentamento, deixava de pensar.” (p. 25).
Vemos aí
que um aspecto constitutivo do complexo de relações afetivas mantidas pelos
dois parceiros, aquele atribuível a uma pulsão parcial homossexual, exige ser
reprimido, permanecendo como “um-não-dito” e, mais, como “um-não-feito”, que
pode atingir intensidades perturbadoras, perfeitamente “diabólicas”.
Talvez
essa importante parte da relação de Riobaldo com Diadorim pudesse ser
interpretada como sendo uma parte do sistema self (si mesmo) de
Riobaldo, que foi internalizada junto com todos os demais aspectos de Diadorim
– a coragem, a ternura, a determinação, a beleza, a amizade, a capacidade de
ver o mundo com seus particulares “olhos verdes”, a origem derivada de um pai
mítico –, mas que, em virtude da necessidade de repressão, não pode ser
assimilada ao núcleo desse self, como, certamente, o foram as outras.
Essa pulsão parcial homossexual constitui um “objeto orbital”5 do self,
excêntrico ao núcleo, e tem dinâmica e gravitação próprias, exigindo, a molde
de um introjecto patológico, o estabelecimento de relações do ojbeto interno
com o núcleo do self. À medida que essa tendência homossexual se
reforça, por não poder escoar-se legitimamente, ela se torna intermitente em
sua imperiosidade de expressão: naqueles momentos em que ameaça irromper e
assumir o núcleo do sentimento de mesmidade, o self autoriza o sistema
Ego a operacionalizar defesas. A projeção é a primeira delas, arremessando,
temporariamente, o diabólico perturbador para fora do self, além, para o
Não-self, onde impera o “Outro”. É nesse lugar – fora do self –
que é identificado o perseguidor. E a função dele, perseguidor projetado, é
tentar, por mil modos, mediante mil medos, ser reintrojetado no psiquismo, por
uma simples questão de querência: é lá que teve sua origem. O perigo constante,
derivado daquilo que, tendo sido, uma vez, internalizado e não assimilado pelo
núcelio do self, torna-se um objeto interno orbital. Este, sob certas
cirbunstâncias dinâmicas e econômicas, tem de ser expelido, projtetado para
fora do self e representa a ameaça perene de reintrojeção invasiva, que
pode inundar o self e sobrepujar a capacidade de defesa do Ego.
É dessa
desarmonia, derivada da disparidade entre os diferentes graus de legitimidade
dos distintos conteúdo afetivos e sexuais, provenientes da relação com o
adorado Diadorim, que entendemos que fica um resto inquietante, a clamar por
“vir-a-ser”, mesmo depois, muitos anos passados. Esse é um dos móveis
principais que acionam e articulam o relato de Riobaldo.
A
impossibilidade do amor cheio, entre dois jagunços, é elaborada pelo primeiro
dos dois únicos e escassos sonhos que estão presentes na longa narrativa de
Riobaldo: “Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por
debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...” (p.
41). Passar por baixo de um arco-íris simboliza a possibilidade de mudar,
magicamente, de sexo, o que realizaria o desejo de Riobaldo de que seu amigo
fosse uma mulher. Mas essa possibilidade desejada é encarada por Riobaldo como
uma “sonhice”, palavra inventada com os significantes de “sonho” e “tolice”:
palavra-porta-palavras.
Para
Diadorim, a realização do amor entre ambos era uma possibilidade quase certa.
Ele tinha sido criado sob forte identificação com a figura masculina,
valorizada no homem-jagunço. Tivera de reprimir e negar, radicalmente, toda sua
doce vertente feminina, que, mesmo assim, ou por isso mesmo, filtrava-se por
todo seu ser e era captada pela sensibilidade de seu amigo. A tudo isso se
somara, complicando e forçando a inteireza do self de Diadorim,
sucessivamente, o amor pelo companheiro, o ódio e a fanática necessidade de
vingança contra os “Judas” e o sentimento de culpa por saber estar enganando,
ainda que involuntariamente, o “amigor” (amigo+amor). É sob estado de forte
tensão que Diadorim esboça uma solução, quando promete a Riobaldo: “– ...
Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver
repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...” (p. 386).
Tais
tentativas de reparação são muito pouco eficazes diante da desordem conqusa que
é a vida interna de cada um: “A vida é muito discordada. Tem parte. Tem artes.
Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.”
(p. 381). O que termina acontecendo é um desvio na relação entre os dois
parceiros. Senão, vejamos...
Diadorim,
batizado “Deodorina”, filha única de Joca Ramiro, que a quis varão e, assim,
transforma-a, pelas muito boas razões terceiras de
1) não ter
tido um herdeiro;
2) vir a
precisar de um substituto; e, principalmente,
3) a mulher
no sertão valer muito pouco: “– ‘Mulher é gente tão infeliz...’ – me disse
Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias.” (p. 133).
Não tendo
tido uma figura materna, que cedo desapreceu de sua vida, Diadorim é absorvido
pelo desejo da figura paterna magnífica. Sabe que é mulher biológica, mulher em
gênero e potencial. Confiado no amor de Riobaldo e porfiado em vingar o
assassinato do pai, Diadorim, de alguma forma, espera poder reverter-se de
homem-jagunço em moça-mulher para aquele a quem, de fato, se submete: “–
Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...” (p. 428).
Por
instância de Diadorim, Riobaldo aceita o pacto de não procurar mulher. O
reprimido exige que também o outro o seja:
Vai, e vem, me intimou a um trato: que, enquanto a
gente estivesse em ofício de bando, que nenum de nós dois não botasse mão em
nenhuma mulher. Afiançado, falou: “Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo,
feito jurado nos Santos-Evangelhos! Sevengornhice e airado avejo servem só para
tirar da gente o poder da coragem...Você cruza e jura?! (p. 147).
Mas, ao
cabo de meses, sua natureza de homem fala mais forte, ele trai a jura feita a
Diadorim:
Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do
corpo, malandragem. (p. 147).
Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra:
faceirei. Severgonhei. Estive com o melhor de mulheres. Na Malhada, comprei
roupas. O vau do mundo é a alegria! (p. 231).
Diadorim
sofre calado:
Mas
é em Riobaldo que questão do amor sofre
uma tríplice dissociação, cindindo, com isso, a figura feminina em, pelo menos,
três.
Há
o amor por Nhorinhá e pelas demais mulheres do sertão, presas fáceis dos
jagunços, muito embora Riobaldo se mantenha respeitoso com todas elas: “O que
eu queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu ser” (p. 133).
Nonhrinhá é o gostoso exemplo da mulher “prostitutriz”, “militriz”, que atinge
o auge do usufruto carnal: “Renego não, o que me é de doces usos: graças a Deus
toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs,
a gente preza melhor delas, dessas belas bondades”. (p. 180).
Do
Urucuia, “rio de meu amor” (p. 58), surge Otacília, musa inspiradora de suas
façanhas, mulher idealizada, concebida e protegida pura, resguardada da sujeira
da vida, a qual evoca o prêmio por todas as andanças e canseiras pelo sertão.
A
terceira figura de amor é a mais forte de todas, aquela que o acompnaha
diuturnamente e pela qual os seus sentimentos são mais exigidos e aguçados: Diadorim.
É uma figura feminina particularmente insólita, na medida em que está
travestida de couro: “Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de
prata e meu amor de ouro.” (p. 42).
Por
duas vezes, a pressão interna sobe a tal ponto, que Riobaldo tenta uma solução
já empregada eficazmente por ele: propõe a Diadorim a fuga do bando:
A já, que ia m’embora, fugia. (p. 140).
–
Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que já é o depois-de-véspera, que
os vivos também têm de viver por só si, e vingança não é promessa a Deus, nem
sermão de sacramento. (p. 283).
– Vou e vou. Só inda acompanho é até o
Currais-do-Padre. Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E trovejo no mundo...
(p. 284)
Este
o chama pela palavra, impedindo o uso da fuga: “– Ei, retenteia! Coragem faz
coragem... “ (p. 284). Pois Diadorim o possuía. Entranhara-o.6
Enquanto Diadorim não recuperasse a liberdade de sua vida, perdida na sede de
vingança aos “Judas”, dele Riobaldo não poderia separar-se. Ele também não se
vingara do pai, Selorico Mendes, que o gerara filho bastardo? “Agora,
derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu velho, a
curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.”
(p. 90).
É
assim que o jagunço Riobaldo, primeiro “Cerzidor”, depois “Tatarana,
lagarta-de-fogo” (p. 126), admira Diadorim, “belo feroz” (p. 65): “Só tenho
Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo...”, reforça Diadorim (p. 140).
Perdido
por Joca Ramiro, por lealdade e mais inteira possessão, Riobaldo, sem perceber,
assume ser o instrumento a mais de que Diadorim precisa para se chegarem aos
“Judas”.
Assinalado
por Medeiro Vaz, em seu dia de “alta tarefa”, Riobaldo recusa a chefia do bando
e impede que Diadorim a assuma, indicando Marcelino Pampa. Logo percebe que
Marcelino não tem talento para tanto.
A
sorte os faz deparar com Zé Bebelo, de volta de Goiás, com um exército de cinco
urucuianos, querendo vingar a morte de Joca Ramiro, que, poucos meses antes, havia-o vencido e
julgado, e além disso, lhe havia perdoado. Felizes, vassalam e entregam a chefia total do
bando a Zé Bebelo.
Zé
Bebelo, porém, não tem o calor de sangue nos projetos de vingança e, aos
poucos, vai-se perdendo nas andanças pelo sertão. Perdido de rota, descobrem os
catrumanos e defrontam com a peste que grassa na aldeia do Sucruiú. Lá topam
com a miséria mais total da condição humana: “Nós estávamos em fundos fundos”
(p. 289).
E Zé Bebelo
medeia de medo da peste: “Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz
oco no ânimo do mais valente qualquer.” (p. 404).
Aceleradamente,
Zé Bebelo é desidealizado por Riobaldo:
Zé Bebelo, para mim, tinha gastado as vantagens. Zé
Bebelo murchava muda na cor, não existia mais em viço para desatinos, nada que
falava era mais de se reproduzir, aqueles exageros bonitos e tamanhos rasgos.
(p. 306).
Aquela mente de prosa já me aborrecia. (p. 240).
Riobaldo
já havia visto, atuantes, comandantes do porte de Hermógenes, Titão Passos,
Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Sêo Candelário, João Goanhá e havia
percebido a primaz importância da cabeça-de-comando para um bando, após a
desairosa indicação de Marcelino Pampa. Muitas coisas, sem querer, mas muito
querendo, já havia, certamente, internalizado. Rejeitara a chefia, porém já
fora inoculado pelos seus virusinhos:
Â, aí observei: como Marcelino Pampa desde o instante
expunha outro ar de ser, a sisuda extravagância, soberdo satisfeito! Ser chefe
– por fora um pouquinho amarga; mas por dentro, é rosinhas flores. (p. 66).
E, num
momento culminante, de mais alta significação em sua vida, do qual participara,
jagunço ainda, decisivamente – “O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa
séria de importante.” (p. 216) –, Riobaldo experimenta o fascínio do poder,
vendo-o exercido por Joca Ramiro:
Ali naquel’horinha-meu-senhor-foi que eu lambi idéia
de como às vezes devia de ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a
massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente. (p. 207).
E, na
fazenda de Sêo Habão, o fruto amadurecera, chegara o tempo...
Seu
projeto era simples. Contra os “podres diabólicos do Hemógenes, ele pediria
idênticos poderes ao Cara-de-Cão”, ao preço que fosse. Sua alma, pois não?
Venceria os “Judas”, libertando Diadorim da sede que o consumia, e, largando
aquela vida, casava-se com a doma do sonho, a prometida Otacília, levando
Diadorim para morar perto, lá no Urucuia. Bastava coragem enfrentar o “Canho”.
Mas Diadorim havia-lhe fornecido o meio: “– Vau do mundo é a coragem...” (p.
232).
Ele,
Riobaldo, de próprio braço seu, havia-se aumentado, “no interno das coragens”
(p. 17). Jagunço, ele havia aprendido: “Bananeira treme de todo lado” (p. 317).
E “Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!” (p.
69).
A
suprema prova: o enfrentamento, sozinho, do Diabo, no meio da noite tenebrosa,
na encruzilhada das Veredas-Mortas. Isso equivale ao desafio do dragão
arquetítpico em seu covil: açulá-lo, afrontá-lo e vencê-lo, ao risco de ser
sobrepujado e vencido irreparavelmente por ele.
Nesse
verdadeiro rito de passagem, nessa travessia interior, Riobaldo suplanta uma
espécie decisiva de medo, que o impedia, até então, de se apossar de uma vasta
parcela de si mesmo. Rompido, por enfrentamento ritual, esse medo fantasmático,
Riobaldo pode então, seguramente, concluir: “Solto, por si, cidadão, é que não
tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo.” (p. 11). E, a seguir, aufere o
estuante sentimento de plenitude de sua mesmidade, numa vivência de
locupletação do self, assume, então, o totêmico Cavalo Siruiz e a
chefia, para a qual estava sendo preparado e se preparando.
Ser chefe é saber expedir ordens e
saber querer. Cheio de si, com vontade própria, sem preparação prévia, arremete
por onde Medeiro vaz fracassara. O Liso do Sussuarão.
O
deserto da alma humana, representada pelo topônimo – “raso” infernal do
Sussuarão –, dessa vez se oferece a sua transposição em nove dias. É como se a
força e o discernimento de todos os grandes chefes, seus predecessores,
tivessem sido concentrados em Riobaldo, herdeiro e maior de todos. O chefe
mudara, por dentro de seus espessos e avessos; mudava, conseqüentemente, a
aspereza da realidade, acomodando-se resiliente.
Arrasam
a fazenda do Hermógenes, além do Carinhanha, no extremo sudoeste da Bahia, e
arrebatam sua mulher como refém e como isca.
Com
esse lance, Riobaldo inverte a situação estratégica: o ofendido, agora, é o
Hermógenes. É ele quem, furioso, irá procurar o bando chefiado pelo
Urutú-Branco, em vez de continuar fugindo.
O
cenário está montado para o desenlace.
Mas
várias peripécias tem de enfrentar Riobaldo, agora com o diabo no corpo, cheio
de si, raiando o sadismo e a crueldade, ameaçando matar o viajor, ou quem
econtrasse primeiro na estrada. Desabridado, encontra os olhos do leproso entre
a vegetação: infecto, repugnante, repelente, tal como, mesmo, um aspecto dele
mesmo, espalhante do mal. A custo, havia conseguido evitar matar Sêo Habão.
Diadorim é seu moderador, seu anjo da guarda mais uma vez.
Decepciona-se
ao perceber que ninguém conhecia, no grande sertão, o chefe Urutú-Branco.
Anseia ver-se cantando, em suas façanhas, pelos trovadores.
Era
tempo de novas proezas.
No
Tamanduá-tão, Riobaldo usa tudo que aprendera com Medeiro Vaz, Zé Bebelo e Joca
Ramiro. Dá surpresa e tem vitória total sobre o bando de um dos “Judas”,
Ricardão.
E,
por duas vezes, contém Diadorim. Sofreia as rédeas do cavalo deste, quando ele
quer arremeter, no início da batalha. E o impede de ir, a faca, sobre Ricardão,
instado a sair do casebre onde se refugiara, dando nele um único tiro. Frustra
Diadorim, – por que não? –, no intuito de preservá-lo do perigo.
Para
abatalha final, o chefe Urutú-Branco dispõe os drongos de João Goanhá e de João
Concliz nos altos, no Cererê-Velho, enquanto distribui a coutra metade dos
homens no arraial do Paaredão, distante seis léguas.
Isso
posto, o imprevisto do acaso vem cutucar as coisas dormidas, capazes de
transtornar o curso da ação e a mente do Chefe:
[...] apreceu o Trigroso. [...]
– No Saz – uma veredinha, três léguas abaixo –
Chefe... Vaqueiro que achei, que me disse, remendando mensagem: que é um homem,
chamado Abrão, com uma moça bem arrumada... [...]
Ele falou. E foi a coisa mais de repente, na minha
vida, Otacília! [...] Inteirei, comigo: – Sêo Habão? Vigia se ele não traz
consigo uma donzela formosíssíma, ou se traz em-apenas desilusão... E o Trigoso
disse, estava dizendo completo. Ela era! Otacília! Otacília! (p. 427)
Riobaldo elabora rápido a dceisão
de ir com o Alaripe e o Quipes. Mas, antes, “como naquela hora Diadorim e eu
desapartávamos um do outro. [...] Fui, com desejos repartidos.” (p. 429).
Gastou
tempo, campeou no vazio a tal ponto que decidiu voltar para junto de seus
homens: “Formamos bons preparos. Minha mãe vivesse e viesse, ela mesma por nenhum descuido mero não havia de poder
me reprovar.” (p. 433).
Mostrava
aos homens, exercia suas artes de chefia, consertava e estimulava seus homens,
despertando neles “maior raiva. Raiva para tampar o espaço do medo [...] Dali,
o Hermógenes não saía com vida, maneira nenhuma, testamental. Tive ódio dele?
Muitos ódios. Só não sabia por quê.” (p. 434).
Porque
o ódio era de Diadorim, inoculado por identificação projetiva e introjetado por
Riobaldo de tal forma, que passara a ser objetivo de sua própria vida, condição
indispensável de ser cumprida, antes de poder pretender desejar “para a minha
vida um remir – da outra banda de um outro sossego...” (p. 432).
Assim é que
Riobaldo constata: “A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era
para dar cabo definitivo do Hermógenes – naquele dia,naquele lugar [...] Aí eu
aí desprezava o ofício de jagunço, impostura de chefe.” (p. 434).
Na
justa beirinha da véspera do combate fatal, no fundo do distanciamento de
Diadorim, ofuscado pela possibilidade de Otacília e pelos urgentes preparativos
de guerra, o amor por Diadorim refulge vigoroso, rompendo repressões. Na noite:
Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu
tinha recordação do cheiro dele. [...] Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele
era para tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no
pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto...
Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que
para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente
assim, de Diadorim e calar qualquer palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e
desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer – é, como
iam poder se gostar, mesmo em singela conversação – por derás de tantos brios e
armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível.
Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei: – Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor
de seus olhos... –; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse
pensando, somente, modo se diz um verso Diadorim se pôs para trás, só
assustado. – O senhor não fala sério! – ele rompeu e disse, se
desprazendo. [...] Arrepio como recaí em mim, furioso com meu patetear. – Não
te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... – eu disfarcei, afetando que
tinha sido brinca de zombaria, recompondo o significado. (p. 436).
Nas
bocas da hora decisiva, assoma, em Riobaldo, a fantasia de seu desejo
impossível (e, no entanto, tão possível...!) de Diadorim mulher, nos seus
braços. Mas, tratando-se de dois guerreiros, o amor é impossível, e a morte é
convidada a entrar.
Diadorim,
enciumada, sentia o fantasma de Otacília perto.
Sem
perceberem, a morte fora convocada para “testamental” Hermógenes e se insinuara
para outro... O amor confessado de dois homens é demais para seus brios
jagunços. A ambigüidade dos amigos que se amam tornava-se insuportável... A
morte tocaia as veredas do sertão...
Então,
[...] o inimigo dera de se estourar, todo
de-repentemente, da banda outra, lugar donde não devia de vir, nem ali possível
de ser esperado. [...] Estarreci. Que, na prema da minha ausência, o muito
mundo se acabava. Tudo diferente da cartada. (p. 439).
Riobaldo
combatera ao lado do Hermógenes e sabia que ele só atacava fazendo surpresa:
mas sua concentração fora perturbada pela possibilidade de Otacília estar no
meio do perigo, por perto.
Surpreendido,
Riobaldo fica estuporado: “Não chego em tempo... Não adianta... Não chego em
tempo nenhum...” (p. 439). E constata que “era tonto e burro, e idiota as mil
vezes, porque agora estava perdida irremediavelmente minha ocasião, e a guerra
descambava, fora do meu poder...” (p. 439).
Nessa
hora, o Diabo, candidamente, lhe insinua, por uma doçura nojenta de voz: “Tu
não não vai lá, tu é doido? Não adianta...” (p. 439).
Supera-se
e vai-se juntar aos seu homens: “Vivo em vida, me ajuntei com os companheiros.
Meus homens! Dei ordens. As balas estralejavam.” (p. 439).
A
morte de Marcelino Pampa é sentida.
Diadorim
aconselha Riobaldo, pela excelência de sua pontaria e pela sua altitude de
chefia, a ir para o alto do Sobrado:
– Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de
chefe. Com teu dever, pela pontaria
mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança...
– Eu vou... –; fui [...] Ainda virei, relanceando.
Sempre qeuria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e
soluço, nesse meio de vida. (p. 441-2).
Jiribe morre a caminho da torre.
Em plena luta, alvejando os
inimigos do alto, Riobaldo imagina:
“– [...] Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então quando eu
casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa
beira do Urucuia...”
E o símbolo do vínculo de ternura entre
eles: “E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho
não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...” (p. 445).
Vivenciou a progressiva derrota, até que “repentemente, o pessoal meu do
Cererê-Velho, sequazes de João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os
hermógenes pelas costas – davam a toda retaguarda!” (p. 447).
E sobrevém a certeza:
Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrando aquele
mommento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se
realçava. E conheci: ofício de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter
medo nenhum. Não tive!” (p. 447).
No auge da
vitória,alguém riu de Riobaldo: “[...] eu ia denunciar nome, dar a cita: ...
Satanão! Sujo!... e
dele disse somentes –
S... – Sertão... Sertão...” (p. 448).
O
resto é “[...] o Diabo na rua, no meio do redumunho...” (p. 450) dedutível.
Hermógenes,
valente, vendo-se perdido, lança
desafio à faca. Diadorim, sedento, coragem inteirada, retidão de certeza,
aceita.
Riobaldo
está encastelado nos altos e, pela segunda vez, as forças lhe faltam, e a voz
some. Só vê. Ele segurara por demais Diadorim em seus desejos de vingança.
Deixara a véspera da batalha para ir campear Otacília. Nos útlimos encontros,
Diadorim e Riobaldo se desapartaram de sua simbiose, cada qual assumindo sua
identidade própria. Impotente, vitorioso, no alto, ele constata, porém, que a
tarefa que se impôs, de matar o Hermógenes, esgotara-se na boa chefia: a
vingança voltava ao sangue de quem tinha mais direito.
O
“belo feroz” jagunço Diadorim perdera Joca Ramiro, talvez, quase certo, perdesse
Riobaldo. E, se não, teria de atravessar todo um longo e desconhecido processo
de feminilização, tendo, por único guia, o encontro do inconstante amor de
Riobaldo, fascinado por Nhorinhás e Otacílias. Assanhado, desafiado, Diadorim
não perderia o sangue do Hermógenes... E, sempre, restaria Deus a Maria
Deodorina.
Ficasse
Riobaldo, como ficou, com sua musa Otacília. Mas ficasse também, como predizia
seu nome, um rio baldo, um rio fracassado numa vertente inteira de sua vida,
aquela, própria, decorrente da perda de Diadorim... Riobaldo pugna, se faz.
Euloa, vence, e... perde: balda. Perdeu o Menino. Perdeu o companheiro-jagunço.
Perdeu o “Dia adorado”. E fricou condenado a se assustar pelo “Diá” que causa
“dor”:
O que existe de ser e amor em Diadorim é representado
pela vertente
a) Dia + adora
O que há de não-ser,
pela vertente
b) Diá (diabo) + dor. (Campos, 339).
Assim, em dois planos de significado
(deus ou o demo, sempre) se bifurca, desde o nome, essa criatura (Campos, 336)
que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar,
sem gozo de amor [...] (p. 458).
E mais:
“Daí que, a nosso ver, oemprego daquele sufixo (im) em Diadorim envolve tal
nome próprio numa imprecisão de gênero que está em relação isomórfica com o
personagem” (Campos, 458).
Riobaldo
baldou uma parte de si, menino-passarinho: “Dinhdurinh” (p. 429), companheiro
de traessia, alter ego, tornado irrecuperável pela falta de cobertura ao amigo,
no momento do diabo.
Morto
Diadorim, a Mulher exclama, ao despi-lo:
“– A Deus dada. Pobrezinha...”
E a reação de Riobaldo: “[...] Eu
conheci! [...] Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...
Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de
coronha...” (p. 453).
Mesmo
para um nomeador, um nomenclaturizador, amansador-de-diabos, do porte de
Riobado, era coisa demais. Ele adoece de tanto tudo isso: adoida.
“Mas,
antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheira – aí
ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. [...]
Desapoderei.” (p. 455).
Ida
às Veredas-Mortas... cobrar, talvez, do Demônio... Mas, perto já, um sitiante
explicou “que o trecho [...] se chamava mais certo não Veredas-Mortas, mas
Veredas-Altas...” O nome é tudo:
isso Riobaldo aprendera, no sertão. Mudado o nome, muda o mundo.
Riobaldo
adoece, febril, confuso: a vitória sobre os hermógenes, a vingança do
assassinato de Joca Ramiro, a morte e a perda brutal de Diadorim; a revelação
de Diadorim moça. Ele é tratado pelo Sêo Josafá Ornelas, na Barbaranha, onde
convalesce.
Otacília
aparece.
Uma
última travessia antes ainda tinha de ser feita: “Adonde fui, a um lugar, nos gerais
de Lassance, Os-Porcos”. (p. 457).
Da
matriz de Itacambira, o batistério: “De Maria Deodorina da Fé e Bettancourt
Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para
muito amar, sem gozo de amor... (p. 458).
Uma
vez mais, é Zé Bebelo quem lhe dá alento e destino: encaminha-o ao “Compadre
meu Quelemém”, místico sábio do sertão, aquele que “quer não é o caso inteirado
em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa” (p. 152). A ele, Riobaldo pode contar
por inteiro, em primeira mão, toda a sua história e, ao cabo, confiante,
confessar sua maior dúvida: – “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!”
(p. 460).
E,
aproveitando essa segunda imprevista oportunidade, Riobadlo, após arrevesar
daqui-prali, nas primeiras páginas, consegue recuperar sua história, perpassada
em seu sertão, e obter, extraídos, os sentidos que só à posteridade se revelam,
disponíveis:
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem
não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa
importância. [...] Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto.
O senhor é bondoso de me ouvir. (p. 78).
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em
minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo!
– só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o
senhor sabe: a gente quer passar um rio
a nado, e passa: mas vai dar na outra banda é um ponto muito mais embaixo, bem
diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (p. 30).
A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável,
num mim minuto, já está emprurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois
sabendo figuei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só
o último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se
dispõe para a gente é no meio da travessia. (p. 51).
O
que resta é o final do último parágrafo:
Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que
o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, cirunspecto. Amigos somos.
Nonada. O diabo não há! É o que digo, se
for... Existe é homem humano. Travessia. (p. 460).
Riobaldo fez
a inteira psicanálise de sua vida. Agradece ao discreto e quase mudo ouvinte.
Amizade entre homens é o que se firmou. O resto são ninharias. O importante é
manter afirmado que o Diabo não existe. Porque, na verdade, existe o homem
humano e ele aparece nos muitos pontos da travessia. Essa é toda a
possibilidade de transcendência humana, rumo à solidão, em direção ao infinito.
A escarmentação do demônio
Guimarães
Rosa emprega 83 cognomes do Diabo, evidenciando a obsessão de Riobaldo de
tratar dessa vertente humana fundamental. O Diabo é a expressão simbólica
extenalizada da força obscura proveniente dos dentros do homem. É a
caracterização das complexidades constitutivas do desejo humano, rolando nos
escuros, minando na superfície e, por vezes, ameaçando levar de roldão toda a
frágil cortiça da consciência e do parco entendimento humanos: “Coração da
gente – o escuro, escuros”. (p. 30).
O
“Danador”, o “Tisnado” é tudo aquilo, aglutinado, não diferenciado, que reina,
confuso e insólito, dentro do mundo interno da pessoa. O “Temba”, o “Tristonho”
é o que tem mil-caras, é o não-dito, o inconvocável. O “Galhardo” é a projeção
imaginária de obscuros processos silenciosos, que, súbito, afloram e estalam
com imperiosa força, ameaçando o ser de não-ser ou, o que é pior ainda, de ser
um “ser incompleto” (criança, aleijado, doente, louco, velho, criminoso, etc.):
“O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se
escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor
dorme sobre um rio?” (p. 222).
Ele,
o “Arrenegado”, se imiscui cedo, na vida de Riobaldo, na falta de uma figura
paterna legitimada e reconhecida; percorre a sua orfandade precoce, vaga pela
miséria das gerais: “Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza
que até alegra”. (p. 23). Surge, de banda, na admiração fortemente idealizada
pelo Menino, que passa a ser, por identificação introjetiva maciça, parte
operante, constituinde, de Riobaldo. Esse processo não cessa, antes recorre, na
necessidade incorporativa do personagem de admirar e incorporar,
sucessivamente, artibutos de Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo, Titão Passos,
Sêo Candelário e, mesmo, por identificação introjetiva negativa, do Hermógenes.
Mas
não só. O “Mafarro” aparece a cada nova qualidade de medo, que cada dia traz:
“Cada hora, de cada dia,a gente aprende uma qualidade nova de medo!” (p. 69).
O
“Coxo” se exibe na precariedade e na transitoriedade de tudo no sertão – “O
sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado... [...] O sertão é
confusão em grande demasiado sossego...” (p. 343).
O
“Outro” é, também, o representante do absurdo da existência, com o destino
pendente “por clim de clina de cavalo”. (p. 98).
O
“Sujo” é toda a própria insondável e imedível maldade, que jorra de nossos
adentros, muitas vezes querendo fazer mal a quem se ama ou, simplesmente, danar
aqueles, pobres, desamparados ou lazarados, que nos lembrem aspectos miseráveis
de nossa condição: “Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma”. (p.
155).
Por
fim, o “Tisnado” comparece no muito amor que, não podendo vazar no leito dos
escoamentos da carne, transforma-se em aguilhão que aferroa o juízo.
O
“Morcegão” é o amedrontador, aquele que desloca o homem de dentro de si mesmo,
lesando-o naquilo que lhe é mais precioso: sua inteireza de sentidos e sua
integridade de ser: “O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero –: é
que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!” (p. 298).
O
“Carocho”, o “Tunes”, representa um instrumento iniciatório, que, exigindo o
cumprimento do ritual, funciona como outorgador de poderes interiores, que se
devem obter, imprescindíveis para a realização da tarefa em que falharam os
chefes anteriores. Além disso, o “Debo”, o “Grão-Tinhoso” significa a parte
torva da alma.
Antônio
Cândido nos chama a atençaõ para a palavra que o autor inventou para
representar aquilo que Riobaldo vivenciou em si, na noite do pacto:
“Sobrelégio?” Um sortilégio sobrenatural. (Cândido, 307).
O
drama do homem Riobaldo, sempre acossado de perto por seus demônios interiores,
está na maneira como lutou para não se perder. Essa luta, muitas vezes, é
identificada
àquela confusa e tumultuosa massa do mundo sensível,
caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a
que se avista ao longa das Veredas, tênues canais de penetração e
comunicação.
Pois
dele nos ensina Riobaldo: “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é
assim: ou o senhor bendito governa o serão, o sertão maldito vos governa...”
(p. 374).
O
romance é a esplêndida história de um homem cujo mecanismo de “renegação” (Verwerfung)7
nunca foi suficiente para afastar o “Coisa-ruim” de sua companhia. O “Rapaz”, o
“Canho”, era viajor em sua travessia, do seu lado o tempo todo, o “Façanhudo”:
“Será – mal pergunto eu ao senhor – que viajei este sertão com o Outro sendo
meu sócio? Vá retro!” (p. 364).
Pode
ser de ajuda exemplar, para nós leitores, inventariar as mil-poucas maneiras
que opera Riobaldo, nessa longa e incesante travessia, de domar o “Tal”.
A
primeira delas é a religião. Ainda criança, vai esmolar no porto e pedir ao
Grande Rio que leve sua oferenda ao Senhor Bom Jesus da Lapa. Na velhice,
Riobaldo apela para todas as religiões.
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico:
todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas.
Por isso é que se carece principalmente de religião:
para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucrua. No geral. Isso é
que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco a
ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para
mim é pouca, talvez não chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e
aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas,
quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se
acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. (p. 15).
Chega mesmo
a dizer que, se não tivesse sido chefe jagunço, poderia ter sido
“padre-sacerdote” (p. 15).
Embora
profundamente religioso, Riobaldo não é um místico.
Às
vésperas de seu primeiro combate, Diadorim havia-lhe aconselhado: “–
‘Riobaldo?’ – Diadorim me disse – ‘arruma jeito de mudar de lugar, na hora,
sempre que puder’.”. (p. 154).
A
vastidão dos Gerais, acrescida da sua inquietude de moço, certamente lhe
inspiraram manter sempre a mobilidade. Assim sendo, a segunda ferramenta que
utilizou, enquando pôde, foi a “evasão. Sempre que o “Coisa” o apertava, ele
percorria o caminho da fuga. Fugiu da Fazenda São Gregório, quando o mundo se
lhe desproduziu. Fugiu do bando de Zé Bebelo e, por duas ou três vezes, quis
abandonar a vida de jagunço, propondo deserção a Diadorim. É este quem
interdita a rota de fuga, com sua determinação fanática.
“De
mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um
fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga”. (p. 142).
A
grande ferramenta que burilou foi aquela absorvida, porque sobrava, do Menino –
a coragem:
– “Carece
de ter coragem...” (p. 83).
– “Vau do
mundo é a coragem...” (p. 232).
Selorico
Mendes reforçou isso, na idade adequada e na condição propícia.
Outro
grande recurso deriva do dom de Riobaldo de atirar bem:
“... pelo
atirador que eu era, o melhor e mor... (p. 51).
“Sempre
disse ao senhor, eu atiro bem.” (p. 124).
“Só o que
mesmo devo de dizer, como atiro bem: que vivo ainda por enconrar quem comigo se
iguale, em pontaria e gatilho.” (p. 125).
Um recurso
importante para conjugar as artimanhas do “Tinhoso” foi o desenvolvimento do
senso de lealdade aos camadradas jagunços dos bandos a que pertenceu. Suas
ligações de apreço, de amizade, sob fogo e atravé damorte, constituíram outro
fator de consolidação diante do “Tristonho”: “... de todos, todos eram
garantia”. (p. 123).
Um fator
aleatório, nada desprezível por muita vez ser o mais absolutamente decisório,
provém do fato de que Riobaldo contou sempre com a sorte (Fortuna
ou Ananké). Ela o ajudou a escapar de perigos e da morte e a saber
encontrar o caminho: “Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar
meu temer de consciência, que sendo bem assistido, terríveis bons-espíritos me
protegem. Ipe! Com gosto...” (p. 14).
O sétimo
recurso que Riobaldo cunhou foi o permanecer aberto e permeável à percepção da
variedade das coisas do sertão, na dupla dimensão em que este se configura: “E,
olhe, tudo quanto há, é aviso” (p. 131). Como espaço cênico, real, amplião: “O
sertão é sem lugar”. (p. 268); e como espaço interno, reservado, pessoal:
“Sertão é o sozinho”. (p. 235); “Sertão é o que eu não sei”; “Sertão: é dentro
da gente” (p. 235); ou ainda: “Sertão: estes seus vazios”. (p. 27).
O sertão,
em suma, é o vazio, que se permite, apenas, ser urdido e criado mediante a
travessia, percurso tecido no risco, uma das litânias de Riobaldo: “Viver – não
é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que
é o viver, mesmo.” (p. 443).
Somente
quem se mantém aberto para o trabalhoso processo de identificr-se projetiva e
introjetivamente, dentro de um interjogo criativo e incessante, pode
enriquecer-se o suficiente para fazer identificações mais elaboradas. No dizer
do próprio Guimarães Rosa: “No serão, cada homem pode se encontrar ou se perder.
As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e
sua capacidade. Nada mais.” (4:24).
Foi
Diadorim quem abriu os olhos de Riobaldo para as coisas do mundo, que, depois,
passaram a pertencer a sua interioridade. Também se devem a Diadorim estarem os
olhos de Riobaldo atentos e espertos, ainda nas portas da velhice.
Mas a mais
admirável arma que Riobaldo utilizou, para lidar com o “Cão”, foram os afetos.
São exatamente estes que embaralham sua narrativa, fazendo-a ir e vir, cada
afeto ligado à lembrança ou à coisa, exigindo, forçando expressão e pedindo
quase para ser resignificado e reinscrito dentro da cadeia de significações: “A
lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo
e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.” (p. 77).
Ao falar
de seu primeiro encontro com Otacília, diz: “Agora não é que tudo está me
subindo mais forte na lembrança?” (p. 122).
E, já em
seu período reflexivo, afirma:
Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto
aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma
espécie de decorrido formoso. (p. 260).
Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de
me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. (p. 65)
Cada
lugar, paisagem e aragem; cada pássaro, bicho ou planta; cada rio e cada
vereda; toda pessoa e toda situação deixam marca nesse rio pujante que a todos
molha, embebe e empapa de uma marca afetiva específica. Este rio Rioblado
descobriu que, mesmo nos mais áridos sertões da existência humana, os
afetos podem ser estuantes e perenes como as veredas; insistentes, sinuosos e
variados como elas. E que a vida só palpita no sinuoso oásis das veredas
afetivas.
O
carinho com que caracteriza dezenas de companheiros, a descrição que faz de
Alaripe, Fafafa, Quipes, Jiribibe, Garanço, Felisberto, Sesfredo e tantos
outros mais, revelam a capacidade de investimento afetivo de Riobaldo. Ele é um
homem que tem apego ao convívio com outros seres humanos. A prova disso, ele
nos dá quando diz de sua vizinhança: “E sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra
não isso, hei coloquei redor meu minha gente. Olhe o senhor: aqui pegado,
vereda abaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. (p. 21).
E
segeuem o Acauã, o Compadre Ciril, o Alaripe, oJoão Nonato, o Quipes, o
Pacamã-de Presas, o Fafafa, o Sesfredo, oJesualdo, o Nélson e o João Concliz.
(p. 21).
Somente que me valessem, indas que só em breves e
poucos, na idéia do sentir, uns lembrares e sustâncias. Os que, por exemplo, os
seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigri – minha mãe me ralhando; os
buritis dos buritis – assim aos cachos; o existir de Diadorim, a bizarrice
daquele pássaro galante: o manuelzinho-da-croa; a imagem de minha Nossa Senhora
da Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não
são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar água na praia do rio São
Francisco, com bilhas nas rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tistezas;
e a minha Otacília. (p. 391).
Por
fim, a definição assoprada de afetos possíveis de ser colhidos ao longo da
história é algo de excepcional brilho e qualidade. Não se pode deixar de citar
algumas:
Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também –
mas Diadorim é a minha neblina... (p. 21).
O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. (p. 49).
Se amor? Era aquele latifúndio. (p. 148).
Amor é assim – o rato que sai dum buraquinho: é um
ratazão, é um tigre leão! (p. 323).
Coração cresce de todo lado. (p. 145).
Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas
feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa. (p. 45).
A liberdade é assim, movimentação. (p. 243).
Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um
pobre caminhozinho, no dentro do ferro das grandes prisões. Ao senhor confesso,
desmedi satisfação, no ouvir aquilo – que a assoprada na vaidade é a alegria
que dá chama mais depressa e mais a ar. (p. 114).
A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem
de aprender, é topar firme as invejas dos outros restante...” (p. 326).
Aversão que revém de locas profundas. (p. 144).
Quase tudo que a gente faz ou deixa de fazer, não é,
no fim, traição? (p. 139).
Ingratidão é o defeito que a gente menos reconhece em
si. (p. 412).
E amor é isso: o que bem-quer e mal faz? (p. 416).
Somente com a alegria é que a gente realiza bem –
mesmo até as tristes ações. (p. 316).
[...] o que é o passarim mais bonito e engraçadinho
de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-croa. (p. 111).
E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha tão
catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?
(p. 445).
A gente – o que a vida é –: é para se envergonhar
[...] (p. 155).
Tem uma verdade que se carece de aprender, do
encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. (p.
233).
O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade?
(p. 24).
Moço: toda saudade é uma espécie de velhice. (p. 34).
Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que o outro
cozinhou quente demais. (p. 74).
Quanto maior mais baixo se caiu, maismente um carece
próprio de se respeitar. (p. 142).
Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe
estrada: quando ruma para a tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e
bom. Seja? (p. 143).
O perigo saca toda tristeza. (p. 165).
Cansaço faz tristeza, em quem ela carece. (p. 166).
O que é de paz, cresce por si. (p. 218).
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso
na loucura. (p. 236).
Em
Grande sertão: veredas, temos um verdadeiro estudo, como talvez os
psicanalistas e os psiquiatras ainda não o tenham feito, acerca dos afetos, do
medo e da coragem.
O medo é um
tema que interessou a Riobaldo durante toda sua vida:
Homem? É coisa que treme. (p. 118).
Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a
minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a
gente estava salva. (p. 142).
Medo? Bananeira treme de todo lado. (p. 317.
Eu tinha medo de homem humano. (p. 307).
Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz
oco no ânimo do mais valente qualquer...” (p. 404).
Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover
desses futuros que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente
medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a
licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o
que quero sobrequero –: é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim! (p.
298).
Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor
sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já
principia com um grande cansaço. [...] Medo do que pode haver sempre e ainda
não há. (p. 118).
Medo agarra a gente é pelo enraizado. (p. 119).
O que o medo é: um produzido dentro da gente, um
depositado: e que às horas se mexe, sacoleja, a gente pensa que é por causas: por
isto ou por aquilo, coisas que só está é fornecendo espelho. A vida é para esse
sarro de medo se destruir; jagunço sabe. Outros contam de outra maneira. (p.
278).
A
preocupação de Riobaldo com a coragem também é uma constante:
O Senhor acha que eu posso? Perguntei, para
principiar qualquer tarefa,quase que eu sozinho nunca tive coragem. (p. 99).
– “Carece de ter coragem... (p. 99).
– Carece de ter coragem. Carece de ter muita
coragem... (p. 85)
–
Vau do mundo é a coragem... eu disse. (p. 232).
–
Ei, retentei! Coragem faz
coragem... (p. 284).
O nono recurso – talvez o mais importante de todos
– que Riobaldo empregou foi a palavra.
Todos os
meios anteriores não seriam suficientes – quem sabe? – para enfrentar o
“Mil-Caras”, se Riobaldo não tivesse desenvolvido a enorme, pujante e
contundente capacidade de nomear o sertão.
Foi por
meio da palavra, específica, clara, certeira, articulada, a serviço da
tentativa de expressão do indizível, que ele pôde conjurar as mais perigosas
investidas do “Não-sei-que-diga”, “Do-que-não-fala”. Pois o próprio “Cara-de-cão” é a negativa da palavra. O
“Coisa-ruim” reina, soberano, naquilo obscuro, que ainda não foi iluminado por
ela:
[...] eu não sentia nada. Só uma
transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome. (p. 86)
Nome de lugar onde alguém já nasceu,
devia de estar sagrado. (p. 35).
O que é pra ser – são as palavras! (p. 39).
É a
palavra que exorciza o “Belzebu, o “Xu”. A palavra cheia, palavra-brasa-assoprada,
candente, dita na presença do outro, de cuja atenção precisa e pela qual
agradece. Pela palavra se redime Riobaldo em uma dupla dimensão:
1) diante do
compadre meu Quelemém, sob o aspecto místico-religioso;
2) diante do
interlocutor silencioso, sob o aspecto psicanalítico.
Visto
assim, Grande sertão: veredas é o “diálogo monologado” de um homem que
soube enfrentar o “Danado” e que porfia continuar enfrentando-o nas barrancas
da velhice. Tarefa de toda vida.
Por fim, o
décimo, enorme recurso de que lança mão Riobaldo é a sabedoria:
Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu
quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. (p. 15).
Quem desconfia, fica sábio... (p. 107).
A colheita é comum, mas o capinar é sozinho... (p.
47).
E
avisa: “– Vocês têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado...” Tendo sido um homem de ação, ele
conseguiu fazer a passagem a uma etapa reflexiva de sua vida, da qual extrai
conclusões filosóficas da mais alta qualidade: “Ações? O que eu vi, sempre, é
que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada
ou guardada, que vai rompendo rumo.” (p. 137).
A
reflexão surge do ócio e do cabedal afetivo: “Do jeito é que retorço meus dias:
repensando. (p. 234). “Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer
e traçar.” (p. 276).
Aquilo
que Riobaldo sabe é sempre o sinal de perigo – o Demo vige perto: “Ah, o que eu
não entendo isso é que é
capaz de me matar...” (p. 249).
Logo, no
entanto, recorre a um paradoxo: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto,
tudo certo.” (p. 121). “A gente só sabe bem aquilo que não entende.” (p. 286).
“Tudo é e não é...” (p. 12).
Ou, ainda,
esse outro paradoxo, colocado na boca de Zé Bebelo: “A gente tem de sair do
sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...” (p. 212). O grande objetivo de Riobaldo, no entanto,
despertado em sua pulsão epistemofílica, pode ser dito com suas próprias
palavras:
Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria
decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de
sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente, queria entender do medo
e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao
suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está
pertinho do que é nosso por direito, e não sabe, não sabe! (p. 79).
E ainda:
Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da
gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas,
muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça,
para o total. (p. 236).
Esta é a
colossal luta de Riobaldo. E Riobaldo é cada um de nós.
Ele
aprendeu o paradoxo, na travessia, de que o diabo não há... havendo.
O que
existe, o ele teme, é homem humano.
O mais?
Mesquinharia... Nonada...
Referências bibliográficas
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8.
WISDOM, J. O. A methodological
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[1] Psiquiatra.
Psicanalista. Presidente Emerito do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais.